GALOCHAS
não se importava
com o vestido engomado
foi bordado em França?
não queria
o branco não queria
o laço
iria com galochas
pronta para as tempestades
andaria na incerteza do lodo
ainda que o vestido se desmanchasse
ainda que as tias gritassem seu nome
seguraria meninos e velocípedes
seus laços como garras
enraizada por galochas lilases
e pela aposta feita
sim! também podia
sim! era a teimosia
que a vestia
§
quando eu disse não
depois quase disse sim
repetindo o som do vento
na aridez dos alvéolos
quando eu disse não
invadiu minhas cavidades
acordou as fibras
com ferro quente
quando eu disse não
repeti o dia inteiro
para dar à palavra
seu tamanho justo
darjeeling first flush
dois cubos de açúcar
e o amargo da sua saliva
depois que disse
punhos lambendo o chapisco dos muros
até engolir a palavra
que ficou nos dedos
NÓS
depois de sua gargalhada
interrompida pela curva
encaixotei nosso tempo
escondi o solo do oboé
caminhei com sua risada
em meus ombros
até fazer do espanto
um emaranhado de nós
ESTALO
antes do caminho de velas acesas
e de seus cabelos desdobrados
antes de me erguer em cordas para tocar
os dedos da origem
antes da chuva que raleou as feridas depois do fim
alguém não desarmou a bomba
quando começamos a sorrir e meus cabelos eram os seus
quando comemorávamos o novo mundo
com bandeirolas na praça e crianças sem porões
te busquei na base da ponte
seus olhos contavam nossa história
e o detonador entre os dentes
MATA-BURRO
ela mastigou todas as sementes
arranhou o couro dos cabelos
o suor entre as pernas
o chapisco das costas
recusou a divisão dos dias
caixa de força, fuga do raio
afundou o dedo
no buraco entre as vigas
não desconfiou de porteiras abertas
o castigo desta liberdade é a espera
e a lembrança entre os ossos
FICÇÃO
no tempo passado
o pão do domingo era o trigo
ou o corpo
e São Bartolomeu se refugiou
com o terror na sua noite
naquele tempo quase inventado
a dúvida se esgueirava nas bainhas
embutidas na pele
no tempo masculino
cada animal da casa cumpria seu papel
atento ao punhal desembainhada
CÓPIA
ela e seu colar de libélulas
pairando sobre réplicas de bustos antigos
ele contando de glórias inventadas
ela, a tarde, os brincos e o batom vermelho
ele, o espanto de se sentir
cópia fiel de si mesmo
em um canto da casa
só habitado pelos gatos
[Poemas do livro Roca. Cas'a edições, 2019]
dezembro, 2019
Inês Campos nasceu em Belo Horizonte, onde vive. É poeta e advogada. Autora de Geografia Particular (Cas'a edições, 2017) e Roca (Cas'a edições, 2019). Tem poemas publicados em revistas e coletâneas nacionais e alguns foram traduzidos para o catalão.
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