*/
primeira lição para estripar um homem:
estripa-se o seu nome em praça suja
sua língua na lama sua sombra na sombra
em cada passo um golpe de medo
e no segredo que nunca houve
as larvas de milhões de segredos
segunda lição para estripar um homem:
para saber sua altura usar a régua do porco
a régua do rato a métrica do nojo
a balança do fogo:cada quilo valerá
menos que o outro e cada centímetro
um corpo a menos: a menos que o corpo
se jogue da ponte ou do porto
e poupe o inútil trabalho da vila
de matar um homem morto
terceira lição para estripar um homem:
não se estripa um homem só:
estripam-se os avós e netos
amigos silêncios e objetos
que cercam o homem a ser estripado
e tudo deverá caber no mesmo saco
um mundo inteiro reduzido
ao suposto fato de que tudo
retornará ao nada de que foi originado
quarta lição para estripar um homem:
estripa-se a palavra do homem
o dito o não dito o interdito
naquilo que sendo fala também cala
o que o torna homem: sua palavra
de homem que agora estripada
vale nada ou menos o que a pele
diria à faca: bem-vinda, senhora
sinta-se em casa
quinta lição para estripar um homem:
após estripado lança-se tudo
no fosso do fundo do calabouço
entre outros tantos estripados
carcaças de sonhos pedaços de loucos
para que até o fim dos tempos
de nenhum corredor possa brotar
o vivo reflexo de seus olhos
sexta lição para estripar um homem:
a vila inteira deverá lavar a praça
as ruas as casas as igrejas as estradas
e a própria vila deverá mergulhar
e manchar o rio com o vermelho
que escorrer de suas roupas pálidas
e queimá-las numa fogueira imensa
e caminharem nus e em silêncio
cada um em direção à cova de sua casa
última lição para estripar um homem:
verificar com exato cuidado
se a baleia não quer vomitá-lo
se não possui uma flauta de pedra
ou uma antiga lira afiada
que faça arrepiar a terra:
neste caso foi inútil estripá-lo:
multiplicado milpartido libertado
ele rompe a corrente do tempo
e atinge maior o outro lado:
inútil o sono da vila enquanto
canta o estripado
*/
jack e eu nos damos razoavelmente bem:
o suficiente para não nos matarmos:
difíceis são as noites porque jack reza muito
e seu arrependimento aparentemente sincero
inunda o chão: é preciso levantar
no meio da noite e molhar os pés
nos pedidos de perdão de jack: há muitas vidas
em sua vida na vida de sua navalha de aço
no gume de seu bisturi sedento:
jack reza e geme e se arrepende
com aparente sinceridade: penso se algum dia
ele secará se ele transbordará até
a última gota se tudo de repente sairá dele
por simples cansaço desidratação da culpa
ou perdão de algum deus impaciente
que diga: chega jack: deixe os outros
dormirem em paz deixe de inundar o chão
na madrugada deixe os mortos em paz
não os faça flutuar na barca furada
do teu pedido de perdão: a canoa do perdão
também naufraga no cotidiano: talvez então
jack se cale e nos deixe dormir em paz
sem a umidade debaixo da cama
e não como fetos que acordam cobertos
de musgo e sangue e água: mas no fundo
duvido que essa noite chegará: são muito sujas
as duas mãos de jack seu abdômen de inseto
seu olhar que pouco pisca: eu e ele
nos damos razoavelmente bem: mas não
o suficiente para que minha navalha
não durma embaixo do meu travesseiro
a um toque da minha mão esquerda
*/
o enterrado vivo está vivo: o sol
não percebeu sua falta: a noite chega
sem aviso e deita noite sobre a noite
do enterrado vivo: é noite sempre
onde o enterrado vivo está: é sempre
noite quando o enterrado vivo é:
mesmo que cave em todas direções
estará vivo e enterrado: um tabuleiro de xadrez
nas paredes e o calendário inútil: para quem
enviar sinais de fumaça código morse cartas cifradas?
gastar seu aramaico com os vermes para quê?
enterrado vivo com seus livros para quê?
enterrado vivo: maldito enterrado vivo:
cravo na lapela flores ao redor a sombra acesa
de uma aliança: tudo vivo e enterrado
com o enterrado vivo: ele ainda é livre
para cantar: a música reverbera nas paredes
e no terceiro acorde já é outra música:
as palavras ricocheteando nos cantos:
fonemas bêbados se abraçando no ar
em busca de uma língua: os vermes
permanecem fora à espreita da morte
do enterrado vivo: reclamam da demora:
seus pulmões reciclam o ar? seus olhos
escondiam luz em que retina falsa?
