UMA MENINA
Eis o homem.
Se você, na sua displicência cotidiana, desviar o olhar para a direita, talvez consiga vê-lo passar sobranceiro em meio aos camelôs.
Ao redor, apenas sombras.
Para onde ele vai?, você se indagará na mais completa ignorância acerca do real. A resposta é simples: ele vai sempre para adiante, rumo ao futuro. É um homem metódico: olha ao redor com um olhar demorado, avaliando, aprisionando a alma de tudo; tem objetivos bem definidos e um tato de Midas. E mais: ele não tem tempo para os seres menores. Veja, meu camarada, como ele anda decidido, atropelando quem ousa ficar no seu caminho. O paletó amplia-lhe as espáduas, a arrogância, o poder. Não é um paletó: é uma armadura. O verbo, o substantivo, o adjetivo, tudo é propriedade dele. É um senhor de imensas glebas de linguagem. E isso é quase tudo.
Digo quase tudo porque, o que nele ainda há, é quase impossível revelar. Só por fora é possível vê-lo melhor, contentemo-nos com isso: o homem é uma fortaleza e está muito bem assim.
É meio-dia, e esse é o tempo propício para que as coisas inadiáveis aconteçam. Se assim está escrito, assim será.
Ei-lo que salta do carro, a pasta de couro na mão direita, o olhar diminuindo tudo ao seu redor... Pausa. Tomemos fôlego — oh, nós que só podemos desviar o ombro para lhe dar passagem! Sim, ele mesmo, o homem dos parágrafos acima. Urge nomeá-lo neste parágrafo, talvez assim consigamos chegar mais perto dele, apreender, quem sabe?, um pouco da sua alma. Mas que nome lhe dar? Que nome caberia nessa criatura? Que tal este: Pedro. Por que Pedro?! Porque a sua mãe, culta talvez, enxergando no filho a imagem de Pedro, o Grande, assim o nomeou. O Poder, enfim. Ou (e esta é outra possibilidade, entre tantas), sendo mãe católica apostólica romana, viu exatamente o outro lado, o do apóstolo, da edificação da Igreja. O Bem, em suma. O que vingou nele? no barro de que todos somos feitos? A imagem fria da pedra é que nos salta aos olhos neste instante? Eh, meu camarada, a dúvida campeia livre pelos campos esmaecidos do nosso crânio.
Você que o viu passar apressado dentro do terno cinza, à direita dos seus óculos comprados num camelô do Setor Comercial Sul, deve estar confuso e indagando ao Divino por que cargas d'água ele está entrando naquele restaurante coberto com um toldo imundo. Aquilo é apenas um cubículo. Isso não faz sentido! Por que ele viria a esse lugar?
Vou lhe explicar: eu o pus ali. Perplexo ainda? Eu, com o meu poder de criação, trouxe-o a esta parte suja da cidade. Cometi uma arbitrariedade? uma inverossimilhança? Pode até ser, mas de que outra forma eu o faria entrar num lugar como esse?
E, ao dizer isso, já estou ouvindo o burburinho que brota lá de dentro. Como curiosos, adentramos o recinto.
Ei-lo! Sentemo-nos aqui, meu camarada, neste canto. Desta posição, vamos vê-lo meio de perfil, mas não há outro jeito, as demais mesas estão ocupadas. Vamos prestar atenção aos seus movimentos nos mínimos detalhes. Está certo, sei que você ficará um pouco prejudicado, minha posição é melhor, não resta dúvida, posso enquadrar quase todo o rosto dele, e o ombro daquela mulher vai limitar bastante seu campo de visão, mas, convenhamos, não poderia ser de outro modo, afinal, o demiurgo aqui sou eu.
Num lugar como este tudo pode acontecer. Ele deve ser um cara meio louco, só assim se explica o fato dele estar aqui. Não consegui convencê-lo, meu camarada, com os meus argumentos de literato? Ah, como você é incapaz de transfigurar o real! Está preso a ele, à miséria dele. Que posso fazer para libertá-lo dessa masmorra? Observe: o que aí está, diante de todos, pode ser apenas ilusão. O poder está aqui, ó, na nossa mente. Por que está me olhando assim? Ah, você está me saindo um personagem muito cético, confesso-lhe que estou bastante surpreso. Pois bem: façamos de conta que tudo isso é a mais pura realidade, sem toque algum de fantasia, e não nos cabe explicar o porquê de ele estar aqui nesta espelunca, quando poderia estar no mais chique dos restaurantes. Sendo mais objetivo: em que isso nos afeta diretamente? Em que ponto a vida dele (vida de homem tão poderoso, assim o imagino) cruza-se com a nossa? Algo posso lhe garantir: ele não nos verá, não existimos para ele. A coisa ficou mais absurda ainda? A realidade é de fato absurda, meu camarada, não se espante com isso.
