©daniel forero
 
 
 
 
 
 
 
 

*/

 

 

primeira lição para estripar um homem:

estripa-se o seu nome em praça suja

sua língua na lama sua sombra na sombra

em cada passo um golpe de medo

e no segredo que nunca houve

as larvas de milhões de segredos

 

segunda lição para estripar um homem:

para saber sua altura usar a régua do porco

a régua do rato a métrica do nojo

a balança do fogo:cada quilo valerá

menos que o outro e cada centímetro

um corpo a menos: a menos que o corpo

se jogue da ponte ou do porto

e poupe o inútil trabalho da vila

de matar um homem morto

 

terceira lição para estripar um homem:

não se estripa um homem só:

estripam-se os avós e netos

amigos silêncios e objetos

que cercam o homem a ser estripado

e tudo deverá caber no mesmo saco

um mundo inteiro reduzido

ao suposto fato de que tudo

retornará ao nada de que foi originado

 

quarta lição para estripar um homem:

estripa-se a palavra do homem

o dito o não dito o interdito

naquilo que sendo fala também cala

o que o torna homem: sua palavra

de homem que agora estripada

vale nada ou menos o que a pele

diria à faca: bem-vinda, senhora

sinta-se em casa

 

quinta lição para estripar um homem:

após estripado lança-se tudo

no fosso do fundo do calabouço

entre outros tantos estripados

carcaças de sonhos pedaços de loucos

para que até o fim dos tempos

de nenhum corredor possa brotar

o vivo reflexo de seus olhos

 

sexta lição para estripar um homem:

a vila inteira deverá lavar a praça

as ruas as casas as igrejas as estradas

e a própria vila deverá mergulhar

e manchar o rio com o vermelho

que escorrer de suas roupas pálidas

e queimá-las numa fogueira imensa

e caminharem nus e em silêncio

cada um em direção à cova de sua casa

 

última lição para estripar um homem:

verificar com exato cuidado

se a baleia não quer vomitá-lo

se não possui uma flauta de pedra

ou uma antiga lira afiada

que faça arrepiar a terra:

neste caso foi inútil estripá-lo:

multiplicado milpartido libertado

ele rompe a corrente do tempo

e atinge maior o outro lado:

inútil o sono da vila enquanto

canta o estripado

 

 

 

 

 

 

*/

 

 

jack e eu nos damos razoavelmente bem:

o suficiente para não nos matarmos:

difíceis são as noites porque jack reza muito

e seu arrependimento aparentemente sincero

inunda o chão: é preciso levantar

no meio da noite e molhar os pés

nos pedidos de perdão de jack: há muitas vidas

em sua vida na vida de sua navalha de aço

no gume de seu bisturi sedento:

jack reza e geme e se arrepende

com aparente sinceridade: penso se algum dia

ele secará se ele transbordará até

a última gota se tudo de repente sairá dele

por simples cansaço desidratação da culpa

ou perdão de algum deus impaciente

que diga: chega jack: deixe os outros

dormirem em paz deixe de inundar o chão

na madrugada deixe os mortos em paz

não os faça flutuar na barca furada

do teu pedido de perdão: a canoa do perdão

também naufraga no cotidiano: talvez então

jack se cale e nos deixe dormir em paz

sem a umidade debaixo da cama

e não como fetos que acordam cobertos

de musgo e sangue e água: mas no fundo

duvido que essa noite chegará: são muito sujas

as duas mãos de jack seu abdômen de inseto

seu olhar que pouco pisca: eu e ele

nos damos razoavelmente bem: mas não

o suficiente para que minha navalha

não durma embaixo do meu travesseiro

a um toque da minha mão esquerda

 

 

 

 

 

 

*/

 