os dias passam e os vermes esperam:
chove e os vermes esperam: é triste
a vida dos vermes: esperar a morte incerta
do enterrado vivo: o enterrado vivo vive:
vai libertando aos poucos a memória aprisionada:
a luz atravessando o quarto: a gargalhada
inundada de maresia: as portas se abrindo
e ela entrando vestida de sol: cães acompanhando
a volta para casa e logo desaparecendo:
bolinhos quentes de chuva brilhando entre
açúcar e canela: a voz livre ecoando no teatro:
o cheiro de uma mulher que se perdeu na multidão:
tudo vivo no enterrado vivo: nem alucinação
nem febre: só a pressão do ar nos tímpanos
que às vezes atravessa o hipotálamo: a palavra
hipotálamo e de repente o riso detonado
pelo falso cognato: qual o diâmetro
do hipotálamo de um hipopótamo? libélulas
têm hipotálamo? elas conseguem ver seu reflexo
enquanto colhem gotas? lesmas podem sofrer
de labirintite? ouriços da polinésia que vivem
cento e cinquenta anos têm memória da infância?
o enterrado vivo ri: e ao saber que ri gargalha:
do lado de fora os vermes o escutam gargalhar
e se eriçam: devem ser gritos espasmos haustos
de sufocamento ou um possível enforcamento
com a gravata lilás: depois o silêncio: os que estão
mais próximos avançam um pouco seus úmidos
passos de verme: mas não: o chão ainda vibra
ainda há calor na terra: amargurados
deitam-se em círculo e esperam: maldito
enterrado vivo: capaz que mesmo morto continue:
como saber a hora de cavar salivar devorar?
haverá corpo ou num último blefe o desgraçado
provoque combustão espontânea? mumificação?
talvez se confunda com as flores? talvez
salte direto para o estado mineral: pedra
carvão cobalto urânio radioativo: triste
e incerta a vida dos vermes: no fundo
mais profundo o enterrado vivo aflora:
nem fogo-fátuo nem fluorescência de pétalas:
de alguma forma o enterrado vivo aflora
e dança: dança por dentro no centro onde
tudo começa: e sem pressa respira e dorme
e acorda: ontem sonhou que era uma trufa negra:
os cães da antiga madrugada devem estar a caminho
*/
durante a madrugada as formigas caminhavam
na parede lateral: a princípio era divertido
calcular o trajeto e a quantidade: imaginar
quantas permaneciam dentro da parede
dormindo talvez: se é que formigas dormem:
ou adivinhar a forma aproximada que desenhavam
na parede lateral: às vezes a forma de um punhal:
outras de um punho fechado: numa das vezes
desenharam com certeza a demoiselle de dumont:
mas nas últimas noites elas eram muitas: talvez
houvessem se multiplicado ou acordado
as que dormiam: se é que formigas dormem:
ou convocado de outras paredes outras formigas:
no meio da madrugada a parede estava negra
e aquela sombra se movia na parede imóvel:
a pele negra de uma nuvem na parede lateral:
talvez a comida as atraísse: trancou-se tudo
com todos os nós lavou-se tudo e arrancou-se
da pele e das roupas qualquer escama de suor:
elas surgiam e caminhavam nuas e negras
na parede lateral: rastreamos cada buraco
e com pedaços de sabão vedamos tudo:
elas abriam por entre sabão e parede
o seu caminho na madrugada e de repente
lá estava sua nuvem negra: abrimos
as aberturas e queimamos o pior tabaco
por dentro das frestas: talvez a fumaça
as incomodasse: nada: agora a nuvem negra
possuía cheiro: dormimos entre fumo e negrume
na parede lateral: de cada fresta fechada
brotavam duas: elas deviam estar por trás
de cada parede por entre os canos equilibrando-se
nos fios fecundando os buracos dos tijolos
e as brechas da argamassa: uma parede negra
movendo-se por dentro da parede: uma noite
choveu a noite inteira e elas não apareceram:
torcemos para que tivessem se afogado ou mudado
de ninho: talvez houvesse um ciclo que se fechasse
com a chuva: na noite seguinte elas estavam lá
e pareciam maiores: não só na parede lateral:
agora ocupavam o teto também e a porta
de entrada: por baixo dos colchões
e nas dobras dos lençóis e das toalhas:
por entre as páginas dos livros e sobre
as escovas de dente: nos pratos e copos
e nos círculos brancos do papel higiênico:
dormimos no chão nas noites seguintes
no centro daquela teia: elas caminhavam
durante a madrugada como sonâmbulas:
formavam desde o início uma espiral:
os invasores éramos nós: calculamos
então o tempo decorrido desde a primeira
madrugada e escolhemos a noite em que o nó
atingiria o extremo de seu centro: o resto
de comida os lençóis o tabaco e os colchões
amontoados deveriam ser suficientes:
elas caminhavam agora por entre nossos pés:
o isqueiro está no fim mas há de servir
uma última vez: assim que elas descerem
do teto ou subirem do chão no primeiro de nós
tudo estará terminado: a não ser que sempre
tenha sido esse o plano: como gargalha
uma formiga?