Passemos à refeição.
Veja como ele come rápido, esquecendo-se até da etiqueta. Talvez, sendo um homem prudente, não queira parecer tão requintado num ambiente como este, atrair a atenção de todos sobre sua pessoa ou dar mostras de pedantismo. Mas o mais provável é que esteja preocupado com algum negócio (praticamente não desligou ainda o celular), ou com algum problema em casa, na família... Sim, o nosso protagonista é um homem casado, muito bem casado. E não poderia ser diferente: ele tem planos e planos, e um deles é se engajar na política. O casamento fez dele um homem sério, prático.
E você — sim, você que agora é meu cúmplice nesta viagem perigosa — deve estar me indagando do fundo dos seus botões: Mas como você sabe de tudo isso se antes, creio que no quinto parágrafo, disse que só era possível conhecer esse homem por fora? Estou sem resposta? Embrenhei-me num beco analítico-descritivo sem saída? Bem, digamos que eu, ainda neste momento, exerça algum poder sobre a minha criação. Ninguém pode saber tanto de uma pessoa assim. Nem a própria pessoa em si. Nem Deus.
Começo a desconfiar de que foi pura estupidez minha tê-lo escolhido no meio da massa como companheiro de aventura. Um personagem quecoloca em dúvida os métodos ou os procedimentos do seu criador não merece a mínima confiança. E já que você está aí por trás do copo de refrigerante, com esse risinho meio cínico, vou tirá-lo do roteiro, devolvê-lo à realidade (da qual você não consegue mesmo se desgrudar), jogá-lo de novo ao anonimato. E já posso vê-lo sumindo no meio da multidão que, neste momento, procura os restaurantes mais baratos.
Adeus, ó cúmplice meu!
Voltemos ao almoço, que o presente é ágil em urdir passados.
O nosso homem leva o garfo à boca, mas, súbito, congela o movimento e a porção de comida fica pairando quase rente aos lábios: diante dele estão dois olhinhos cinzentos, saltando de um rostinho encardido; este, por sua vez, apresenta-se emoldurado por uma cabeleira que, há dias, não vê pente nem água. Outros detalhes: roupa suja, rasgada, pés descalços, obviamente. O que mais eu poderia colocar nela (nessa nova personagem) para enojá-lo? Causar-lhe arrepios, talvez. Os olhos dele ( ) breve intervalo entre o nojo e a raiva — e talvez eu tenha alcançado o meu intento.
A criaturinha permanece ali, fixa nele, no prato de comida, no pedaço de frango... o rostinho encardido, imundo, um catarrinho descendo de leve numa das narinas. O nojo/a raiva. Quer se erguer, mas não consegue: uma força estranha, maior que a dele, mantém-no preso à cadeira. Como pode continuar a comer depois daquela visão? Mas já não pode controlar os movimentos do corpo, virou uma marionete, e a mão sobe e desce, desce e sobe, indo da boca ao prato, do prato à boca, com nojo e tudo. Estaria delirando? sonhando? É um pesadelo, acordarei em breve.
Viu quando a família chegou, mãe e filhos, todos pequenos e miseráveis — os seres que rastejam, pensou —, pedindo dinheiro aos que ali estavam, e faziam barulho, expondo aos olhos de todos o quadro ínfimo de suas vidas. Parecia uma provocação. Por um instante, ele alimentou a esperança de que não se aproximariam dele.
Mas, agora... o rostinho da menina... aqueles dois olhinhos vazios esticados até o seu prato, querendo a comida ou a sua consciência? a sua alma? o seu remorso? E mesmo que ele abaixe a cabeça e só pense na comida, ou num ponto distante, ainda assim aqueles olhinhos vão continuar ali, piscando. piscando. piscando. E mesmo que ele se erga e saia em disparada, ainda assim esses olhinhos continuarão piscando. piscando cravados nas costas dele. E ainda que ele se refugie no carro, no escritório ou em qualquer outro lugar, e pense intensamente nos filhos, num futuro límpido, distante dali... os olhinhos continuarão piscando dentro dele.
