A mata da Biquinha
O apocalipse ambiental está aí não é de hoje
mas a nascente que abastece a minha aldeia estava protegida
— água fresca e pura.
Nesta semana, a matinha em volta da nascente pegou fogo
o fim do mundo direcionou sua sede
— para a água fresca e pura da minha aldeia.
Cinza e carvão
O homem é cinza do
homem que cinza é
do que é cinza
Daquele que é cinza
do que cinza é
do homem que é carvão do
Homem que carvão é
do homem que é carvão
do que é cinza é carvão
Da árvore
que já não é.
O último soneto comunista
Ó, meu amor, vamos para Moscou
lá compraremos kit gay e mamadeira fálica
lá comeremos criancinhas trazidas dos States
lá, ó, Moscou, lá seremos ricos e sanguinários.
Ó, meu amor, só em Moscou seremos piratas cibernéticos
só em Moscou tomaremos a vodka que o diabo fermentou
só em Moscou mataremos mil vezes Maiakovski
só em Moscou, em mais nenhum lugar.
Ó, meu amor, onde mais seremos bandidos livres?
Onde mais seremos terroristas com carteira assinada?
Onde mais?
Deus não caminha por suas ruas
os bons costumes não fazem parte da boa educação
Moscou, ó, Moscou, achado redivivo da paranoia delirante.
O carnaval dos dias seguintes
Para Fernanda Morishita, que viu, numa foto,
pessoas desatravessando a rua
Não vem carro, não vem moto, nem bicicleta vem
assim mesmo você opta por desatravessar a rua
e esquecer as auroras
e esquecer as manhãs
e esquecer que seus passos aprenderam a andar para frente
sempre para frente.
Agora não
agora você desatravessa a rua e volta para a calçada
e volta para o hall do prédio e volta para o elevador
e volta para a sala de sua casa e dá as costas para a janela.
Mais que isso
você veste antolhos
você veste luto pela alegria que já já vai esboroar
você veste a retidão dos hipócritas.
Não há mais o que desatravessar
você descaminhou pela rua, descaminhou pela calçada, pelo elevador você descaminhou
mais um passo para trás e você dará início ao balé para uma morte indesejada.
Não
não é sua essa força
que a retém, que a empurra contra a parede, que não a deixa ir
é deles, vem deles.
Se você esperar um pouco, ainda que seja nessa escuridão
um abraço meu e de mais alguém
vai alcançá-la e, em vez de enterrar, rebatizaremos a alegria
e brincaremos sem pressa o carnaval dos dias seguintes.
Três balas
I
Mamãe, o que é isso?
Bala, meu filho, bala.
Posso chupar, mamãe?
Ora, não seja bobo, não é de chupar.
Não?
É bala de matar.
E ela matou alguém?
Veja se seu pai está vivo.
Pai?
Pai?
Pai?
II
Mamãe, o que está escrito aqui?
Eita, menina, onde você arrumou essa coisa?
Estava no meu coração.
No seu coração?
Mamãe, eu vinha andando pra casa, senti uma dorzinha
No coração?
Sim. Aí meti a mão lá dentro dele e de lá tirei isso. O que está escrito?
Está escrito teu nome, minha filha, teu nome completo. Minha filha?
III
Mamãe, a chuva hoje está mais barulhenta.
Ó, minha filha.
Mamãe, será que vai inundar a casa de novo?
Ó, minha filha, seria melhor que inundasse.
É, mamãe?
Ó, minha filha.
É uma água seca que tá furando o teto e arde quando bate na cabeça.
Ó.
Minha filha?
Depois de o exército matar um músico com 80 tiros
8 ≠ 80
8 seria muito
80 é dez vezes o muito.
A vítima foi uma só
só que 1 = ∞.
dezembro, 2019
Alexandre Brandão é um escritor esforçado, não escreve para a plateia, mas é para a plateia que escreve. Tem livros de contos e crônicas. Suas crônicas saem na revista Rubem e em seu blogue, No Osso. É do coletivo Estilingues, que lançou, em 2018, a coleção Estilingues 30 (Editora Patuá), com um livro de cada um dos sete autores. Alexandre sonha em ser poeta.
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