©monica vendramini
 
 
 
 
 
 
 

O gourmet momentâneo

 

 

Margaret Atwood parece estar com frio

o modo como aperta o casaco preto na parte da frente

Amo seu nariz, seus pequenos olhos azuis

e aquele poema sobre o coração arrancado do peito

que lemos na aula de teoria da lírica

O papel amassado

passando de mão em mão como se fosse o órgão vivo.

 

 

 

 

 

 

A dor fantasma

 

 

Tenho as mãos vazias

e horizontes perdidos.

Meu coração vai

onde a vista não alcança.

 

Meu coração,

treze caravelas,

não descobriu

país algum.

 

Meus dedos festejam

um braço invisível

e dores fantasmas,

esse vício:

agarrar-se às coisas.

 

Sinto o vazio espalmado

contra o vento que me cobra

ser possível,

uma pilhéria

de que os livros não dão conta.

 

 

 

 

 

 

Teu movimento

 

 

Antes que te chame

o pelotão de fuzilamento

repara o pássaro

apara o dia.

 

Há um olhar que se derrama

lento sobre a vigia

e graciosidade no andar

do carcereiro.

 

Antes, sim, que chamem

o teu nome, anota

num papel ou na parede

certo verso de cimento.

 

 

 

 

 

 

O amor na gare de Astapovo

 

 

O Cristo no quarto

talvez adivinhe que ando triste.

Por educação, não diz.

Apenas espia, expia,

braços abertos em cruz.

 

As ruas hoje parecem longe,

cada bairro é um país.

E o amor é este trem descarrilado

rumo a Astapovo.

 

Se perguntarem de mim,

diga que planejo fugas

espetaculares, minta,

invente algo selvagem

que me faça rir.

 

Andam nuvens pelo céu

sempre em brasa por aqui,

e os dias correm,

despudoradamente.

 

Ainda ontem, juro, te vi descer

na estação errada e seguir

na direção contrária a mim.

 

 

 

 

 

 

Observação da rosa

 

 

Há um certificado, dizem, um título, um prêmio,

(algo assim) para quem melhor conseguir

descrever a rosa.

 

Sua haste, dizem, seu corpo, e tudo aquilo

que a sustenta, pétalas

e espinhos (em botânica, dizem, órgão

axial ou apendicular)

 

Mas, eis que seu efeito sobre nós

(e já o fez Clarice, não sei se opiáceo)

nos levaria a esquecer o que motiva

a perseguir a forma.

 

 

 

 

 

 

Caixa preta

 

 

Como quem rasga o peito e não discute

suturas para o peito aberto.

 

Pouco importa andar com o coração à mostra

os seios nus repartidos pelo esterno

 

fissura entre as costelas — a dor das tais fissuras

— que se tem quando se rasga o peito.

 

 

 

 

 

 

Pequena flor

 

 

Meu apartamento, no 12º andar,

fica tão perto da varanda

do vizinho do outro prédio

que, se esticar o braço com jeito,

conseguirei regar suas plantas.

 

Escrevo sobre mim, essa lonjura,

e sobre você, pequena flor,

na solidão do sábado.

 

A vida é esse verde entre nós.

 

Talvez biólogos nos expliquem

a fluidez do amor, a essa altura.

Serei melhor se lançar água

e, dessa distância que penso segura,

salvar uma begônia.

 

 

 

 

 

 

Kapalabhati

 

 

O poema perfeito respira no erro

que o socorre em kapalabhati.

 

O poema perfeito se esconde

enquanto respira

no erro que o socorre

em onze expirações contínuas.

 

O poema perfeito escorre,

em sukhasana, ujjayi-pranayama.

(bhastrikas como se rimas,

estrofes como se ramas,

dharmas como se dramas).

 

O poema perfeito brinca

entre os ossos do crânio.

 

 

 

 

 

 

Luto

 

 

Não haverá outro dezembro

como aquele em que beijei meu pai

pela última vez, a testa fria

de um homem morto.

Que ontem foi aquele

em que, juntos,

enfeitamos a árvore?

 

O silêncio é de ouro, me dizia.

Sinto em mim cada quilate.

 

 

 

 

 

 

Poema para ler em pé

 

 

Senhor, como será a vida

das mulheres altas?

 

Será que respiram melhor

no rarefeito espaço

de suas cabeleiras?

 

Serão mais vivas,

as mulheres altas?

 

Suas ideias estratosféricas

quase roçam o azul,

não perturbam o voo dos pássaros?

 

Senhor, e as alegrias

das mulheres altas?

 

Longilíneas dores guardam. 

 

dezembro, 2019

 

 

Kátia Borges é autora dos livros De volta à caixa de abelhas (As letras da Bahia, 2002), Uma balada para Janis (P55, 2009), Ticket Zen (Escrituras, 2010), Escorpião Amarelo (P55, 2012), São Selvagem (P55, 2014) e O exercício da distração (Penalux, 2017). Tem poemas incluídos nas coletâneas Roteiro da Poesia Brasileira, anos 2000 (Global, 2009), Traversée d'Océans — Voix poétiques de Bretagne et de Bahia (Éditions Lanore, 2012), Autores Baianos, um Panorama (P55, 2013) e na Mini-Anthology of Brazilian Poetry (Placitas: Malpais Rewiew, 2013). Escreve crônicas semanais no jornal Correio, desde agosto de 2018.

 

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