Antes...
Antes do antes somos bloco de pedra
Se nascemos, àquele que detém o cinzel nos destinamos
Aos pequenos golpes diários: contratos, telefonemas, juros
Antes pedra, antiguidade e templo, agora forma e obra
A ausência de virtude do escultor nos enfeia
De narizes, bocas e olheiras fundas
Presos em reter um dia a pedra que fomos
Em salas fechadas ao público
Aguardamos a retrospectiva dos artistas menores.
Nanquim
Aprendi com as árvores
A escolher um dia de chuva para tombar
E pôr a culpa no vento
Para que ninguém desconfie
Da minha imensa vontade de cair.
Stravinsky
Agora temos uma casa
Larga e vazia
Uma casa com um único objeto, no centro da sala
{o piano
Uma casa feita para reunirmos o silêncio
Nenhum outro som do mundo
Apenas a contingência do piano
E com o passar do tempo, se no móvel
{habitassem abelhas
Um pequeno ruído nos incomodaria
Por horas, dias, meses resistiríamos em reconhecer
Nossa impontual virtude.
Crise conjugal
Passei horas olhando meu canário na gaiola
Já estava escuro quando percebi que você me olhava há horas.
Amantes
Nossa infâmia começa cedo
A luz devassa,
A cama bisbilhotada
Os corpos esquartejados
De ontem
Precisamos nos remontar
Já é dia.
O tempo dentro da gaiola
O tempo dentro da gaiola
Requer perdoar as horas
E nunca aquedar
Faz-se de espera e remordimento
Das tardes de chuva e sementes livres
O tempo dentro da gaiola
Às vezes é de cantar
Se não cantamos, resta-nos apenas
O tempo dentro da gaiola.
A bailarina literata
A bailarina literata não se move
Os músicos tocam apreensivos
Algumas tosses
E olhares inertes
Duas horas transcorreram
Até os agradecimentos
Poucos aplausos
Poucas visitas ao camarim
Ninguém percebeu
A beleza daquele Romeu e Julieta
Dentro dela.
O último pai
Um senhor deixou envelopes
Com certidões, contratos de compra e venda
E escrituras
Num deles vi meu nome
Junto a instruções
Senti-me tão próximo
Desse senhor que deixou envelopes.
Um cão
Sê um cão
Intruso, magro, apartado
Porém, cão
Indiferente a deslouvor e pedra
Inabalável, insistente e tenaz cão
Incomunicável
Recolhido em ser cão
Um cão de pelos áridos
De boca imunda
De olhar desmaiado
Cão.
Proteção das nascentes
Plantarei ingás e pinhas do brejo
Pindaíbas e buritis
Esperarei então a primeira lágrima
E as primeiras chuvas
E dos teus olhos úmidos
Chegarei até o rio da Prata.
Soltar passarinho
I.
Gostaria de pedir asilo ao amarelo
II.
Possuidor das terras que guardo nas unhas
III.
Permanecer cachorro correndo
Atrás do carro
Até o coração doer de esforço
IV.
Na vida fui tarde
Vivi por quases
Desperdicei-me em passarinhos.
O assobio do pássaro na mata
As folhas deixam-se levar
Para serem sugadas
Por raízes de árvores estranhas
Que se alimentam de memória
De folhas que se deixam levar
Há outras, traiçoeiro vento
Que se deixam cair
E apodrecer aos pés
De sua própria árvore originária.
Jogo de água e tempo
Segura o tempo como quem agarra a água
O tempo se fecha na mão que afunda
E sai firme, molhada
Mão contra mão, só carne
Cadê o tempo?
Lida
No grotão de ser sozinho
Perdi a linguagem
Arredei para o lado dos bois
Mata ensimesmada
Abrigo de lâmpada esmorecendo
Guarda de ruídos e palavras dispersas
Sobram as sombras, murmurejam os muros
Gado bravo em cerca velha
Dia tirado dos mateiros
Tear, garimpo, ordenha
O tedioso ofício dos dias
Carcaças de poemas
A um copo de cachaça me empurras
À essa imagem existência
Torrão que é semente e pasto
E uma pontada nos rins.
Fábrica de sol
A máquina de prensar humanos faz seu trabalho
E se temos porventura algum pensamento sombrio
Logo um desânimo contente nos acalma
Precisamos de otimismo e unidade
E cânticos às engrenagens, aos domingos
Para permanecermos sorrindo sob a máquina de prensar humanos
Para sobrevivermos aos exigentes que nada criam
Para continuarmos da substância que existimos
E criamos o hábito.
[Poemas de Currais Concretos. Intermeios, 2018]
setembro, 2018
Marcelo Benini nasceu em 1970, em Cataguases, Minas Gerais. Vive em um núcleo rural próximo a Brasília-DF. Publicou: O Capim Sobre o Coleiro (poesia/edição do autor/2010); O Homem Interdito (crônica/Intermeios/2012); Fazenda de Cacos (poesia/Intermeios/2014). Foi publicado na Alemanha em 2013 pela fundação Lettrétage e em 2018 lançou seu quarto livro: Currais Concretos (poesia/Intermeios).
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