Dia branco
Uma escuridão
Aqui dentro e os espíritos brincam
Brincam e escondem as verdades
As gretas suaves de luz
Não deixam passar a cena
O mundo ignora
Suspenso
Esse inevitável tumulto
E muitas vozes
Que você tenta não ouvir.
Cerne
Esta é a fase mais aguda
A transfiguração do momento
Da vida que você dizia levar
Tão bem
Não me tenha com essa culpa
Nem me atravesse com julgamentos prontos
Conservadores
A carne de hoje já está deveras contaminada.
Eu quero ouvir as vozes
Dos meus fantasmas
a solidão me deixou muito perto
destas coisas vis.
Não me recordo do meu outro nome ou
de como eu costumava ser.
Depois da cegueira
depois da ternura
nada restou.
O amor pode ser um
equívoco dos deuses.
Ponto
Aquele ponto que nos toca fingindo
Não ser nada
Que nos divide
Sem saber
Atravessa o tempo
Coloca a vida nossa em risco
Em xeque
Em setas
Em abismos.
História
O capítulo penúltimo da promessa
em vão
o castigo e o cansaço.
Não mais te escutam os anos
nem essa voz desconexa.
Não há uma alma
ou qualquer reprise
canal apagado e quase irreal
do que era um legado.
DNA controverso de nunca aceitar
o tempo
as teias da casa
o desaparecimento
do amor.
Lugar imperfeito
Qual ponto seria o de agora
Exatamente
Instantâneos
Coração metáfora
Tenho os dedos roxos esta manhã
E pássaros às minhas costas
Partes do dia que desordenam
O feio o triste o desespero.
Final da tarde
Das coisas repetidas do final da tarde encerro
algo tão apressado em mim, em círculos
dos mosquitos, destas faltas tão óbvias
tudo sem final aparente.
Ele me diz tão sinceramente: não mate as aranhas da casa
elas tão leves, insistentes
belas desenhadas contra parede
penso repetidamente
em trocar de lugar
vantagem de permanecer imóvel
em teias.
Um novelo desenrola-se conforme o tempo,
alguém se move com descuido,
na sua maneira de agir, a de não amar. Não tem nenhuma lógica onde pisamos, nem há garantias nas suposições exatas. Poderíamos ser aquele pássaro indefinido errante e, quem sabe, distante de tudo, em algum momento, por merecimento. Os meus segredos residem nas entrelinhas de qualquer nota. O dia transforma-se em interminável.
Por capricho
Enrolei meus dedos nas linhas do sol
quis ser o oposto
lunar e calma, dissidente de alguma política torpe
encarei alguns medos, mas não quis seguir teus rastros
a paralisia molda meus pelos poucos
incapazes infinitos
indeléveis.
Abandono
A estante torta da casa
o peso ausente do seu olhar
: portal para outra vida
paralela secundária
guardada no interior.
Vidas marcadas
por onipotências surdas
e inevitáveis
noventa e nove por cento.
Início
Tudo que eu poderia dizer: eu só desejo descanso.
Os pés descalços.
Atravessar tudo como num raio de uma vida. Secreta vida.
Um alento, as contas pagas.
Os olhos bons, o sono em dia.
Nem tudo debaixo do tapete
da opressão também.
Somos todos suicidas. Desprovidos de controle.
Apenas descobrir um último endereço de encalço.
Outra história
Ele fala comigo
percebo que conversa apenas com ele.
Não distingo a dor
dos seus cotovelos afundados no sofá
braços avarandados.
Outra história pairando no ar
entre nós.
Distraídos estamos
e tão desatentos a esta voz.
setembro, 2018
Leila Lopes de Andrade é graduada em Letras Vernáculas e Comunicação Social. Participou da Antologia Meditações sobre o fim — os últimos poemas (Portugal: Editora Hariemuj/ Portugal). Tem poemas publicados em várias revistas eletrônicas. Edita mensalmente a Revista Cultural Diversos Afins.
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