*/
o mais selvagem dos homens
tece tranquilamente origamis
em sua trincheira: bombas e balas
ensurdecem e ajudam na concentração:
depois quando o barulho cessa
enquanto os normais realimentam
suas armas normais ele solta
seus origamis no vento repletos
de veneno: toda guerra verdadeira
toda batalha que se preze é travada
no silêncio: depois ele se põe de pé
acende o primeiro cigarro do dia
e levemente oscila entre os dois pés
numa dança muito antiga que toda
criança conhece: de um lado para
o outro de um lado para o outro
como um metrônomo de orquestra:
ele não lembra mais a praia da infância
nem a primeira montanha que enfrentou:
não traz mais em si o primeiro jardim
nem a primeira mulher: mas em seus pés
e em suas mãos ficaram guardadas
as dobras dos origamis o veneno
cujo segredo final é sua própria saliva
e a dança quase imóvel plantada
em seus pés: o mais selvagem dos homens
dança silenciosamente na trincheira
enquanto escuta os que sufocam
do outro lado do campo para onde
o vento soprou: não acredita
no sentido da guerra mas acredita
que não acreditar não adianta nada:
ele foi lançado dentro dela
feito uma brasa quase apagada
é lançada de novo no meio do fogo:
para queimar e cumprir seu brilhante
destino de brasa: depois é tudo cinza
e ele espera esse momento com calma:
apaga o primeiro cigarro da manhã
e escala a trincheira não como um
ressuscitado mas como alguém que
bebeu demais e caiu no primeiro buraco
e adormeceu: o sol vai alto quando
ele termina de cruzar o campo santo
que seu veneno semeou: eram todos
delicados antropófagos ele pensa e sorri:
escuta ao longe além da linha cinza
do horizonte novas balas e bombas:
eles não se cansam: ele senta
à sombra de uma árvore e lentamente
conta as folhas de seu alforje:
folhas de seda de todas as cores:
prefere as brancas e azuis mas sabe
que por algum profundo mistério
as amarelas funcionam melhor:
vão mais leves e longe e quando
pousam entre os normais fazem
com extrema eficiência seu trabalho:
ele começa a dobrar as folhas
medir as curvas criar os ângulos
e de dobra em dobra tece as formas
que decidem quase por si mesmas
aquilo que serão: estrelas e rãs
e gansos e balões e mulheres e crianças
coloridas: guarda seu exército de papel
com todo cuidado ergue-se da sombra
e começa a atravessar o campo de trigo
maduro por uma estreita trilha:
na ponta de seus dedos todas as cores
se misturaram e ele roça as hastes
enquanto caminha: os que comerem
do pão daquele trigo também morrerão
ele sabe: mas isso talvez poupe
guerras futuras e futuros origamis:
o mais selvagem dos homens
está agora no centro do campo
e nenhum corvo por mais inteligente
saberia a diferença entre a sua figura
e a de um espantalho qualquer
*/
uma cobra comendo um lagarto é um espetáculo:
uma ninfa devorando um sátiro não faria o mesmo
teatro: a espiral certeira: as escamas contra a pele:
as caudas entrelaçadas: os espasmos a princípio
frenéticos: depois pausados: primeiro a cabeça na boca
úmida dilatada: depois as patas lentamente uma a uma
dobradas entre a mucosa fímbria: depois cada vez
mais líquido o tronco sendo engolido passo a passo
no que agora é o fim e o início de um caminho:
réptil de repente anfíbio dentro de um túnel
primeiro vermelho depois escuro e íntimo: a língua
agora inútil tateando o que é covil e cova mergulho
e infinito: por fim a ponta da cauda língua às avessas
entre o verde e o limo: depois as contorções
do que ainda vivo tenta abrir no escuro o que não é
nem areia nem muro: apenas fibra dormente
que a cada giro muda a natureza da parede:
o viscoso muco: e de repente o frio contra
o frio e a falta de ar como última sede: não há
como ir para voltar nem voltar onde tudo é
círculo: a cobra se apoia contra a pedra
e espera a última contorção o último coice
o derradeiro pulso: minutos depois está repleta
e satisfeita: cansada como se houvesse parido
às avessas: é dois em uma agora e não deixa de pensar
no que de íntimo ficou da troca: demora a ser
cobra novamente: só cobra na paisagem que se
desenrola: há um lagarto a menos na paisagem
e uma serpente por mais algum tempo: o processo
