©anna martins
 
 
 
 
 
 
 

"A injustiça vai por aí com passo firme.

Os tiranos se organizam para dez mil anos".

Bertolt Brecht

 

 

 

 

De Sol a Sol

De chuva a chuva

Suor e incômodo

Secura e umidade

 

O corpo atravessa a estrada

De multidão e poeira

Sobe e desce a montanha

Pedra que rola

 

No céu, a ave voa

Migra, programada

Para bicar as entranhas de um titã

Triste

 

Todos os animais estão desolados

Mas somente um

Percebe.

 

 

 

 

 

 

 

 

Você não conhece Anamaria

Menina-sanduíche da Rua Goitacazes

Anunciando vagas de estacionamento?

 

Por trás da placa de Anamaria existem

Dezesseis anos de passado, uma barriga

E uma futura menina-sanduíche

 

Que se quiser continuar

Anunciando vagas de estacionamento

Não pode engravidar do patrão, Anamaria!

 

 

 

 

 

 

 

 

Salomão, que recebia seiscentos e sessenta e seis talentos de ouro de tributo ao ano

Disse que tudo é vaidade debaixo do Sol e que nada faz sentido

 

Salomão, que só se servia em taças de ouro

Disse que tudo era uma grande inutilidade e que todas as coisas davam canseira

 

Salomão, que possuía uma frota de naus que lhe trazia marfim, prata e ouro

Disse que os olhos não se saciam de ver, nem os ouvidos de ouvir

 

Salomão, que usou milhares de trabalhadores para construir o Templo de Israel

Disse: "Que fardo pesado Deus pôs sobre os homens!".

 

 

 

 

 

 

 

 

As montanhas poderiam nos salvar

Se quisessem

Mas por que o fariam

Feridas de morte, ontem mesmo, à tarde?

 

É por isso que, na má vontade, deixam

Transbordar as barragens e descer a lama

E não usam seus longos braços de minério

Muito menos caminham suas poderosas patas

 

As montanhas fingem inércia e riem

Discretamente, enquanto desaparecemos.

 

 

 

 

 

 

 

 

Sou um filantropo e por isso me preocupo com a vida das crianças

Por isso as emprego em minha fábrica

Pois se não as empregasse elas estariam nas ruas, famintas

E sem sustento

 

Porque se não estivessem em minha fábrica, famílias inteiras

De seis, sete, oito, nove filhos, estariam desprotegidas

E me preocupo muito com as crianças que, se passam 12 horas

Produzindo brinquedos em minha fábrica, chegam em casa e dormem

Exaustas, incapazes de fazer o mal, pois a cabeça vazia

É a oficina do diabo, a minha fábrica

Tive lá uma ideia incrível (revelada em sonho)

Decerto, um recado do anjo Gabriel, o anunciador de crianças:

 

Em minha fábrica, enquanto elas trabalham por 12 horas

Eu as ensino a cantar lindas canções alvissareiras

Para que se distraiam e se lembrem de que o trabalho

Dignifica o homem.

 

 

 

 

 

 

 

 

Animal ressentido, aguarda que o leão coma a girafa

(que o leão não fareje o seu medo por trás da touceira)

Animal ressentido, aguarda que as hienas comam os restos da girafa

(que as hienas não farejem a sua raiva por trás da touceira)

Animal ressentido, corre em campo aberto para chupar os ossos

(que os abutres não farejem a sua fome de abutre).

 

 

 

 

 

 

 

 

Uma mulher procura um milagre para os seus pratos vazios e dá de cara com uma placa:

Não há vagas

 

Não sabe de que jeito voltará para casa, um barraco com três aluguéis atrasados e:

Não há vagas

 

Os filhos choram, já de antemão, terá que entregá-los à tutela do Estado se:

Não há vagas

 

As mãos calejadas se juntam/ A igreja é no caminho do fracasso/ Ela conversa com Deus contando-Lhe/ Aos prantos/ Como se Ele não soubesse, que:

 

Não há vagas.

 

 

 

 

 

 

 

 

Muitos búfalos mortos por flechas ordinárias

Destas feitas de manhã em grandes feixes

Fazer as flechas e depois partir matando búfalos

E fazer mais flechas, pois há também o veado

E o bisão

Sentar-se, fazer mais uma flecha e outra e outra

De modo a matar bisões, mas nunca o tédio

 

Fazer flechas e mais flechas e mais flechas

Até demorar o tempo de fazer dez delas

Fazendo uma apenas: aquela

 

Em que na ponta se dará o formato de uma amêndoa

Onde se sulcará riscos imitando uma folha

Em que se pintará a cor de um céu vermelho

E inútil

 

Matar antes da caçada o animal diário

Que começa a aprender a consolar-se.

 

 

[Poemas do livro inédito, Tripalium]

 

 

março, 2019

 

 

Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, Ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (Confraria do Vento, 2015), Enlouquecer é ganhar mil pássaros (e-book pela Vida Secreta, no Issuu, 2015) Embrulhado para viagem (Coleção Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (Penalux, 2018).

 

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