Foi no tempo do último general-presidente. Eu fazia um frila como jornalista no semanário de uma cidade vizinha. Era o único redator e povoava o expediente com pseudônimos. Descia do trem na quarta-feira à tarde e seguia para o quartel-general do "jornal do prefeito", como o tabloide já era chamado pela oposição local. Nós, escribas, chamávamos essa ocupação de "regiornalismo".
Uma vez, cruzando a Praça dos Expedicionários, encontrei com Francisco Donato, nosso colaborador desde a fundação, dezoito edições atrás. Um septuagenário com chapéu preto de feltro e bigode amarelado de nicotina. Dublê de comentarista político e cronista nostálgico. Diziam que tinha sido abandonado pela mulher. Apesar da fama de misantropo, Donato me cumprimentou com amabilidade, e parei um instante, por gentileza.
Ele elogiou a seção literária que eu tinha criado no jornal, e sua figura ganhou definitivo realce quando mencionou que possuía uma primeira edição de Paulicéia Desvairada, herdada de um tio músico, que fora amigo de Mário de Andrade. Aceitei no ato seu convite para ver o livro em sua casa, que ficava nas proximidades.
Havia um cachorro velho dormindo ao sol no quintal da casa modesta. Entramos pela cozinha e ele pendurou o chapéu no porta-chaves pregado à parede. Sugeriu um café fresco, pôs a chaleira no fogão, riscou o fósforo, acendeu o gás e atirou o palito para trás, por sobre o ombro.
Acompanhei a curva que o fósforo aceso traçou no ar até cair sobre uma verdadeira pirâmide de palitos queimados em cima da pia, onde se apagou. Calculei que a soma total dos palitos devia corresponder ao número de dias e noites desde que a mulher dele tinha ido embora.
Enquanto a água fervia, ele foi buscar o livro lá dentro. Cobriu a mesa engordurada com páginas abertas do nosso tabloide, antes de depositar o volume em minhas mãos. Folheei aquelas páginas amareladas com a respiração suspensa.
Tive a coragem de perguntar se me permitiria copiar o livro em xerox, e fiquei espantado quando ele disse tranquilamente "tudo bem, sem problema". Prometi fazê-lo naquela mesma tarde, e deixar o livro aos cuidados de P. J. Campos, editor do jornal.
Ele acabava de coar o café quando ouvimos ranger o portão de ferro da entrada, alguém chegando, o cachorro latindo festivo, e uma voz de mulher mimou o bicho: "Tá contente de me ver, Pingo?".
Ela surgiu na porta da cozinha, uma morena corpulenta, de quarenta e poucos anos, carregando uma grande sacola.
— Boa tarde, Seu Francisco. Vim trazer sua roupa lavada.
— Oi, Imara. Vamos entrando, tome um café antes de pegar no batente. Acabei de passar. Este moço aqui é meu colega do jornal.
— Acho melhor eu ir passando logo a roupa, parece que vem chuva aí — ela falou.
Eu também não podia me atrasar mais, pois escrevia ou copidescava a maior parte das dezesseis páginas do semanário. Embrulhei o livro numa folha do tabloide, guardei na bolsa a tiracolo e me despedi. Saindo pelo corredor lateral da casa, lancei um olhar pelo vitrô entreaberto da cozinha.
Vi Donato abraçando a mulher por trás, mergulhando o nariz em seus cabelos. Havia muita ternura naquele gesto. Percebi que ele não estava tão abandonado assim. E que podia existir romance na velhice.
No centrinho da cidade, confiei o livro ao japonês da Papelaria Yamato, que tinha uma fotocopiadora. Pedi o máximo cuidado na tarefa, que paguei adiantado. E fui martelar no teclado da Olivetti até sexta-feira de tarde, quando a edição diagramada seguia para impressão, em São José dos Campos.
Naquela manhã, o editor ficou esperando que o cronista viesse entregar seu texto semanal, mas ele não apareceu, nem atendeu ao telefone. Preenchi o Recanto das Letras com os suspiros poéticos e saudades de uma professora local, e fechei a edição. Parti fatigado rumo aos braços de minha namorada.
Quando voltei, na quarta-feira seguinte, soube que Francisco Donato tinha morrido. Fora encontrado em sua cama, na manhã de segunda-feira. Devia ter sofrido um infarto. P. J. detalhou a ocorrência. Os vizinhos tinham estranhado o cachorro uivando lamentoso no quintal, desde a quinta-feira passada. Acharam a porta da cozinha destrancada. Francisco estava nu, debaixo de um lençol. Morto há cinco dias, no mínimo. A casa estava arrumada e limpa.
Ouvi o relato e disse alguma banalidade do tipo "ele parecia um bom sujeito, era muito educado, escrevia bem". Preferi guardar minhas suposições sobre sua última noite no planeta, e proteger o anonimato de Imara.
O próprio P. J. Campos escreveu o obituário do velho colaborador, texto que retoquei e adornei com um verso oracular de Mário de Andrade: "só o esquecimento é que condensa". Mas nunca vou esquecer da pequena montanha de palitos queimados sobre a pia da cozinha. Nem da expressão no rosto do velho, abraçado à última companheira.
Não enquanto eu tiver esta primeira edição de Paulicéia Desvairada.
[28/04-04/05/2018]
setembro, 2018
Luiz Roberto Guedes, poeta, escritor, tradutor, letrista e publicitário. Nasceu e vive em São Paulo. Publicou Calendário Lunático/Erotografia de Ana K, poemário bilíngue, português/italiano (2000), Minima Immoralia / Dirty Limerix (2007), a novela histórica O mamaluco voador (2006), e a coletânea de contos eróticos Alguém para amar no fim de semana (Editora Annablume, 2010). Organizou Paixão por São Paulo, antologia poética paulistana (2004), com 72 poetas, de 1921 a 2003. É autor de vários livros juvenis, como Lobo lobão lobisomem (1997), Treze Noites de Terror (2002), Armadilha para lobisomem (2005), O caçador do arco-íris (2007), e Meu Mestre de História Sobrenatural (2008), obra selecionada pelo Proac – Programa de Ação Cultural da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Suas obras Treze Noites de Terror e O Livro das Mákinas Malukas foram adotados pelo MEC dentro do PNBE — Programa Nacional Biblioteca na Escola. Ganhou o Prêmio Escriba de Contos (1997), Prêmio de Poesia Lilia Pereira da Silva (1999), Prêmio de Poesia Helena Kolody (2001) e o Prêmio Nacional de Contos de Ficção-Científica (2007) da revista SCARIUM. Letrista sob o pseudônimo de Paulo Flexa, tem parcerias com os compositores Luiz Guedes & Thomas Roth, Beto Guedes, César Rossini, Madan, entre outros.
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