Cordilheira
tudo em você é destino:
a arquitetura dos labirintos
a linha indivisível do meio-dia
a palavra cordilheira
tomando o chão das coisas
tudo em você é cume e partida
fuga de Dédalo, asas de Ícaro
mas destino, Alice
não é um lugar
Roseira
não, eu não olhei
para trás, Orfeu
eu, um corpo
serpenteando
sobre a roseira
uma ave migratória
tocada pelo fogo
Transiberiana
quando chove
penso em fechar a porta
dar vez ao peso
cobrir as frestas
até o osso
mas a verdade
é que poetas mentem
sei porque dormi no trem
e acordei em Vladivostok
saltando toda janela
varrendo todo entulho
abrindo toda saída
te vendo no fim do mundo
Amuletos
tenho pra mim que você me veria
num café ao largo do mundo
remoendo o azul das coisas
no centro de uma cidade cinza
tenho pra mim que você me teria
lábio vermelho, branco pelo
pó de arroz, rímel, cabelo
e dentro uma cidade cinza
tenho pra mim que você viria
com seus amuletos e orquídeas
e seríamos qualquer coisa
entre o belo e o absurdo...
Rugido
há quem chame melancolia
o rugido tardio das pedras
dinamitadas contra o peito
mas não há por que dizer
restos de estrondo e pólvora
(as coisas são mais que seus nomes)
a mim fere mais
esse burburinho de pássaro
movendo suas asas finíssimas
intocadas pelo tempo
Pele
a verdade
é que meu ombro não comporta
um pássaro negro
já tenho este mapa
tatuado em minhas costas
este céu de linhas vermelhas
este corpo tornado templo
de todo desejo e selvageria
e você sabe:
palavra alguma detém a jaula
palavra alguma impele o voo
palavra alguma alcança a porta
é sempre do olho o último grito
Linha
perdida toda palavra
haveria ainda
um anjo tatuado
entre teu nome e o meu
e quando a beleza impiedosa
de sua imensa asa escurecida
partisse de vez
a pequena linha escondida
entre teu nome e o meu
perdida toda palavra
haveria ainda
a delicadeza inequívoca
dos que se movem lentamente
em frente aos leões
Curva
e se em vez de arranhar o espelho
eu pusesse a mão sobre a nuca
e ante a curva do meu ombro esquerdo
o amor escorresse lentamente?
e se em vez de partir
mil flores de nada
mil versos de quando
mil cacos em tudo
teus dedos pudessem
toda sombra todo muro
toda estrada todo monte
empurraríamos a pedra?
Canteiro
no vão que faz o vestido
quando afunda entre as pernas
pus as pequenas pedras
e agora invento uma cidade
que pode uma mulher
quando arquiteta um templo
sem que lhe dobre o punho
sem que lhe pese o colo
sem que se parta em muitas?
as menores coisas
dei de mover uma a uma
Entre
a fera repousa agora
no imenso deserto que invento
entre a boca e o colo
mas quando suas garras
cruzarem o escuro
abrirei a porta
e beijarei seus olhos
até que me queira
até que me cale
até que me diga
tenho, tenho que acordar
Agulhas
nos dedos de minha mãe
é que as horas desdobravam
os silêncios mais sentidos
não que eu quisesse cantar
porque nos dedos de minha mãe
eu também ia e vinha
basta agora uma canção amarrotada
ou um suave tilintar de agulhas
e eu alimento relógios antigos
Brio
é verdade que ainda sangro
e que às mulheres
por brio ou obscuridade
é dado sangrar em silêncio
mas veja minha irmã e eu:
a carne exaurindo a noite
as luzes todas acesas
o coração ruidoso
se agora canto
é porque desaprendi
a morrer primeiro
março, 2019
Daniela Delias nasceu em Pelotas/RS. Em 2012, publicou seu primeiro livro de poesia, Boneca Russa em Casa de Silêncios, pela Editora Patuá. Em 2015, pela mesma editora, publicou Nunca estivemos em Ítaca, também de poesia. Tem poemas publicados no Livro da Tribo, em revistas literárias e no blogue de poesia Sombra, Silêncio ou Espuma. É também psicóloga, professora universitária e uma das Escritoras Suicidas. Mora na Praia do Cassino, em Rio Grande.
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