Todo leitor que trafega entre Literatura e Cinema já disse algum dia a seguinte frase: "Gostei mais do livro". Dificilmente haverá quem diga: "Gostei mais do filme", embora a transposição de um meio de comunicação para outro tenha duas mãos e o contrário possa ser tão plausível quanto a afirmação inicial. O filme pode perfeitamente se tornar uma obra com méritos estéticos superiores ao livro que lhe deu origem.
Na verdade, o problema persegue o Cinema desde o início, porque, tendo nascido como mero entretenimento de feira e sido relegado a um plano de comércio sem maior significação durante muito tempo, demorou muito para que fosse considerado a "Sétima Arte". E, mesmo quando o foi, sua maciça ligação com a indústria (via Hollywood, principalmente) sempre deixou críticos mais elitistas e cultos com um pé atrás, achando que as adaptações de fontes literárias e teatrais "nobres" seriam sempre, necessariamente, concessivas e com largas margens de vulgaridade e cafonice. Isso, na verdade, não é uma objeção inteiramente sem sentido, já que para popularizar os clássicos literários, Hollywood usou e abusou de truques e macetes discutíveis.
Os admiradores de certos livros clássicos ficam imaginando que poderiam dar grandes filmes na mão de grandes diretores, mas o irônico é que diretores de real grandeza como um Hitchcock fizeram objeções a esse tipo de adaptação. Ao ser indagado se não seria o cineasta mais adequado para adaptar Crime e castigo, de Dostoiévski, Hitchcock respondeu que o clássico era obra de um outro, que para adaptá-lo com justiça teria que reproduzir todos os diálogos e situações do romance famoso. Ele, na verdade, adaptou alguns livros para o cinema, mas quase sempre de olho na bilheteria e insuflado — caso de Rebecca, romance original de Daphne Du Maurier — pelo produtor (David O. Selznick). Rebecca é uma variação de Jane Eyre adocicada, que tinha muitos aspectos de contos de fadas e um potencial comercial evidente, que Selznick queria, claro, aproveitar. Hitchcock preferia adaptar livros comerciais menores, que transformava com mais facilidade em obras suas, bem melhores ou mais satisfatórias que o material literário (ou subliterário) que as originou. O ainda impressionante Os pássaros, que ele transformou numa parábola apocalíptica comparada por alguns críticos ao romance A peste, de Camus, veio de um conto da infalível Du Maurier, do qual ele aproveitou o que quis, deixando o resto como bagaço.
Também consta que Luchino Visconti teria querido adaptar Em busca do tempo perdido, de Proust, num lance de pretensão que teria, a meu ver, se provado um monumental fiasco. Mas isso foi uma ideia insistente nele, que já teria inclusive convidado Greta Garbo a retornar ao Cinema no papel de uma das personagens do livro, a Rainha de Nápoles. Nem Garbo voltou nem o filme foi feito. Mas certamente há algo de proustiano na adaptação perfeita que Visconti fez de O leopardo, originado de um romance de Lampedusa.
Nesse particular, quero indicar aqui um livro que todo cinéfilo ou estudioso livre de Cinema deve adquirir: A literatura através do cinema, de Robert Stam, pela editora UFMG. Há análises fartas de muitos livros adaptados para o Cinema, mas achei particularmente reveladora a maneira como Stam abordou três adaptações diferentes de Madame Bovary de Flaubert, por Jean Renoir, Vincente Minnelli e Claude Chabrol. A personagem da adúltera clássica de Flaubert viajou por esses três filmes assumindo aspectos diferentes, sendo o de Hollywood, por Minnelli, com Jennifer Jones no papel principal, o mais concessivo. Não conheci a adaptação de Renoir, que está um tanto esquecida, mas fico com a de Chabrol, onde Isabelle Huppert, para variar, está espetacular. O filme de Chabrol nos dá quase a sensação de uma adaptação modelar, pois há trechos inteiros em que a gramática cinematográfica acompanha muito de perto a do original e a narrativa ganha em dimensões que o leitor do livro achará muitíssimo adequadas. Isabelle Huppert faz uma diferença enorme. Assistam a sua Madame Bovary e vejam se ela não é realmente grandiosa.