Estou agora ao lado do homem, saboreando a sua agonia, e posso lhe revelar seco, duro: Não adianta tentar fugir, meu chapa. Um outro qualquer do seu meio conseguiria se livrar facilmente dessa imagem, mas você, não: eu não o trouxe até aqui a troco de nada.
[Do livro de contos A noite dos vagalumes. SCDF, 1998 – Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária]
BAQUE
"Como nessa gente sadia, forte, alegre, tudo está equilibrado, como em suas almas e cérebros tudo
está aplainado e concluído". (Tchekhov, "Uma crise")
Uma enfermidade de gente deitada ali, onde, há pouco, o sol se esparramava todo, ilha de luz convidando ao exílio, ao evadir-se do mundo. Agora a penumbra serve de esconderijo, e o corpo mescla-se ao turvo, deixando quase de existir. Não há mesmo o aonde ir. Nem mesmo o pensamento escapa da jaula do crânio. Criar musgo, fundir-se ao piso, deixar que o ser míngue, — respiração quase nenhuma, dando conta, no entanto, ainda da presença de uma alma no corpo.
O baque seco duma bola contra o muro arranca-a desse estado de falência múltipla.
Outra vez a vontade de fumar, irredutível. Por mais que resista, dizendo a si mesma que não moverá um músculo sequer para atender aos apelos do cérebro, acabará flagrando-se com a carteira de cigarros na mão, cheia de culpa, salivando, trêmula, e, nesse ínfimo intervalo de tempo, entre o mover da mão e a espera aflita dos neurônios, ensaiará ainda uma resistência, tépida, mais rendição que luta.
Por que promete a si mesma que lutará contra tudo e todos se, no fundo, sabe que lhe faltará a energia e a obstinação necessárias? Se vai recuar diante dos primeiros sinais de realidade brutal e inane, por que então se colocar em guarda contra moinhos de vento? Mário sempre lhe cobrava uma atitude mais firme, uma tomada de decisão que não sucumbisse aos primeiros apelos da desrazão. Durante anos e anos suportou a corrosão do seu discurso, a impiedade dos seus gestos pulverizando as manhãs e os anoiteceres.
É mesmo a figura inteiriça de Mário que brota do nada e põe-se diante dela derramando palavras por todos os orifícios. Quer subjugá-la, deixá-la paranoica, convencida de ser realmente um ser fraco e inviável. Num repetir incessante, esvazia-a de si mesma. Quer que ela se purgue por sua entrega aos afagos da morte, por seus passeios para além dos escombros da realidade. Difama-a perante o mundo inteiro. O grande canalha, tão resoluto, sem lacunas, sem brechas por onde a dúvida e o desespero possam penetrar. Pudesse, expunha num outdoor minúcias da sua vida, dando conta das inúmeras vezes em que ela caiu sob o peso da cruz que carrega, segundo ele, sem motivo algum. Caiu e teve de se levantar sozinha, sempre, sempre, porque esperar por um Simão aqui, nessa via-crúcis cotidiana, nesse cilício, seria perda de tempo, não é, Mário? Não é, seu grande crápula?! Sabe que é inútil se indignar assim: ele já se encontra a léguas de distância, surdo como sempre a todos os seus gritos.
A bola bate de novo no muro, estrondosa. É assim quase todos os dias, mal escurece. A meninada parece não ter outra diversão senão essa. O diabo é que vez ou outra a bola acha de cair no seu quintal. Então já viu: se ela não apanha a infeliz e a joga de volta para os meninos, logo um deles se atreve a saltar o muro para apanhá-la. Tem xingado, esbravejado, feito papel de louca, mas parece que nada disso tem adiantado, já que continuam invadindo o seu espaço e troçando da sua cara. Mas agora está disposta a enfrentar tudo isso. Está mesmo disposta a dar um fim a tudo, tanto à voz de Mário, — voz de lanho que lhe flagela os ouvidos — quanto a esse tormento de menino gritando e saltando o muro.
Ah, que esforço tem feito para reter na mente os derradeiros fios de razão. Entre uma pane e outra, põe-se num labor intenso, dando nova feição à casa, espanando os móveis, trocando cortinas, afugentando insetos. Súbito, desperta-se para o óbvio: precisa varrer a imagem de Mário da sua mente; depois de tantos anos, ele ainda está aí dizendo o que ela deve ou não fazer. É uma questão de saúde! Há um desejo profundo de recuperar a ordem e a clareza. Nesses momentos, sentindo-se dona dos próprios atos, planeja abandonar o cigarro, mentaliza mesmo todo o processo, e chega a jogar fora o maço que acaba de comprar. Quer se livrar de tudo o que a oprime, principalmente da voz de Mário. Espera, ao final de tudo, ter enterrado para sempre essa voz vazia e seca.
