TRÊS PENSATOS
1.
penso naquela única gota
gelada do chuveiro quente.
Nas ilíadas clandestinas
que a febre percorre
até virar suor. Penso nas caretas
que os músicos fazem
quando estão solando.
No meu pai me dizendo
que tudo isso aqui era mato.
Penso na imagem exata
de uma aurora indecisa.
Penso em calços de papelão
para pianos mancos.
2.
penso em alguém que, na manhã
do dia de sua morte, desiste
de usar a camisa que mais gosta,
preferindo guardá-la para uma festa
que terá na noite seguinte.
3.
penso em você, por exemplo,
largando o controle
remoto e dizendo —
do jeito mais lindo
do mundo — que adora
quando consegue pegar
um filme do começo.
SPOILER
Lembro que você me contou
uma história incrível.
Embora não lembre a história,
sou capaz de soletrar,
inclusive, a brisa que,
por um microssegundo,
inflou a cortina da sala.
(Um pedacinho de uma tarde
dentre as trilhões de tardes
que existiram naquela tarde.)
Lembro as pausas,
a música dos seus braços,
o cabelo tirado do rosto
no momento exato.
(Um bombom de ternura
com licor de naufrágio.)
O QUE SEGUE é um silêncio
habitado pela tentativa
de caçar uma brecha que seja
entre o matagal
que virou o terreno
onde antes havia
a grama aparada
desta simplicidade
BRUXISMO
Isto podia ser outra coisa. Uma bebedeira, por
exemplo. não, não uma bebedeira, mas o começo
encantador da embriaguez. Um dia bom, qualquer
motivo, a vida irrigando o corpo como nicotina.
Podia ser uma baleia encalhada na praia
do amor. Um pote de raiva esquecido no sótão.
Podia ser uma antena em estado de coma.
Ou cacos de vidro num fliperama. Um fotógrafo
desolado por não estar com sua câmera
naquele momento. Ou um menino, sentado
na ponte, balançando os pés ao som de si mesmo.
Podia ser uma seleção de crônicas publicadas
em lugar nenhum. Um Deus discotecando
instantes. Um hidrante aberto no agora.
Podia ser uma mulher suspendendo a barra
da calça para saltar uma poça. Aqueles insetos
que morrem após a picada. Uma adega de
ausências que o tempo elabora. Podia ser
um exame que, buscando uma coisa, diagnostica
outra. sim, podia ser isso tudo. Uma solidão
acesa no abajur da melodia. Um macaco
se olhando na água no primeiro dia do mundo.
FILME
Você pede para eu apertar o pause
e vai ao banheiro
deixando ao meu lado
seu cheiro quente
no travesseiro amassado.
Penso por um segundo
no texto que fiquei de escrever
para uma revista de literatura.
"Se é possível conciliar experimentalismo formal
e lirismo na poesia".
Ouço sua bunda
desgrudar-se da tampa
que bate seca
e levemente na privada.
A descarga, a torneira ligada,
imagino uma grande sequência.
A preguiça tem algo de comovente nos dias úteis.
Você volta ao quarto dizendo
— Está me dando uma fome!
enquanto rimos da pose engraçada
em que o ator parou.
Antes de apertar o play
chego a esboçar que algumas pessoas
são incapazes
de tirar a poesia do sério.
SINOPSE
Canetas que falham ao lado do telefone.
O baque das havaianas na escadaria.
O labor sigiloso de um poema.
Um gemido de geladeira
nalgum ponto perdido do dia.
Um copo que nosso brusco
e cômico malabarismo
evitou que se quebrasse.
LITERATURA COMPARADA
Quando o mundo é um cruzamento
movimentado cujo semáforo pifou.
futuro é um cartaz de filme antigo
num cinema que já fechou.
angústia é esse instante
durando meses. afeto
é uma conversa entre velhos amigos
no bar mais próximo ao velório de um deles.
marcos rey
foi meu Chuck Berry da literatura.
carne moída é o leite
condensado das misturas.
paz é sorrir por dentro. postais
são imagens pingando
das goteiras do tempo.
entrar é o começo
de sair. "ser original
é tentar ser como os outros
e não conseguir".
academia é a repartição pública
do corpo. simplicidade
é a superfície do topo.
fracasso é o abajur da sorte.
cantar é roubar
uns minutos da morte.
