Não vou falar de Minas a partir daquela área soterrada, na qual os anjos não tiveram tempo de dizer um ai, antes de desaparecerem entre a lama, o rio, as pedras, as casas, as pontes de Brumadinho. Tantos desaparecidos que, talvez, nunca serão encontrados, a não ser na floração da serra, sempre antecipando a primavera.
Vou falar de Minas como a terra de meus amores, de minha avó Maximina, encontrada pelo meu avô italiano que foi ali conhecer as pedras, no início do século 20, como um provador de preciosidades em sua profissão de ourives.
Vou falar de Minas como a terra onde meus olhos se perderam, na imensidão das montanhas tocando o céu num caminho cheio de curvas, um sobe e desce de ladeiras naturais que me deram náuseas e cartões-postais.
Vou falar de Minas com a caipirice brejeira de quem se debruça nas porteiras para ver as vacas e os cavalos nas fazendas de Cruzília, onde nasceram os primeiros mangalargas, a raça que conseguiu marchar pelas montanhas.
Vou falar de Minas a partir de São Tomé das Letras, com suas casas de pedra e as montanhas carcomidas, numa atmosfera hippie de 1980, com as contas nas praças e os banhos nas cachoeiras cristalinas, que despencam nos rincões dentro das matas.
Vou falar de Minas com a melancolia de Ouro Preto e os santos de Aleijadinho, silenciosos com seus olhos de jabuticaba, olhos de pedra esculpidas pelo mestre que povoou igrejas com a mesma fé com que tomava hóstias.
Vou falar de Minas sem esquecer Belo Horizonte, seus bares e praças, seus museus cheios de móveis, oratórios e retratos, marcando a politização de um estado que deu ao Brasil centenas de heróis, além de alegria, revolta, compaixão e dor.
Sobretudo, vou falar de Minas e seus poetas do século 18, de Tomás Antônio Gonzaga que nos deu Marília e também Dirceu. Vou falar dos românticos e simbolistas do século 19, como Alphonsus de Guimarães, que escreveu o poema mais inspirado sobre a loucura, colocando Ismália numa torre que lembra as alturas das pedras seculares.
Vou falar de Minas lembrando Carlos Drummond de Andrade que nos falou das pedras no caminho e da ganância dos homens pelos minérios de sua Itabira natal. Vou falar de Minas acendendo velas a Santa Adélia Prado, poeta de catar feijões e fazer molho de batatinhas, na linguagem mais mineira da literatura nacional.
Vou falar de Minas lembrando João Guimarães Rosa, que nos levou pelo sertão e as veredas, onde se avista um dos maiores nomes da literatura mundial e sua linguagem de sotaques intraduzíveis. Vou falar de Murilo Rubião e Murilo Mendes, de Otto Lara Rezende e Henriqueta Lisboa. Vou falar de Paulo Mendes Campos por quem tenho uma paixão secreta, tão intimista quanto as salas mineiras, onde ouvi pianos.
Vou falar da Folia de Reis e seus cantadores caipiras, suas violas sentidas, seu choro dissolvido em música. Acima de tudo, vou falar de Minas rezando uma Ave-Maria pelos vivos e os mortos que vi nas torres das igrejas iluminadas pelas velas e o sol que irrompe vitrais.
Vou falar da beleza e da cultura que reluzem mais que o ouro de Minas, que inspira poemas dramáticos por suas moças tristes, seus casarões de pedra e a rua das Almas que percorri em Belo Horizonte, tomando café com pão de queijo, depois de noitadas, cochichos e cachaças.
Ah! Minha lírica e trágica Minas Gerais, como me encanta sua vida e me doem seus mortos soterrados sem ais.
[Publicado originalmente no caderno Folha 2, do jornal Folha de Londrina, em 02 de fevereiro de 2019.]
março, 2019
Célia Musilli é paranaense, poeta, cronista, jornalista, atualmente é editora de Cultura da Folha de Londrina. Autora de Sensível Desafio (2006) e Todas as Mulheres em Mim (2010), tem textos publicados em revistas e sites literários, além de ter participado de várias coletâneas. É mestre em Literatura Brasileira pela Unicamp. Gosta de livros, viagens, estrelas e gatos, nem sempre nesta ordem.
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