Saudade mesmo é da gata que sumiu há mais de um mês. A gata que miava do lado de fora quando retornava dos longos passeios pelos quintais da vizinhança. Espera ainda que ela retorne e arranhe, aflita, o verniz da porta. É tão fraca, tão pusilânime, que vai deixar que ela entre como se nada tivesse acontecido.
Acaba de abandonar a área de quase-trevas e busca desesperada pela carteira de cigarros. Encontra-a metida no vão da estante, num lugar onde ela costuma esconder todas as outras. Sabe que, no fundo, tudo não passa de um jogo. E tem blefado o tempo todo, jogando com os limites da lucidez e da demência. Porém já não tem tanta certeza de quem está decidindo as regras desse jogo. Pode muito bem ser ela ou outra que a corrompeu nos mínimos detalhes, fazendo com que se mova fragmentada e sem memória. Quando foi mesmo que escondeu essa carteira? Tem quase certeza de que foi há pouco tempo, quase, quase, mas pode ser também que já estivesse aí há dias, ou meses! E deve haver outras tantas escondidas por aí — centenas! — entre vasilhas, roupas, móveis e enciclopédias.
O cinzeiro transborda, denunciando as inúmeras vezes em que ela recuou, quebrando a promessa de abandonar o vício. Tudo, tudo transborda. A voz de Mário também tem vindo com mais frequência à sua mente, num martelar corrosivo, purulento. Parece também que hoje os meninos estão gritando mais, numa zoeira infernal. Mas está preparada para o caso de a bola cair dentro do seu quintal. Está preparada para tudo, para a vida e para a morte. Para a enchente e para a manhã de sol espocando na janela.
Ouve súbito baque de pés aterrissando no chão do quintal.
Já esperava por isso. No vão da mente, turva e desassossegada, tudo está planejado. Nunca, nunca agiu com tanta lucidez assim. Voz alguma poderia fazê-la recuar agora, e pela primeira vez irá ao cerne da questão. Vai insurgir-se contra esses mandos que, mesmo depois de anos, ainda teimam em reverberar pela casa.
Contaminada por essa certeza, vai à cozinha e apanha a faca.
Ao abrir a porta, surpreende o menino tentando escalar de volta o muro, tentando retornar à vida, à claridade da rua, ao sol da infância. Mais alguns passos e poderá alcançá-lo em pleno desespero de pássaro tentando atravessar o vidro da janela.
[Do livro de contos Baque. LGE Editora, 2004]
TREVAS
O Comandante mandou que ele fosse verificar se havia algum ser entranhado naquele breu. Mandou-o sem o auxílio de nenhuma luz, como se ele tivesse algum parentesco com as criaturas que enxergam nas trevas mais densas.
Como foi o Comandante que mandou, o soldado obedeceu. Antes, porém, passou-lhe pela cabeça indagar-lhe (mais por causa do medo que o aterrava) por que havia escolhido exatamente ele, um medroso confesso. As razões de tal escolha ficariam, como podem supor, ocultas para sempre.
Imaginava, no entanto, que havia na escolha do Comandante um quê de maldade: há dias ele vinha notando que seu jeito titubeante lhe despertava impulsos sádicos. Esses impulsos, num crescendo, haviam chegado às raias da tortura psicológica. Para seu pavor, a situação ia piorando cada vez mais. Dava bem para prever a que nível chegaria essa escalada de maldade explícita: em breve, culminaria numa sessão de tortura física diante de todos. E, como se tratava do Comandante, ninguém, absolutamente ninguém, faria nada para contê-lo.
No escuro, tateando a esmo, o soldado foi em busca do ser que dera leves sinais de rondar por ali, talvez à espreita de alguma caça. Esses sinais, ouvidos pelo Comandante, eram ora o crepitar de capim sendo esmagado por patas ou por pés (supondo, nesse caso, tratar-se de um humano), ora o estalido de um galho sendo quebrado, ora uma espécie de rosnado ou latido, ora um seixo sendo deslocado pela ação de um chute acidental, ora a respiração ofegante de quem age sob uma tensão infernal...
