CONFLITOS
Eu habitava comigo
como se a sonoridade do meu nome
fosse um origami
na aurora de cedro.
Eu me perdera de mim
como se a queda
fosse de mármore
e no bem que ganhara
perdesse a direção.
A curva,
o baque,
o presságio
de uma ilusão.
Era de granizo
a procela que feriu
e depois partiu.
Era poético
o corpo que suportou
e depois metaforizou.
Era um sabre
no bolso a vontade
de qualquer estrada
que desapontasse
as evidências,
como se na letargia
dos céticos, pudesse
acordar sem acreditar
na fealdade
dos porões bestiais.
NÚMEN
À Regina Celi Mendes Pereira
Saber-se poeira do vazio: o mar é imenso
e os olhos, indigentes.
Nada
é tão preciso quanto a teoria da queda.
Nada
é tão originário quanto a liberdade de Eva.
Somos
filhos daquela.
FÁRMACOS
A psiquiatria ganha lugar
na feira de liquidação.
Na alegria imediata
do simulacro:
adestrar psicopatas.
Antidepressivos
para curar as feridas
da alma
ou esquecer a amada
[que antes
do beijo toca fogo
nos lábios].
Na cabeça, uma ampulheta,
nas mãos, borboletas fugidias,
em todos os caminhos,
nenhum destino:
apertar o botão abismo.
PAISAGENS
Para José Lira
Festa do Buda:
o gato toma saquê
e foge da contemplação.
O mundo morde
e não sente as
cinco estações.
Distante do mercado,
seria o corvo
um ermitão?
Asas de papoulas lembram
pétalas de borboletas.
Vão-se as cerejeiras
e fica o haicai.
Flor de túmulo: as lágrimas
de quem parte.
DISCORDÂNCIA
Não me conformo
com os atropelos
da rotina, os ratos
que se abrigam nas epidermes
dos bueiros celestes,
os nomes queimados
na fogueira da maldade.
Não me consumo
na obesidade de costumes,
na incapacidade de sentir
o soco no estômago
na obrigação de oferecer
a outra face.
Em poros entreabertos
o medo que se infiltra
na solidão dos lares:
é dilacerante escolher
a pior parte.
MISERERE NOBIS
No gueto
chuva de anjos
caídos.
O telejornal toca
o contrabaixo
do apocalipse.
Cigarras bailam
na descontente
garganta do caos.
Poetas procuram
o melhor
atentado.
Matar
as harpias
que molestam
a alma.
A resistência
é um gato branco
numa noite
de blecaute.
Muitos pastores
um só holocausto:
Deus nos salve
de Deus.
SHOWROOM
O shopping era sofisticado:
fedia
a showroom de automóvel.
Água suja descida da escória.
Um homem
apodrecia em inverno.
Não nadava na direção
contrária:
buscava um lugar no inferno.
HABITUAL
Todos os dias
somos espostejados
como parte
do espetáculo.
A cada palmo
de terra
uma cova de leões
como se os dentes
das feras fossem
a gramática dos ossos
e o Coliseu o melhor
lugar para morar.
MANIFESTO POÉTICO
No poema
estrondeia
uma guerra.
Anjos de todos
os verbos, uni-vos
com os poetas.
Na fertilidade
do vácuo quebrai ossos
de moinhos
a diesel.
FUGACIDADE
Não perco
o poder de fogo
com as estrelas
que me
são indiferentes.
Mesmo
que o vento
me cortasse
os lábios,
eu beijaria o caos.
Deus me sabe
na moira
das suas mãos.
São voláteis
as minhas preces.
MUSA
O poeta tirou
da lua-corola
um flamboyant
no poema
aludia que
só ela basta.
Ela leu o poema
como se jogasse
a metafísica de
Aristóteles pela janela
e pediu:
falemos
de amenidades.
DESORDINES
O sol flúmen.
A palavra iluminura.
A musa,
na noite, flórea.
Na encantação
do poema,
o inesperado é a melhor
flor de ipê.
É de ouro
toda idade do poema.
[Tirar do bloco de notas
os minérios
póstumos
como quem degela
uma aurora]
Ou lucífera
como um ferro de passar
o que é de César.
STRAVINSKY
A vida, ainda que hercúlea,
é estreita: não há iluminuras
sem o extermínio de uma estrela.
Em cada ode, o poeta canta
uma morte: como quem recria
uma semente de alegria
no recreio dos segregados.
Rosa primavera sacrificada.
Queremos o insonhável:
a sagração do juízo inicial.
março, 2018
Tito Leite [Cícero Leilton Leite] nasceu em Aurora/CE (1980). É poeta e monge, mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tem experiência na área de ensino de Filosofia, com ênfase em Filosofia Política, Ética, Filosofia da Ciência e da Tecnologia. Autor do livro de poemas Digitais do Caos (São Paulo: Selo Edith, 2016).
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