Crias
quantos livros escreveste?
respondo que perdi a conta
e na verdade sinto vergonha
de escrever tantos livros desconhecidos
do que tratam teus livros?
publicas histórias ou poemas?
respondo que são variados
e sinto vergonha de escrever sobre o que não sei
vives disso?
sinto-me retorcer, mas alegro-me
em dizer que não:
tenho profissão
dessas que todos sabem o que é
ganhas dinheiro com os livros?
calo uma resposta, ao que eles
admitem que os desconhecem
e revelo um riso entredentes
e passo a falar sobre como é difícil criar filhos
Ultra
Fui mãe de um
de dois de três
dos quais
apenas um
chegou a nascer;
Fui mãe querendo
e sem querer;
a barriga de alguns
nem despontou
para as primeiras
fotografias;
tive a sorte do abraço
e do beijo
de apenas um
dos demais
mal me despedi
nas ultrassonografias.
Carta do velho editor ao colega no séc. XXI
prepara-te, caro,
é muita poeta
pra esconder
sob o tapete.
melhor ouvi-las,
numa boa,
que o tapete delas
voa.
Tradução
Para Sérgio Karam e Denise Sales
A poeta toca com os dedos
uma palavra
em outra língua;
toca com a língua
outra palavra,
quase a mesma.
Não é a mesma?
É, ainda. Ou quase.
E apenas se aproxima.
Um sentido travestido
de outros sons:
na captura impossível da rima.
Testamento
Post-its com recados
bilhetes em pedaços
de papel de pão:
todos colados
onde não me lerão.
Não o perdoarei por ter me deixado desistir
as linhas do poema
se afogam
enquanto me afagam
lágrimas
que prometem
alívios
impossíveis
Desocupe se não for ficar
Nunca mais visite a poltrona
em que não se quedará lendo mais;
nem a sala em que não assistirá
aos filmes nacionais;
nem a cama em que não dormirá
mais ou jamais.
Nunca mais visite a casa
dos sonhos de alguém
a quem você não corresponderá;
Não ocupe os sonhos, os desejos,
as ancas, a curva que liga os peitos
aos braços, a boca e os ossos
da infeliz amante.
Exame
escanda meu nome
escanda com vagar
sem titubear
enquanto enfia
a sonda
Fake
o braço
sem a alma
não faz abraço;
como beijo
só é beijo
se tem língua & alma;
não basta
só a língua nem o beiço.
a foto sem o corpo
é o fake da presença;
da voz [rouca]
ao mais denso
do corpo
só se mata saudade
com carne & osso.
Agora
Advérbio, susto, tempo em transe. Instante.
Respire fundo, ordenou. O amor é agora.
Fará o favor de se esquecer dos amantes passados,
que atrasam a vida em muitas horas — às vezes décadas;
fará o bem de olhar adiante
e viver apenas o que lhe ocorre aqui,
estando imerso nas situações até que a água
cubra seu nariz. Afunde-se sem se afogar.
[
Respirar corretamente não é simples.
Um médico lhe disse, certa vez, que ele dormia mal
em decorrência de respirar entrecortado, arfar no fim do dia,
não conseguir usar plenos pulmões, jogar a ansiedade no intestino
e travar aquelas talagadas de ar de que todos deveríamos nos embebedar.
]
O amor não pode ser entrecortado, vivido sem fluência.
Amor é sentimento de vida curta, exigente,
sem pretérito algum e sem mais-que-perfeito.
É dessas coisas feito peixe e aquário:
um dia a gente chega e ele está boiando morto
numa água que parecia limpa.
Casal
Substantivo masculino monogâmico — ou não
1. Diz-se de uma dupla composta por pessoas de qualquer combinação entre os sexos, em tese unidas pelo amor.
2. Cabe também aos pombos.
3. Diz-se de quando duas pessoas se fundem, se confundem, desnaturando-se mais a identidade de apenas uma delas.
4. Possibilidade de conjugação de duas individualidades, em geral inconciliáveis.
5. Ver dupla.
6. Pode-se definir com mais otimismo.
Livro
Substantivo masculino aqui singular, sujeito a plural
Objeto controverso, de forma, textura, tamanho e natureza variáveis.
Quase todos concordam: perigoso. Alguns, extremamente.
Habitam à beira da cama, em mesinhas, cadeiras, banquetas,
mas também em estantes onde se juntam — organizadamente ou não — a outros,
menos e mais importantes, e onde repousam virgens ou se dão ao deleite,
sendo indecentemente abertos quando se quer.
Reproduzem-se em máquinas que os copiam à semelhança uns dos outros,
ou de uma matriz, mas desde meados do século XX
vêm se tornando fantasmagóricos, reproduzindo-se antes de existirem
ou existindo por meio de materialidades instáveis e variáveis.
Sensíveis à água e ao fogo, em vários casos, ao toque.
Duráveis, conforme o cuidado de seus proprietários ou a fúria censora do momento.
Feitos para conter, para transmitir e para perturbar, no que têm tido êxito.
Nota da autora: Os poemas "Crias", "Livro", "Casal" e "Agora" foram publicados no Dicionário de Imprecisões. O poema "Ultra" é parte da antologia Elas, a alma, a cura (Editora Páginas, 2019). O poema "Fake" consta no Álbum. "Carta do velho editor ao colega no séc. XXI" e "Testamento" saíram no zine Fluxos, em São Paulo, 2019. Todos podem ter sido levemente alterados para esta Germina. Os poemas "Desocupe se não for ficar", "Não o perdoarei por ter me deixado desistir" e "Exame" estavam inéditos e guardados.
dezembro, 2019
Ana Elisa Ribeiro (Belo Horizonte, 1975). Poeta, cronista e contista, para adultos e mais jovens. Estão entre seus livros mais recentes Xadrez (Scriptum, 2015), Álbum (Relicário, 2018) e Dicionário de Imprecisões (Leme, 2019). Foi curadora, com o poeta Bruno Brum, da coleção Leve um Livro, que distribuiu milhares de livretos de poesia contemporânea brasileira gratuitamente, em Belo Horizonte, de 2015 a 2017. Participa de eventos e antologias nacionais e estrangeiros. É professora do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET) e pesquisa as mulheres no campo editorial.
Mais Ana Elisa Ribeiro na Germina
> Poesia, conto