Ele não tinha ouvido ruído algum, mas o Comandante, com sua audição aguçadíssima, afirmou ter ouvido mais de uma vez.
Vem dali, ó, é só prestar atenção que vocês escutam.
A impressão que dava era esta: exceto o Comandante, ninguém mais da tropa tinha ouvido ruído algum, fosse do que fosse. Mas quem teria coragem de contestar o Comandante? Quem teria coragem de chegar diante dele e lhe dizer sem vacilar: Comandante, o senhor se enganou, isso aí não deve ser nada, são apenas ruídos comuns na noite, sons dilatados pelo grande silêncio que costuma reinar a essa hora. Quem teria coragem de dizer algo assim, tão afrontoso? Ninguém ousaria tanto, pois ninguém queria levar um tiro nas fuças e ser deixado ali, apodrecendo ao relento.
Com um pouco de alívio, o soldado deu-se conta de que a sua cor escura lhe servia muito bem de camuflagem naquele momento. Mesmo assim, o medo persistia. Galgava-lhe as pernas, fazendo-as tremer, e lhe oprimia a mente, obrigando-a a parir imagens assustadoras diante dos seus olhos. Porém, era só isso. O ser real, autor daqueles supostos ruídos que incomodaram o Comandante, até agora não tinha se materializado. Ele estava ali, no meio do mato coberto pelo breu, e não ouvia ruído estranho algum. Então, que espécie de bicho seria aquele que estava rondando o acampamento? Seria mesmo um bicho? Avançou mais para dentro da noite tenebrosa, mesmo porque não havia como recuar. Caso recuasse, sofreria, sem dúvida alguma, um castigo severo, do qual, caso sobrevivesse, não se esqueceria jamais.
De repente, numa brusca alteração de ânimo, o soldado sentiu vontade de topar com a criatura que estava lhe causando todo aquele transtorno. No meio do escuro aterrador, sem arma alguma (o Comandante quis que ele fosse assim, de mãos limpas, de peito aberto), cresceu, agigantou-se, perdeu a noção de perigo, e a sensação de medo, que antes quase o travava, transmudou-se em algo que estava na fronteira entre a insanidade e a bravura. Gritou em desafio: Quem está aí apareça agora! Eu não tenho medo de você! Eu não tenho medo de nada! Apareça aqui na minha frente. Anda, miserável, apareça!
Esperou alguns segundos. Só dava pra ouvir a própria respiração descontrolada e o coração batendo fora do peito. Um calafrio percorreu o seu corpo de cima abaixo. Não sabia mais se era por coragem ou medo, mas continuou a desafiar o ser que, com seus ruídos tão sutis, praticamente imperceptíveis aos demais, havia chegado aos ouvidos do Comandante. Os sensíveis ouvidos do Comandante!
O soldado não sabe até hoje se saiu daquele breu com as próprias pernas ou se os rapazes, obedecendo a ordens superiores, foram lá e o arrastaram de volta ao acampamento. Deu por si diante do Comandante e todo o seu ser estava tomado de ira e desobediência. Era o Comandante a criatura que ele desafiava agora. Não tenho mais medo de você!, gritava alucinado. Eu não tenho mais medo de porra alguma! Os lábios grossos tremiam enquanto ele rangia os dentes com ódio incontido. Quando sentiu na cara os dois tapas dados pelo Comandante, para que voltasse ao normal, a fera que havia se apossado dele nas trevas cravou as garras no pescoço do superior — seu pescoço branco e fino — e só não o matou porque centenas de mãos arrancaram-nas à força. Depois, em meio a grande confusão, jogaram-no de volta ao escuro aos berros: Vai embora daqui! Anda, cara, vai embora! Fuja, tá esperando o quê?!
Enquanto se embrenhava no mato e na noite, numa fuga desesperada, o soldado ouvia ainda as vozes dos companheiros enxotando-o feito um animal perigoso e imprevisível.
[Do livro de contos Uma mulher à beira do caminho. Patuá, 2017]
março, 2019
Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista. Tem alguns livros publicados, dentre eles, UM (romance, LGE Editora, 2009) e Uma mulher à beira do caminho (Patuá, 2017). É autor da peça de teatro Trinta gatos e um cão envenenado (encenada em Brasília, em 2016) e do longa de ficção O Colar de Coralina (Direção de Reginaldo Gontijo, 2017). Tem textos publicados em jornais, revistas impressas e revistas digitais, sites e blogues.
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