 

o enterrado vivo está vivo: o sol

não percebeu sua falta: a noite chega

sem aviso e deita noite sobre a noite

do enterrado vivo: é noite sempre

onde o enterrado vivo está: é sempre

noite quando o enterrado vivo é:

mesmo que cave em todas direções

estará vivo e enterrado: um tabuleiro de xadrez

nas paredes e o calendário inútil: para quem

enviar sinais de fumaça código morse cartas cifradas?

gastar seu aramaico com os vermes para quê?

enterrado vivo com seus livros para quê?

enterrado vivo: maldito enterrado vivo:

cravo na lapela flores ao redor a sombra acesa

de uma aliança: tudo vivo e enterrado

com o enterrado vivo: ele ainda é livre

para cantar: a música reverbera nas paredes

e no terceiro acorde já é outra música:

as palavras ricocheteando nos cantos:

fonemas bêbados se abraçando no ar

em busca de uma língua: os vermes

permanecem fora à espreita da morte

do enterrado vivo: reclamam da demora:

seus pulmões reciclam o ar? seus olhos

escondiam luz em que retina falsa?

os dias passam e os vermes esperam:

chove e os vermes esperam: é triste

a vida dos vermes: esperar a morte incerta

do enterrado vivo: o enterrado vivo vive:

vai libertando aos poucos a memória aprisionada:

a luz atravessando o quarto: a gargalhada

inundada de maresia: as portas se abrindo

e ela entrando vestida de sol: cães acompanhando

a volta para casa e logo desaparecendo:

bolinhos quentes de chuva brilhando entre

açúcar e canela: a voz livre ecoando no teatro:

o cheiro de uma mulher que se perdeu na multidão:

tudo vivo no enterrado vivo: nem alucinação

nem febre: só a pressão do ar nos tímpanos

que às vezes atravessa o hipotálamo: a palavra

hipotálamo e de repente o riso detonado

pelo falso cognato: qual o diâmetro

do hipotálamo de um hipopótamo? libélulas

têm hipotálamo? elas conseguem ver seu reflexo

enquanto colhem gotas? lesmas podem sofrer

de labirintite? ouriços da polinésia que vivem

cento e cinquenta anos têm memória da infância?

o enterrado vivo ri: e ao saber que ri gargalha:

do lado de fora os vermes o escutam gargalhar

e se eriçam: devem ser gritos espasmos haustos

de sufocamento ou um possível enforcamento

com a gravata lilás: depois o silêncio: os que estão

mais próximos avançam um pouco seus úmidos

passos de verme: mas não: o chão ainda vibra

ainda há calor na terra: amargurados

deitam-se em círculo e esperam: maldito

enterrado vivo: capaz que mesmo morto continue:

como saber a hora de cavar salivar devorar?

haverá corpo ou num último blefe o desgraçado

provoque combustão espontânea? mumificação?

talvez se confunda com as flores? talvez

salte direto para o estado mineral: pedra

carvão cobalto urânio radioativo: triste

e incerta a vida dos vermes: no fundo

mais profundo o enterrado vivo aflora:

nem fogo-fátuo nem fluorescência de pétalas:

de alguma forma o enterrado vivo aflora

e dança: dança por dentro no centro onde

tudo começa: e sem pressa respira e dorme

e acorda: ontem sonhou que era uma trufa negra:

os cães da antiga madrugada devem estar a caminho

 

 

 

 

 

 

*/

 

 

durante a madrugada as formigas caminhavam

na parede lateral: a princípio era divertido

calcular o trajeto e a quantidade: imaginar

quantas permaneciam dentro da parede

dormindo talvez: se é que formigas dormem:

ou adivinhar a forma aproximada que desenhavam

na parede lateral: às vezes a forma de um punhal:

outras de um punho fechado: numa das vezes

desenharam com certeza a demoiselle de dumont:

mas nas últimas noites elas eram muitas: talvez

houvessem se multiplicado ou acordado

as que dormiam: se é que formigas dormem:

ou convocado de outras paredes outras formigas:

no meio da madrugada a parede estava negra

e aquela sombra se movia na parede imóvel:

a pele negra de uma nuvem na parede lateral:

