"A injustiça vai por aí com passo firme.
Os tiranos se organizam para dez mil anos".
Bertolt Brecht
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De Sol a Sol
De chuva a chuva
Suor e incômodo
Secura e umidade
O corpo atravessa a estrada
De multidão e poeira
Sobe e desce a montanha
Pedra que rola
No céu, a ave voa
Migra, programada
Para bicar as entranhas de um titã
Triste
Todos os animais estão desolados
Mas somente um
Percebe.
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Você não conhece Anamaria
Menina-sanduíche da Rua Goitacazes
Anunciando vagas de estacionamento?
Por trás da placa de Anamaria existem
Dezesseis anos de passado, uma barriga
E uma futura menina-sanduíche
Que se quiser continuar
Anunciando vagas de estacionamento
Não pode engravidar do patrão, Anamaria!
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Salomão, que recebia seiscentos e sessenta e seis talentos de ouro de tributo ao ano
Disse que tudo é vaidade debaixo do Sol e que nada faz sentido
Salomão, que só se servia em taças de ouro
Disse que tudo era uma grande inutilidade e que todas as coisas davam canseira
Salomão, que possuía uma frota de naus que lhe trazia marfim, prata e ouro
Disse que os olhos não se saciam de ver, nem os ouvidos de ouvir
Salomão, que usou milhares de trabalhadores para construir o Templo de Israel
Disse: "Que fardo pesado Deus pôs sobre os homens!".
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As montanhas poderiam nos salvar
Se quisessem
Mas por que o fariam
Feridas de morte, ontem mesmo, à tarde?
É por isso que, na má vontade, deixam
Transbordar as barragens e descer a lama
E não usam seus longos braços de minério
Muito menos caminham suas poderosas patas
As montanhas fingem inércia e riem
Discretamente, enquanto desaparecemos.
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Sou um filantropo e por isso me preocupo com a vida das crianças
Por isso as emprego em minha fábrica
Pois se não as empregasse elas estariam nas ruas, famintas
E sem sustento
Porque se não estivessem em minha fábrica, famílias inteiras
De seis, sete, oito, nove filhos, estariam desprotegidas
E me preocupo muito com as crianças que, se passam 12 horas
Produzindo brinquedos em minha fábrica, chegam em casa e dormem
Exaustas, incapazes de fazer o mal, pois a cabeça vazia
É a oficina do diabo, a minha fábrica
Tive lá uma ideia incrível (revelada em sonho)
Decerto, um recado do anjo Gabriel, o anunciador de crianças:
Em minha fábrica, enquanto elas trabalham por 12 horas
Eu as ensino a cantar lindas canções alvissareiras
Para que se distraiam e se lembrem de que o trabalho
Dignifica o homem.
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Animal ressentido, aguarda que o leão coma a girafa
(que o leão não fareje o seu medo por trás da touceira)
Animal ressentido, aguarda que as hienas comam os restos da girafa
(que as hienas não farejem a sua raiva por trás da touceira)
Animal ressentido, corre em campo aberto para chupar os ossos
(que os abutres não farejem a sua fome de abutre).
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Uma mulher procura um milagre para os seus pratos vazios e dá de cara com uma placa:
Não há vagas
Não sabe de que jeito voltará para casa, um barraco com três aluguéis atrasados e:
Não há vagas
Os filhos choram, já de antemão, terá que entregá-los à tutela do Estado se:
Não há vagas
As mãos calejadas se juntam/ A igreja é no caminho do fracasso/ Ela conversa com Deus contando-Lhe/ Aos prantos/ Como se Ele não soubesse, que:
Não há vagas.
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Muitos búfalos mortos por flechas ordinárias
Destas feitas de manhã em grandes feixes
Fazer as flechas e depois partir matando búfalos
E fazer mais flechas, pois há também o veado
E o bisão
Sentar-se, fazer mais uma flecha e outra e outra
De modo a matar bisões, mas nunca o tédio
Fazer flechas e mais flechas e mais flechas
Até demorar o tempo de fazer dez delas
Fazendo uma apenas: aquela
Em que na ponta se dará o formato de uma amêndoa
Onde se sulcará riscos imitando uma folha
Em que se pintará a cor de um céu vermelho
E inútil
Matar antes da caçada o animal diário
Que começa a aprender a consolar-se.
[Poemas do livro inédito, Tripalium]
março, 2019
Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, Ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (Confraria do Vento, 2015), Enlouquecer é ganhar mil pássaros (e-book pela Vida Secreta, no Issuu, 2015) Embrulhado para viagem (Coleção Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (Penalux, 2018).
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