"Desde que voltei do almoço não saí daqui, desta sala, desta mesa, deste embrulho no qual não mais toquei. Nem precisava: basta olhá-lo. Se me metesse a escrever um livro sobre o que está acontecendo, alguém acharia nesse embrulho, vindo brutal e inesperadamente do passado, uma referência, associação ou plágio da Madeleine de Proust — e aí me cobrariam um romance. E como não há romance, além da pretensão, constatariam o meu fracasso". É através da metalinguagem, com a ironia (típica de Carlos Heitor Cony ao fazer qualquer observação sobre si mesmo) de sua definição como um "quase romance", que é escrita a "biografia autobiográfica" Quase Memória.  O romance é escrito por um certo Carlos Heitor Cony, que é quem conduz a narrativa. O autor e o narrador são jornalistas, foram seminaristas, tiveram um pai jornalista. Entretanto, não se pode dizer que são a mesma pessoa. Um é real, o outro pertence ao universo da ficção.

Ler Quase memória é se deixar fazer parte de uma brincadeira (é possível ler Carlos Heitor Cony sem segurar um riso irônico nos lábios?) em que não se distinguem os pontos de contato entre o famoso e real Cony e o fictício Cony. Cony escreve com a leveza de uma crônica. O livro é um passeio pelo cotidiano. As memórias nos transportam para um dia a dia distante quase um século de nosso presente: o Rio de Janeiro da primeira metade do século XX. As ações e os personagens, alguns existiram de fato; outros, não se sabe se são fictícios. Se as memórias não são inteiras (são "quase" inteiras), às vezes parece que se trata de um romance histórico, às vezes de um romance histórico.

O pai de Cony faleceu há anos. O pai de Cony, morto, acaba de enviar um pacote ao filho. O pacote repousa sobre a mesa de trabalho do filho. Abri-lo significa desvendar o mistério do "retorno" do pai, uma espécie de fantasma empacotado do rei Hamlet. A simples ação da abertura do pacote é retardada durante todo o enredo para permitir que se abra ao leitor um ouro pacote: as lembranças do filho, que trazem a presença do pai e preenchem a lacuna de sua morte. A morte passa a ser posta em dúvida, e vemos que o pai, para o narrador, mergulhou em uma espécie de terceira margem do rio (de Janeiro). O presente sobre a mesa é uma espécie de caixa de Pandora, e a narrativa é uma espécie de fio de Ariadne que o autor solta para que as suas lembranças não percam a âncora com o presente.

Há nestas memórias a referência (e principalmente a reverência) à figura paterna: o pai conselheiro, o pai castrador, o pai amoroso. O pai não apenas genealógico, mas o pai metafórico: o padre, o professor, o chefe, a autoridade pública — todos personificados na figura de seu pai, o também jornalista Ernesto Cony Filho (substantivo próprio), desfilando pela memória do filho (substantivo comum) numa tentativa de ressuscitar o pai perdido. Nesse sentido, pode-se dizer que Quase Memória é, para Cony (filho), uma saudade.

Carlos Heitor Cony foi seminarista por anos. Abandonou o Seminário, mas não o cristianismo. Ao escrever este livro, busca uma aproximação espiritual não só com seu falecido pai, mas também com o Pai que, para ele, ainda vive. Quase Memória é também um livro sobre a fé. É uma ponte que busca (re)ligar o homem (filho) ao pai (Deus). Numa leitura menos transcendental, como em toda autobiografia, as memórias deste livro são também uma tentativa de pintar com tintas definitivas a vida do pai do autor e, por conseguinte, eternizar, ficcionalmente, a vida do próprio Carlos Heitor Cony. Novamente, como em suas crônicas, Cony exagera na (falsa) modéstia, escancarando a vaidade intelectual que sempre tentou esconder em seus textos.

Se a ação de uma narrativa se caracteriza pela construção de nós que precisam ser desatados, a metalinguagem em Quase Memória é personificada no embrulho sobre a mesa do filho, cujo pacote é hermeticamente (literariamente?) fechado e envolto por um nó, cujo laço exige, na descrição de Cony (filho), verdadeira habilidade artística (do pai): "O nó era dado com uma só mão, que não se cruzava com a outra. Uma pessoa normal, na hora de dar o nó, precisa às vezes de uma terceira mão, para firmar as duas linhas do barbante junto ao embrulho, e assim dar a laçada final". Uma terceira mão, uma terceira margem. O narrador, em primeira pessoa, é a trindade que amarra o passado ao presente, a vida à morte, a realidade à ficção. Cabe ao leitor, desatar este nó.

 

 

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O livro: Carlos Heitor Cony. Quase memória.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, 244 págs.

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março, 2019