agora se desdobra dentro dela por conta própria:
cumpriu seu destino de cobra e um lagarto a menos
pouco importa: na sombra ou dentro dágua
vai dissolvendo do lagarto o que antes era olho
unha cauda sorriso e força: não lhe ocorre pensar
se num último ato o lagarto tenha nela se camuflado
e ocultado: prenhe agora do fantasma devorado
se aproxima do lago e se fosse dado a cobras sonhar
talvez tivesse sonhado: o movimento inverso
o lagarto inteiro vomitado e a cena toda num início
impossível e recomeçado: desde o primeiro olhar:
o tomar do alvo: o bote como um salto a espiral
refeita a cabeça na entrada úmida e o primeiro
espasmo: a mesma cena no mesmo palco do mesmo
teatro: um devorar a si naquele que é devorado:
uma espiral que se desenrola por entre a dobra
de seu próprio nó infinito porque perfeito e inacabado:
é um espetáculo digno de silêncio e aplauso
uma cobra devorando um lagarto: um sátiro
engolido por uma ninfa seria um belo mito
oferecido como prato
*/
feito um cachorro e o cutelo atravessando o coração
e girando duas vezes: nem a vergonha sobrevive:
há problemas demais no paraíso quando é a serpente
quem salva e o fruto oferecido apodrece ao pé
da cerca que o primeiro imbecil levanta: não há
grito nem ganido que ultrapasse este limite:
feito um cachorro e o cutelo que antes refletia
a lua é pura carne e sangue sobre a pedra:
o corpo quase nu e o amor que dobrou um pouco
antes a esquina: muito longe dali morre pelos rins
a destinatária de todas as cartas: as doenças
não matam ninguém numa hora como esta:
numa hora como esta as doenças tomam sol
e sonham com a chegada do inverno: por entre
as escadas que se movem sombra sobre sombra
e de algum lugar o vazamento de gás e a caligrafia
clara no cartão sobre a mesa: o cutelo mudando
de cor é quase uma dança e convida quem está
na janela acesa: mas os olhos e os ouvidos
só se voltam para as estrelas e na pedreira
o coração eletrizado tenta encontrar uma forma
de continuar: os giros da lâmina seguem
o sentido horário por ironia e o coração se parte
como um espelho no quarto vazio cansado
de tanto refletir: a extinção atravessa a noite
e depois a ponte onde o tédio mantém guarda
de sabre em punho: contra quem nem sabe
e a madrugada segue com seus lençóis vazios
e suas portas trancadas: há muitas mãos
em muitas gargantas e tanto o que dizer
mas ninguém suficiente humano para ouvir:
o paraíso apodrece devagar: por entre as cercas
os funcionários funcionam para que a máquina
de apodrecer reponha na manhã que começa
cada peça por acaso ausente: é fria e cinza
a manhã e os homens de preto seguem bocejando
no caminho de volta: nenhum questiona a ordem
das coisas porque as próprias coisas não questionam
os homens sobre nada: coisas e homens confundem-se
no dia que começa e se há algum que falte é tão
pequena a ausência por maior que tenha sido
a presença da ilusão que as escadas permanecem
onde estão e o coração abaixo da cabeça dentro
de um tronco cuja cabeça se apoia sobre a pedra
desaflora entre areia e sangue coagulado: lá longe
não chegarão as cartas porque está tudo agora
não fora mas dentro de um outro lugar: é tão suja
essa brancura tão escuro seu castigo sem crime
que nem a uma cova se digna a nomear: a ela
nem a vergonha sobrevive: menos que um cão
atravessado pelo grito e o dia promete afiar
o seu cutelo: e continuar
*/
homero não conseguia ver por que o chutavam
de um lado para o outro: na feira o chutavam
e esfregavam em seu focinho as frutas podres
que ninguém mais queria: mal abria a boca
e enfiavam nela algum inseto ou uma porção
de terra: homero engasgava e seguia sem rumo:
diante dos pórticos os meninos apostavam
quem acertaria em suas pernas: homero
coberto de feridas seguia em silêncio
até que as pedras deixassem de zunir
em seus ouvidos velhos: homero não
conseguia ver por que no cemitério
não o escutavam: nem conseguia ver
que em várias covas o nome homero
também estava: tantos homeros sem
nada a dizer: depois seguia apalpando
o muro e saía pelo portão entre a cal
e o sol queimando sua pele: homero
não conseguia ver por que arrancavam
sua roupa e no meio da praça não via
