Fruteira
Imenso lugar em branco em que despontam sombras
lentamente amanhecidas entre sabores e tons do que sob a pele é fluida seiva a iluminar sentidos
edênica embriaguez a florescer de arrepios
no espelho, visagens, esvoaçantes palavras
veludosos violões vozes ouvidas
corpo que intui a língua do prazer e sonha
decifra rumos ocultos sob os escombros da construção em ruínas
luz sob entulho, cavando o leito da claridade: parto
ali, do lado de fora, a vida esplende.
Algo se mexe atrás do tumulto da sala,
rumoreja em surdina entre as garrafas do bar.
É provável que este murmúrio anuncie nascimentos
quem sabe, de paz ou de sílaba, do instante em que a manga-rosa
explodirá de madura sobre a sacada de mármore
e o adocicado cheiro do fruto se incrustará nos cantos do apartamento.
Agora chove.
E só então me apercebo de ser dezembro outra vez
sob a mangueira a paisagem toda se aveluda
e o mundo se umedece, suculento e próximo.
Sobre a pia, o alimento descansa entre sementes de cravo e meus secretos enigmas,
húmus que escorre desse cultivo entre desejo e morte
gerar com as mãos a esperada manhã
visgo da vida por si mesma imposta à aparente desordem que o mistério instala sobre meu destino.
Assim, sobre o susto, abandono-me à força do que não conheço
mas está aqui, iluminando objetos na penteadeira.
Bilhete
Açúcar, folhas de hortelã, um beijo de batom carmim
deixei sobre a pia à tua espera sob a luz da tarde
escondido na fruteira atrás do cheiro das tangerinas,
delicadeza de pétala orvalhada no apartamento vazio,
buscarás sinal de minha passagem e encontrarás nos objetos
o aroma cítrico de minha alegria
Antídoto
Uma casa em tons de rosa entre palmeiras verdes
o amigo que retorna — bálsamo de ervas aromáticas
cravo, canela, especiarias finas,
laivos de ouro no céu ao fim da tarde vasta,
soneto de Camões — flama de amor acesa
impõe-se sempre a vida contra a dor de nada se saber.
Vazante
Epidérmica, a notícia belisca a criminosa calma das varandas
esquiva-se dos beirais, da moça que espia o tempo
e morre na fonte das Pedras
calada na limpidez das águas do Ribeirão.
A Rua Grande com seu comércio cearense: camelôs, lojistas, transeuntes
existem do mesmo modo, imersos na atmosfera lacônica e pegajosa,
por toda parte, fermenta um mormaço aborrecido
sem que ninguém pressinta a gestação dos horrores
que se respira no mangue — os caranguejos e os homens disputando a lama
onde a vida, imponderável
não parece verossímil.
Capricho
A poesia restará como pedra preciosa refém da rocha inacessível?
Germinará de um delírio entre súbitas guitarras andaluzas?
Brincará de se esconder entre os pelos do teu púbis?
Mas o que, agora mesmo, inibirá o texto que se nega?
Um cisco em meu olhar, pousado leve sob a pálpebra?
Um pensamento difuso, esquivo a qualquer palavra?
Um desfazer-se de formas que jamais se cumprem, elaborando brilhos para o nada?
Não sei mais o que ofereça a essa deusa fugaz,
que — leve susto — risca a página
como faísca vermelha no céu das noites de maio.
O mel dos olhos
Derramar sobre teu corpo uma colmeia,
o vinho de mil açucenas e gerânios
— delicada artesania desse amor lilás
confusão de cílios, entrefechadas pálpebras,
gozo de abelhas embriagadas
zumbidos, tatalar de asas
voo
tesão parnasiano
por teus olhos
raptarei rimas raras
secretarei sonetos ardentes e castanhos.
Vida em comum
Eu meio à bruma, teu amor me guia
na veia é sumo ardente, anjo em vigília,
mão que me tomou ao sal da ventania
a fustigar-me o corpo, o peito em carne viva,
trôpego deambular ao largo da palavra,
tenebrosa aflição a que trouxeste alívio.
Miçanga
Uma ponta de lua derrama romance nos telhados
zabumbas de bumba-boi ressoam longe
metafísicos mistérios em surdina.
A luz de um candeeiro se assusta de vez em quando
com o silêncio das formas que anima no sobrado
enquanto nossos corpos docemente se festejam
gratos por um carinho súbito do vento nos coqueiros.
Carrossel
Coração de poeta não se nutre só de dor
mas de fulgor, sobretudo
do afago esquecido no sofá,
do brilho que as horas ocultam.
É domingo e nunca fomos expulsos do Jardim do Éden,
Logo despertarás aromas de café e sândalo
adornarás esta manhã de risos e de azul.
março, 2019
Lenita Estrela de Sá é graduada em Letras e Direito. Tem treze livros publicados de forma independente, em diversos gêneros literários: poesia, conto, literatura infantil, teatro, roteiro de cinema e televisão. Em 2018, publicou Antídoto (poemas), com apresentação na orelha por Salgado Maranhão. Foi incluída por Nelly Novaes Coêlho no Dicionário de Escritoras Brasileiras (Escrituras, 2002). Tem publicações nas revistas literárias "O Casulo — jornal de poesia contemporânea" (Patuá, 2016), e "InComunidade" (Portugal). Participa das antologias Mulherio das Letras 2017 (conto e poesia), Do Desejo — as literaturas que desejamos (Patuá, FLIP 2018) e A mulher na literatura latino-americana (EDUFPI/Avant Garde Edições, 2018). Foi incluída por Rubens Jardim na série As Mulheres Poetas na Literatura Brasileira (2016), publicada no blogue do autor e no e-book de mesmo título, v.2 (2018). Em 2018, lançou novo livro de contos, Brasas ardentes na ponta dos dedos, que reúne catorze histórias com temática variada, pela Editora 7Letras, com apresentação na orelha por Alberto Mussa.
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