ATO I – EM MEU PRÓPRIO PAÍS
ejaculo dor
que a paz é um delírio...
/
costuro abelhas
no alto do edifício Copan
o favo de mel
mais tupiniquim da urbe
colho a tolerância
e o respeito à diversidade
esse doce caldo
do acolher e compartilhar
tão ausente
de uma Amazônia em chamas!
/
morre alguém
sim! todos os dias na rua onde moro
morre alguém
ninguém sabe ou vê
(muitas vezes
até o cadáver desaparece)
se alguém morre
na Califórnia ou Nova Iorque
será notícia
se deu no York Times
é media show universal no meu país!
sim! dia sim e outro também
morre pobre e ativista e índio no meu país
ninguém sabe ou vê
(muitas vezes
até o cadáver desaparece)
ah! mas se morre alguém
no Texas ou em Ohio...
não há cadáver desaparecido na terra
rio Amazonas e afluentes se não deu no York Times!
/
a arritmia
pelo cálice vazio sobre a mesa
a fibrilação
pelo cale-se entalado na garganta
o choque
a restaurar o ritmo — mas não a paz
/
esgotar o cálice
até a última gota de vinho
esgotar o cale-se
até a última gota de sangue
até quando
no calvário a mudez humana
a gritar um vento estéril
de justiça?
/
e a nave singra
sangra dores profundas nunca antes navegadas
diante da quase insânia da menina amada
que adentra a tempestade onde previsível naufrágio os aguarda
fosse a cegueira só do comando e do séquito com frágeis promessas...
mas há anjos no porão no aguardo de uma luz guia
de um farol na direção de terra firme
mas cuidado! que o comando pense na direção das velas
que a névoa pode encobrir a razão...
/
fui palafita
engolida pelo mangue
: eu e toda a família
que me habitava
sob pedras
no aguardo do retorno
: fria-muda-perversa
a mãe-Terra abre-se ao que lhe pertence
/
hoje acordei pássaro
saído de nuvens noctâmbulas
ficaram para trás os adereços
as ruas e as estradas equivocadas
os destinos de uma massa atordoada
vou estar com meus semelhantes
: voar é o mais puro ato de liberdade!
(deixo a terra incendiada nas mãos dos gregos e dos troianos...
e da ajuda do exército brasileiro)
ENTREATOS
não há mamilos na rocha
torço a sombra até obter a dor
vazia de impurezas sonoras
é quando a romã ejacula
o sumo adocicado das vulvas
a inundar os lábios em gozo
como se houvesse mamilos
e minassem gemidos, as rochas
ATO II – EM VIAGEM
O Chile canta a liberdade
: maldigo ministros e predicando, tranquilo queda mi coração...
V Parra
10h. Quente em Santiago do Chile. Aparente silêncio. Governo promete medidas com único objetivo de esfriar os ânimos, não vejo consistência nas propostas. Primeira dama assustada com possibilidade de perder privilégios. Vamos dar uma volta, talvez ler algo, sentados em algum banco, em uma das praças sempre bem cuidadas que a cidade oferece. Ver o povo tomar corpo lentamente, ocupar o espaço que lhes pertence, mas só até as 20h; depois o Chile pertence à realeza e aos empresários, a orgíaca sinfonia de noctâmbula violência. Na manhã haverá outros mortos para a estatística, a primeira dama acordará de ressaca enquanto o presidente escova os dentes.
os piores abalos sísmicos
são os provocados pelos homens
as piores lavas vulcânicas
são as expelidas pelos homens
não é a natureza ou a seca
que coloca o povo na rua e mata
jovens que esperançam
é a ganância e o jogo perverso
de palavras falsas
que lançam água e gás pimenta
atiram com balas de borracha
e no anoitecer e madrugada
matam com violência e balas metálicas
em posição de execução
o sangue beijando o solo Chileno
jovens que já não passam
os piores abalos e erupções
ocorrem quando pássaros dormem
no silêncio cúmplice do valor do cobre
nas bolsas de valores
ou da chinesa que sussurra aos pares
que é a hora e a vez de Santiago
/
linha 1 metrô funcionando
habilitan Pedro de Valdivia
povo a caminho do trabalho
Santiago segue — lento
apertaram botão emergência
o sol ilumina a cidade
palácio de La Moneda
insiste no enfrentamento
15 personas muertas no país
De Pablo Neruda e Mistral
: No te impidas ser feliz!
/
estou no escuro teclando i-phone
fora ruído de carros em velocidade
alternado com silêncio — sem sirenes
falta coragem para abrir a janela
e olhar a cordilheira — frio leve
estou de cueca e sem camisa
no escuro teclando a incerteza
/
não abro a janela
nem açoito o frio
ouço motores na rua
e um silêncio nos entres
há traços sonoros
fragmentos sem fala
sonhei com baratas
milhares delas
aquarteladas no armário
e música clássica no teatro
o bigode de Dali foi ontem
a casa de Neruda sonho
o aeroporto e Valparaiso
realidades inatingíveis
no hotel aquartelado
sou a barata à espera
atravessar a cordilheira
e ver tudo se repetir
que a América Latina é isso
o bigode de Salvador Dali
/
não elitize
com óculos escuros e coturnos
o poema
não utilize
do uniforme para travestir
a palavra
que as armas exalem haikais
e não gás pimenta
que a água a escorrer da cordilheira
não seja contaminada
pelo vermelho das execuções sumárias
de jovens que esperançam
e presentificam um futuro com equidade
não! não à barbárie
que a tropa em silêncio pratica
nas estações do metrô de Santiago do Chile
dezembro, 2019
Carlos Pessoa Rosa escritor de palafitas e orgias mediúnicas, já em fase final de vida, em um país pouco afeito à leitura que não seja de moda ou receita de bolo, portanto, mais louco que o autor é quem o publica, indo aqui meu agradecimento pelo acolhimento das editoras. Falar do que escrevi, publiquei ou publicaram, seria tão inútil quanto descrever a anatomia de uma anêmona do mar, mas é só apelar ao Google.
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