talvez a comida as atraísse: trancou-se tudo

com todos os nós lavou-se tudo e arrancou-se

da pele e das roupas qualquer escama de suor:

elas surgiam e caminhavam nuas e negras

na parede lateral: rastreamos cada buraco

e com pedaços de sabão vedamos tudo:

elas abriam por entre sabão e parede

o seu caminho na madrugada e de repente

lá estava sua nuvem negra: abrimos

as aberturas e queimamos o pior tabaco

por dentro das frestas: talvez a fumaça

as incomodasse: nada: agora a nuvem negra

possuía cheiro: dormimos entre fumo e negrume

na parede lateral: de cada fresta fechada

brotavam duas: elas deviam estar por trás

de cada parede por entre os canos equilibrando-se

nos fios fecundando os buracos dos tijolos

e as brechas da argamassa: uma parede negra

movendo-se por dentro da parede: uma noite

choveu a noite inteira e elas não apareceram:

torcemos para que tivessem se afogado ou mudado

de ninho: talvez houvesse um ciclo que se fechasse

com a chuva: na noite seguinte elas estavam lá

e pareciam maiores: não só na parede lateral:

agora ocupavam o teto também e a porta

de entrada: por baixo dos colchões

e nas dobras dos lençóis e das toalhas:

por entre as páginas dos livros e sobre

as escovas de dente: nos pratos e copos

e nos círculos brancos do papel higiênico:

dormimos no chão nas noites seguintes

no centro daquela teia: elas caminhavam

durante a madrugada como sonâmbulas:

formavam desde o início uma espiral:

os invasores éramos nós: calculamos

então o tempo decorrido desde a primeira

madrugada e escolhemos a noite em que o nó

atingiria o extremo de seu centro: o resto

de comida os lençóis o tabaco e os colchões

amontoados deveriam ser suficientes:

elas caminhavam agora por entre nossos pés:

o isqueiro está no fim mas há de servir

uma última vez: assim que elas descerem

do teto ou subirem do chão no primeiro de nós

tudo estará terminado: a não ser que sempre

tenha sido esse o plano: como gargalha

uma formiga?

 

 

 

 

 

 

*/

 

 

o mais selvagem dos homens

tece tranquilamente origamis

em sua trincheira: bombas e balas

ensurdecem e ajudam na concentração:

depois quando o barulho cessa

enquanto os normais realimentam

suas armas normais ele solta

seus origamis no vento repletos

de veneno: toda guerra verdadeira

toda batalha que se preze é travada

no silêncio: depois ele se põe de pé

acende o primeiro cigarro do dia

e levemente oscila entre os dois pés

numa dança muito antiga que toda

criança conhece: de um lado para

o outro de um lado para o outro

como um metrônomo de orquestra:

ele não lembra mais a praia da infância

nem a primeira montanha que enfrentou:

não traz mais em si o primeiro jardim

nem a primeira mulher: mas em seus pés

e em suas mãos ficaram guardadas

as dobras dos origamis o veneno

cujo segredo final é sua própria saliva

e a dança quase imóvel plantada

em seus pés: o mais selvagem dos homens

dança silenciosamente na trincheira

enquanto escuta os que sufocam

do outro lado do campo para onde

o vento soprou: não acredita

no sentido da guerra mas acredita

que não acreditar não adianta nada:

ele foi lançado dentro dela

feito uma brasa quase apagada

é lançada de novo no meio do fogo:

para queimar e cumprir seu brilhante

destino de brasa: depois é tudo cinza

e ele espera esse momento com calma:

apaga o primeiro cigarro da manhã

e escala a trincheira não como um

ressuscitado mas como alguém que

bebeu demais e caiu no primeiro buraco

e adormeceu: o sol vai alto quando

ele termina de cruzar o campo santo

que seu veneno semeou: eram todos

delicados antropófagos ele pensa e sorri:

escuta ao longe além da linha cinza

do horizonte novas balas e bombas:

eles não se cansam: ele senta

à sombra de uma árvore e lentamente

conta as folhas de seu alforje:

folhas de seda de todas as cores:

prefere as brancas e azuis mas sabe

que por algum profundo mistério

as amarelas funcionam melhor:

vão mais leves e longe e quando

pousam entre os normais fazem

com extrema eficiência seu trabalho:

ele começa a dobrar as folhas

medir as curvas criar os ângulos

e de dobra em dobra tece as formas

que decidem quase por si mesmas

aquilo que serão: estrelas e rãs

e gansos e balões e mulheres e crianças

coloridas: guarda seu exército de papel

com todo cuidado ergue-se da sombra

e começa a atravessar o campo de trigo

maduro por uma estreita trilha:

na ponta de seus dedos todas as cores

se misturaram e ele roça as hastes

enquanto caminha: os que comerem

do pão daquele trigo também morrerão

ele sabe: mas isso talvez poupe

guerras futuras e futuros origamis:

o mais selvagem dos homens

está agora no centro do campo

e nenhum corvo por mais inteligente

saberia a diferença entre a sua figura

e a de um espantalho qualquer

 

 

 

 

 

 

*/

 

 

uma cobra comendo um lagarto é um espetáculo:

uma ninfa devorando um sátiro não faria o mesmo

teatro: a espiral certeira: as escamas contra a pele:

as caudas entrelaçadas: os espasmos a princípio

frenéticos: depois pausados: primeiro a cabeça na boca

úmida dilatada: depois as patas lentamente uma a uma

dobradas entre a mucosa fímbria: depois cada vez

mais líquido o tronco sendo engolido passo a passo

no que agora é o fim e o início de um caminho:

réptil de repente anfíbio dentro de um túnel

primeiro vermelho depois escuro e íntimo: a língua

agora inútil tateando o que é covil e cova mergulho

e infinito: por fim a ponta da cauda língua às avessas

entre o verde e o limo: depois as contorções

do que ainda vivo tenta abrir no escuro o que não é

nem areia nem muro: apenas fibra dormente

que a cada giro muda a natureza da parede:

o viscoso muco: e de repente o frio contra

o frio e a falta de ar como última sede: não há

como ir para voltar nem voltar onde tudo é

círculo: a cobra se apoia contra a pedra

e espera a última contorção o último coice

o derradeiro pulso: minutos depois está repleta

e satisfeita: cansada como se houvesse parido

às avessas: é dois em uma agora e não deixa de pensar

no que de íntimo ficou da troca: demora a ser

cobra novamente: só cobra na paisagem que se

desenrola: há um lagarto a menos na paisagem

e uma serpente por mais algum tempo: o processo

agora se desdobra dentro dela por conta própria:

cumpriu seu destino de cobra e um lagarto a menos

pouco importa: na sombra ou dentro dágua

vai dissolvendo do lagarto o que antes era olho

unha cauda sorriso e força: não lhe ocorre pensar

se num último ato o lagarto tenha nela se camuflado

e ocultado: prenhe agora do fantasma devorado

se aproxima do lago e se fosse dado a cobras sonhar

talvez tivesse sonhado: o movimento inverso

o lagarto inteiro vomitado e a cena toda num início

impossível e recomeçado: desde o primeiro olhar:

o tomar do alvo: o bote como um salto a espiral

refeita a cabeça na entrada úmida e o primeiro

espasmo: a mesma cena no mesmo palco do mesmo

teatro: um devorar a si naquele que é devorado:

uma espiral que se desenrola por entre a dobra

de seu próprio nó infinito porque perfeito e inacabado:

é um espetáculo digno de silêncio e aplauso

uma cobra devorando um lagarto: um sátiro

engolido por uma ninfa seria um belo mito

oferecido como prato

 

 

 

 

 

 

*/

 