BREVE
Lembro uma crônica
em que perguntavam ao Mario Quintana
se ele queria uma carona
Ele disse não, obrigado
Estou indo para outro lado
CONTRAPLANO
Algo ganiu no peito das formas;
vareta quebrada
de um guarda-chuva,
um cachorro
mancando na aurora.
Chave brigando
com a fechadura;
traduzindo, em
volta, o que só existe
de ir embora
RESTOS DE ESTÚDIO
Cada cigarro fumado na madrugada fria do posto
de uma cidadezinha absurda qualquer
durante a parada do ônibus.
Quantas imagens apodrecidas
na garganta seca das descrições,
canções que não chegaram a tempo.
Quantos dentes pintados de preto
nos retratos sérios dos livros de história,
tanto amor que virou desespero.
Cada silêncio perdido no grito,
tantos cacos de vidro em cima dos muros,
como se eu mesmo os tivesse escrito.
Quantos versos criados a bordo e não anotados,
tanto rancor latejando
na mudez de socos não redigidos,
tanta fita cassete e as gargalhadas
de todos os loucos
espanando o sublime do mundo.
Quantas giletes cuspidas de um pulso,
tanto caderno novo começado,
quantas falas roubadas de amigos,
tantos pântanos não soletrados.
Quanta inocência colhida em varandas de abismos
que eu carrego comigo
como um tesouro afundado.
FORTE APACHE
Noel Rosa dizia que era universal sem sair de
seu quarto. Elvis Costello disse que o rock 'n' roll
não morrerá porque sempre vai ter um garoto
trancado em seu quarto fazendo algo que ninguém
nunca viu. Laura Riding, por seu turno, falava
da pretensão de "escrever sobre um assunto/
que tocasse todos os assuntos/ Com a pressão
compacta do quarto/ Lotando o mundo entre meus
cotovelos". Já François Truffaut considerava-se
pertencente a uma família de cineastas que
praticava uma espécie de "cinema do quartinho
dos fundos, que recusa a vida como ela é" —
como "nas brincadeiras de crianças, quando
refazíamos o mundo com nossos brinquedos".
Como escreveu Ferreira Gullar no Poema sujo,
"que me ensinavam essas aulas de solidão"?
Aliás, é Pascal quem avisa: todos os males
derivam do fato de que não somos capazes
de permanecer tranquilos em nossos quartos.
JOSEPH MITCHELL
Falo de dias frios. De movimentar
a torneira do chuveiro
como quem ausculta
o segredo de um cofre.
Como diria Herberto Helder,
do "nosso dardo atirado
ao bicho que atravessa o mundo".
Falo de um músico
cuja maior virtude
está nas notas que não toca.
Dos filmes que não se privam
dos tempos mortos.
Sim: falo de entregar o ouro.
De alguma espécie
de alvenaria efêmera.
Das narrativas que iluminam
o que deixaram de fora.
março, 2019
Marcelo Montenegro (São Caetano do Sul/SP, 1971) é um dos principais nomes da nova poesia brasileira. Os poemas aqui publicados estão em Forte Apache (Companhia das Letras, 2018), que além do inédito, reúne os seus dois primeiros livros na íntegra — Orfanato Portátil (2003) e Garagem Lírica (2012). Além de poeta, é roteirista e criador de séries de ficção — já escreveu para HBO, Netflix, Globo, MTV e GNT, dentre outros. Em parceria com o guitarrista Fabio Brum, lançou o CD Tranqueiras Líricas (2017), registro em estúdio do espetáculo homônimo com o qual se apresenta há mais de 10 anos dizendo seus poemas ao som de rock 'n' roll, blues e jazz.
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