LUPICÍNIO
Quem vê a coca-cola que ele bebe
não sabe a dor que carrega o chumbo de seu coração
O embriaga o sol da noite humana
ele é o mar que se levanta num lamento urbano
— como uma estrela explodindo por dentro
uma criança solta na tempestade
Vaga flor da selva no centro nervoso da manhã
Toda estrutura desmorona diante de seu sopro
Pelos seus farrapos de carnaval
o ouro inoxidável dos que vivem sem amor
ALI
Mesmo que o amor dure só um dia,
a cidade respira pelos poros dos novos amantes
Ali, amar é estranhar o mundo, ali,
onde os homens & os territórios são uma coisa só
Ali, os poemas ocultam os teoremas
Ali, o amor não tem só 4 letras
Ali, há desordem nas margens,
crise nos verbos, entropia nos nomes
Ali, toda resposta oculta outra pergunta
Ali, cada cadafalso é um altar
(como um coração enraizado à corrente elétrica do corpo
— mesmo que o amor dure só um dia)
Ali, atrás de cada imagem pulsa uma imagem maior
ali, o grito mais cala & a profundidade mais oculta
Ali, toda cicatriz é incurável,
ali, o meio-dia é a noite mais secreta,
ali, o homem velho é a criança
& a criança um homem velho
Ali, os lugares uns nos outros,
os objetos rodeados pelo sangue dos nomes,
os nomes em rotação,
ali
DO CORPO
Nos extremos alumiados do corpo
as palavras sobrevivem
às suas verdades finais
Diamantífero em radiação
o corpo desafia a pura oralidade do instante
sua matéria se alimenta do tempo
Corpos renovados por uma máxima linguagem
revolvidos de seus precipícios
consubstanciados por fervor & ofício
Pelo idioma profano da beleza
corpos se reconhecem em inebriada intuição
(nascidos da cegueira
acumulados em turva combustão)
Pelas múltiplas cicatrizes do hábito
somente em linguagem renovada
dois corpos se abrasam num só clarão
Mestres na arte da urgência
amantes precários reinventam:
do corpo, a própria gramática
do chão, o fluído extremo dos dias
Corpos zelam por seus erotismos
corpos separados por espaços erradios
flores que se colhem sozinhas
corpos curvados em escombros de cidades
De carne a carne
são os prédios que sustentam o céu
são os corpos que movem as estrelas
O corpo: pátria de sangue
terra que brota para fora da lama
mar subvertido noutro mar
A MULHER MAIS TRISTE DO MUNDO
Na calçada dos ouvidos tudo se arquiteta
como se fosse pedra a areia
— avenidas atraem umas a outras & colapsam
Planetas seguem a desabar uns sobre os outros
diariamente
como quem ainda espera por algum astro desastrado ou
como quem confia em algum florescimento forçado
Os colírios cegam nessa colagem de sol desabado
— a avenida, bem se sabe, é de um chumbo improvável
Mas na febre da festa ela nem ouve a carne das palavras;
se penteia com dinamite; escapa por uma fresta
Do caos à catarse, a íris da tarde se transforma em veneno
— na selva de pavimentos de mais um desastre sem astro
(Os doutores certamente entrariam com respostas aqui
— Perguntariam por quantos ossos calcificados em cada prédio construído,
perguntariam pela calçada fria das musas por onde os prédios se equilibram
& pelos nomes dos rubros asfaltos presentes em cada salto —
À noite, as estrelas caem sobre os carros,
sóis desabam como um grande bumerangue de vazio
As plumas estão grávidas dela
— por isso tantas galáxias, por isso tantas galáxias
O eclipse não cura
a mulher mais triste do mundo
COPACABANA
Copacabana te engana
tão longe do Nirvana
inflamada num tormento
cigana & profana
Sereia desgovernada
armadilha inflamada
musa vendada, desnorteada
cidade nua, inviolável?
Ampliada num mar sedento
desalinhada num mar de bruma
Copacabana & seus murmúrios
de um futuro num mapa escuro
Tuas sombras se derramam
numa tarde mistificada
Copacabana desabrigada
deusa crua inevitável?
Brutalista & fatal
difusa & letal
Copacabana se eterniza
nas ruínas de um temporal
O DANÚBIO NÃO É AZUL
Enquanto a noite fabrica seus novos escombros,
gestos incompletos de países anônimos
reluzem pelo lado escuro dos mapas
Pelo outro lado das bússolas, as plantas frutificam
mais súbitas do que o normal —
certas flores nascem por ruídos de outras estações
Violinos & gestos de chuva ecoam para além
das iluminações de nomes magnéticos reverberados
por máquinas de emaranhar paisagens & civilizações
Por de trás das palavras, pedras & sóis,
tensas aprendizagens de galáxias,
luzes primitivas cujas belezas custam a estancar
— verdades selvagens com olhos de evidência
Com o mesmo sangue estrangeiro das primeiras palavras,
o dia & a noite tensamente reconciliados
Feras selvagens & suas fábricas de brilho,
o ritmo desencadeado em substância
O dia perseguido pela noite,
a noite ao dia remendada,
estranhezas em tempos estranhos;
Vênus urinando sobre o caos
A ESTRADA
Antes do antes, a estrada
mais do que real, a estranheza
falsamente familiar
Entre os objetos & seus
estranhamentos, para além
das veias de posteridades próprias,
nenhuma maquinaria de mediação;
o brilho indizível de um clarão
— Perder a vista para encontrar a visão
março, 2019
Augusto Guimaraens Cavalcanti é poeta, ensaísta, romancista e pós-doutorando do PACC-Letras-UFRJ, tendo publicado: Poemas para se ler ao meio-dia (2006), Os tigres cravaram as garras no horizonte (2010), Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho (2012) e Máquina de fazer mar (2016). Atualmente prepara seu quarto livro de poemas, a se chamar O Danúbio não é azul.
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