 

feito um cachorro e o cutelo atravessando o coração

e girando duas vezes: nem a vergonha sobrevive:

há problemas demais no paraíso quando é a serpente

quem salva e o fruto oferecido apodrece ao pé

da cerca que o primeiro imbecil levanta: não há

grito nem ganido que ultrapasse este limite:

feito um cachorro e o cutelo que antes refletia

a lua é pura carne e sangue sobre a pedra:

o corpo quase nu e o amor que dobrou um pouco

antes a esquina: muito longe dali morre pelos rins

a destinatária de todas as cartas: as doenças

não matam ninguém numa hora como esta:

numa hora como esta as doenças tomam sol

e sonham com a chegada do inverno: por entre

as escadas que se movem sombra sobre sombra

e de algum lugar o vazamento de gás e a caligrafia

clara no cartão sobre a mesa: o cutelo mudando

de cor é quase uma dança e convida quem está

na janela acesa: mas os olhos e os ouvidos

só se voltam para as estrelas e na pedreira

o coração eletrizado tenta encontrar uma forma

de continuar: os giros da lâmina seguem

o sentido horário por ironia e o coração se parte

como um espelho no quarto vazio cansado

de tanto refletir: a extinção atravessa a noite

e depois a ponte onde o tédio mantém guarda

de sabre em punho: contra quem nem sabe

e a madrugada segue com seus lençóis vazios

e suas portas trancadas: há muitas mãos

em muitas gargantas e tanto o que dizer

mas ninguém suficiente humano para ouvir:

o paraíso apodrece devagar: por entre as cercas

os funcionários funcionam para que a máquina

de apodrecer reponha na manhã que começa

cada peça por acaso ausente: é fria e cinza

a manhã e os homens de preto seguem bocejando

no caminho de volta: nenhum questiona a ordem

das coisas porque as próprias coisas não questionam

os homens sobre nada: coisas e homens confundem-se

no dia que começa e se há algum que falte é tão

pequena a ausência por maior que tenha sido

a presença da ilusão que as escadas permanecem

onde estão e o coração abaixo da cabeça dentro

de um tronco cuja cabeça se apoia sobre a pedra

desaflora entre areia e sangue coagulado: lá longe

não chegarão as cartas porque está tudo agora

não fora mas dentro de um outro lugar: é tão suja

essa brancura tão escuro seu castigo sem crime

que nem a uma cova se digna a nomear: a ela

nem a vergonha sobrevive: menos que um cão

atravessado pelo grito e o dia promete afiar

o seu cutelo: e continuar

 

 

 

 

 

 

*/

 

 

homero não conseguia ver por que o chutavam

de um lado para o outro: na feira o chutavam

e esfregavam em seu focinho as frutas podres

que ninguém mais queria: mal abria a boca

e enfiavam nela algum inseto ou uma porção

de terra: homero engasgava e seguia sem rumo:

diante dos pórticos os meninos apostavam

quem acertaria em suas pernas: homero

coberto de feridas seguia em silêncio

até que as pedras deixassem de zunir

em seus ouvidos velhos: homero não

conseguia ver por que no cemitério

não o escutavam: nem conseguia ver

que em várias covas o nome homero

também estava: tantos homeros sem

nada a dizer: depois seguia apalpando

o muro e saía pelo portão entre a cal

e o sol queimando sua pele: homero

não conseguia ver por que arrancavam

sua roupa e no meio da praça não via

por que as gargalhadas não cessavam

para que ele pudesse dizer o canto

para que havia nascido e para ali enviado:

rasparam sua cabeça enquanto tentava

iniciar uma parte qualquer da rapsódia

mas o escorpião que lhe deram dizendo

que eram moedas cortou com a lâmina

do grito a estrofe ao meio as palavras

engasgadas se misturando em sua garganta

e devorando umas às outras: homero

não conseguia mais ver a diferença

entre os lugares e as pessoas: os juízes

e os mendigos as crianças e as prostitutas

os loucos e os comerciantes eram todos

agora a mesma matilha sem destino:

homero não conseguia ver se o empurravam

agora contra as pedras ou contra o mar

e quando brincavam de afogá-lo sentia

por entre a boca e a barba o sabor antigo

dos sargaços e o reflexo distante das viagens

que ainda corriam nele: tanto mar tanto mar:

depois amarravam nele alguma água-viva

e cobriam sua cabeça de algas como se

ele fosse uma sereia dançando entre

o ácido e o sal na beira daquele mar:

depois amarraram seu pescoço e seus

pulsos e pés e fizeram dele marionete

no meio da festa e todos morreram

de rir quando o levaram para dançar

sobre as brasas da fogueira enquanto

jogavam na sua cara as últimas taças

de vinho: homero não conseguia ver

o suficiente para chegar até a muralha

nem para encontrar o punhal que

por tantos anos lhe fez companhia:

homero não viu o silêncio que se fez

naquela tarde nem o copo que lhe davam

solenemente depois de tudo: mas sentiu

o velho odor por entre as bordas

e no segundo gole homero viu

a que porto imundo havia dedicado

tanto canto e tanto corpo e bebeu

a taça até o fim como quem gargalha

por enfim ter entendido a mais

óbvia das piadas

 

 

 

 

 

 

*/

 

 

fecha os olhos fecha os olhos agora criatura miserável

porque a partir de agora todos os teus sonhos

serão nítidos de uma nitidez de faca porque

os vivos e os mortos os amigos e os inimigos

estarão todos juntos e todos falarão ao mesmo tempo

e calarão ao mesmo tempo e tua angústia

e tua alegria serão o centro de cada sonho

e cada um te acordará em certo ponto da madrugada

ora com o alívio dos que escapam da morte

ora com a angústia dos que continuam vivos

e foi tudo um sonho dentro do impossível real

que todo sonho é: tudo será exatamente como é agora

e nada será o mesmo: nem tua voz nem teu olhar

nem o amor ou a infâmia os corredores e janelas

e fotografias: tudo estará no mesmo fluxo imóvel

e cada sonho será um vórtice só visto por fora

no momento de acordar: teu suor ao acordar

às vezes terá o cheiro que a saudade deixa

e para o que nenhum deus inventou remédio:

às vezes trará na boca o final de uma frase

que ficou entre o sonho e a vigília meio viva

meio morta atravessada em tua garganta como serpente:

ficará a teu critério engolir ou vomitar:

as paredes te atravessarão com os ventos

as quedas serão quilométricas e às vezes voar

te será dado sem muita compaixão: toma cuidado

com os espelhos: ver a si mesmo dentro de um espelho

dentro de um sonho ainda não foi calculado:

qual dos dois sonha o que é sonhado? o que está

dormindo do outro lado e sonhando o espelho

diante dele se coloca ou o reverso da equação:

teu sonho teu espelho tua imagem e teu reflexo

infinitamente duplicado? o olho de quem olha

ou o lago? de qualquer modo toma cuidado:

tudo no sonho também pode estar sonhando

que está acordado: por isso fecha os olhos

fecha bem os olhos agora criatura miserável

para que estejam bem abertos para dentro

numa dobra entre a luz e a luz que só no escuro

se penetra: só a quem o inferno atravessa

é dado o dom de sonhar assim: não que valha

muito a pena: fica como marca de renascença

uma cicatriz por dentro do olho um certo jeito

de andar em silêncio: nunca mais nada mais

ninguém mais dentro e fora de ti serão o mesmo:

por isso aproveito para me despedir assim

entre as margens brancas que estavam

depois do sonho um pouco além do espelho

 

 

[Poemas do livro Seol, inédito]

junho, 2019

 

 

Carlos Moreira nasceu em 1974. É autor dos livros Tetralogia do Nada (Clube dos Autores), Cardume (Valer) e Corpo Aberto (Patuá).

 

Mais Carlos Moreira na Germina

> Poesia