por que as gargalhadas não cessavam
para que ele pudesse dizer o canto
para que havia nascido e para ali enviado:
rasparam sua cabeça enquanto tentava
iniciar uma parte qualquer da rapsódia
mas o escorpião que lhe deram dizendo
que eram moedas cortou com a lâmina
do grito a estrofe ao meio as palavras
engasgadas se misturando em sua garganta
e devorando umas às outras: homero
não conseguia mais ver a diferença
entre os lugares e as pessoas: os juízes
e os mendigos as crianças e as prostitutas
os loucos e os comerciantes eram todos
agora a mesma matilha sem destino:
homero não conseguia ver se o empurravam
agora contra as pedras ou contra o mar
e quando brincavam de afogá-lo sentia
por entre a boca e a barba o sabor antigo
dos sargaços e o reflexo distante das viagens
que ainda corriam nele: tanto mar tanto mar:
depois amarravam nele alguma água-viva
e cobriam sua cabeça de algas como se
ele fosse uma sereia dançando entre
o ácido e o sal na beira daquele mar:
depois amarraram seu pescoço e seus
pulsos e pés e fizeram dele marionete
no meio da festa e todos morreram
de rir quando o levaram para dançar
sobre as brasas da fogueira enquanto
jogavam na sua cara as últimas taças
de vinho: homero não conseguia ver
o suficiente para chegar até a muralha
nem para encontrar o punhal que
por tantos anos lhe fez companhia:
homero não viu o silêncio que se fez
naquela tarde nem o copo que lhe davam
solenemente depois de tudo: mas sentiu
o velho odor por entre as bordas
e no segundo gole homero viu
a que porto imundo havia dedicado
tanto canto e tanto corpo e bebeu
a taça até o fim como quem gargalha
por enfim ter entendido a mais
óbvia das piadas
*/
fecha os olhos fecha os olhos agora criatura miserável
porque a partir de agora todos os teus sonhos
serão nítidos de uma nitidez de faca porque
os vivos e os mortos os amigos e os inimigos
estarão todos juntos e todos falarão ao mesmo tempo
e calarão ao mesmo tempo e tua angústia
e tua alegria serão o centro de cada sonho
e cada um te acordará em certo ponto da madrugada
ora com o alívio dos que escapam da morte
ora com a angústia dos que continuam vivos
e foi tudo um sonho dentro do impossível real
que todo sonho é: tudo será exatamente como é agora
e nada será o mesmo: nem tua voz nem teu olhar
nem o amor ou a infâmia os corredores e janelas
e fotografias: tudo estará no mesmo fluxo imóvel
e cada sonho será um vórtice só visto por fora
no momento de acordar: teu suor ao acordar
às vezes terá o cheiro que a saudade deixa
e para o que nenhum deus inventou remédio:
às vezes trará na boca o final de uma frase
que ficou entre o sonho e a vigília meio viva
meio morta atravessada em tua garganta como serpente:
ficará a teu critério engolir ou vomitar:
as paredes te atravessarão com os ventos
as quedas serão quilométricas e às vezes voar
te será dado sem muita compaixão: toma cuidado
com os espelhos: ver a si mesmo dentro de um espelho
dentro de um sonho ainda não foi calculado:
qual dos dois sonha o que é sonhado? o que está
dormindo do outro lado e sonhando o espelho
diante dele se coloca ou o reverso da equação:
teu sonho teu espelho tua imagem e teu reflexo
infinitamente duplicado? o olho de quem olha
ou o lago? de qualquer modo toma cuidado:
tudo no sonho também pode estar sonhando
que está acordado: por isso fecha os olhos
fecha bem os olhos agora criatura miserável
para que estejam bem abertos para dentro
numa dobra entre a luz e a luz que só no escuro
se penetra: só a quem o inferno atravessa
é dado o dom de sonhar assim: não que valha
muito a pena: fica como marca de renascença
uma cicatriz por dentro do olho um certo jeito
de andar em silêncio: nunca mais nada mais
ninguém mais dentro e fora de ti serão o mesmo:
por isso aproveito para me despedir assim
entre as margens brancas que estavam
depois do sonho um pouco além do espelho
[Poemas do livro Seol, inédito]
junho, 2019
Carlos Moreira nasceu em 1974. É autor dos livros Tetralogia do Nada (Clube dos Autores), Cardume (Valer) e Corpo Aberto (Patuá).
Mais Carlos Moreira na Germina
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