§
Um animal peçonhento
fez um ninho
no meu peito.
Nasceu de uma mulher
e se alimenta
dos farelos da minha esperança.
O bicho mastiga minha alma
e cada mordida é como se
um punho se abrisse
dentro da garganta,
unhas compridas.
O animal inquilino
está dormindo agora.
De barriga cheia
ele me deixa escrever.
§
Não ferem os amantes
as frestas
entre as frases.
Na língua em repouso
o desejo se dilata
até tocar o indizível.
A ausência das palavras
é o palco dos olhos,
dos hálitos,
dos hábitos despidos.
Peles, pelos e peitos
entrelaçados,
bêbados de presente.
Um espetáculo
em que as proposições
são espectadoras
e aplaudem atônitas
a eloquência dos corpos.
Bula da alma
Após incontáveis estudos científicos,
pautados pelos mais criteriosos métodos,
descobriu-se que a alma humana é composta por três elementos.
O primeiro, apesar das madrugadas mal dormidas,
ainda não foi catalogado pelos especialistas
e equivale a noventa e seis por cento da alma.
Como bibliotecários analfabetos,
é sobre este material que debruçam os psicanalistas,
os pastores evangélicos
e os gerentes de Recursos Humanos.
Três por cento da alma equivalem a um tipo raro de pedra.
Densa, áspera, resistente.
Por mais que se invistam forças,
ela não se entrega a refinamentos;
é avessa a modelagens.
Há, contudo, a parte de argila:
volátil, inicialmente amorfa.
Ao contrário do que afirmam os renomados pesquisadores,
é neste um por cento que se deve empregar as atenções,
a única parte esculpível da alma.
Mas um alerta:
de nada adianta observar passivamente.
É preciso fornecer as ferramentas adequadas ao oleiro
(que umas crianças arteiras deram o nome de tempo)
Estiagem
As lágrimas secam-me por dentro.
Mas não se trata de uma secura sertaneja
com as trincas da alma à mostra.
É uma secura que
cega as foices do remorso.
Uma secura que
lava as ausências
feito feridas.
Uma secura que
exorciza as súplicas.
Uma secura fértil:
o orgasmo dos olhos
como sêmen
do momento seguinte.
Cidadão de bem
O cidadão de bem
é patriota.
Pede ordem e progresso
com a garganta dos âncoras televisivos.
Grita que sua bandeira não será vermelha,
despercebendo que ela nunca deixou de ser:
sangue de negros, índios e pobres.
O cidadão de bem
sai às ruas.
Mãos ao alto,
pedindo por justiça.
Faz carreata,
caminhonetes tracionadas
por correntes de WhatsApp.
O cidadão de bem
é conservador.
E leva isso tão a sério
que conserva sob a bainha carregada
os privilégios e os valores invertidos.
O cidadão de bem
acredita em Deus.
Um deus moldado à sua imagem e semelhança,
túnica camuflada e escopeta à mão direita.
Um deus que odeia Drummond.
Um deus que não sabe dançar.
O cidadão de bem
nem sempre é cidadão de bens,
mas se considera empreendedor.
Tem a meritocracia como sagrada
e, mesmo excomungado,
ora pela bíblia dos bancos.
O cidadão de bem
chama ditadura de regime.
Talvez porque
ela tenha emagrecido a liberdade
a ponto de deixá-la pele e osso.
E, quanto aos ossos,
muitos ossos,
esses foram encontrados
sob a manta verde e amarela
ao fim da "Revolução Democrática".
O cidadão de bem
se olha no espelho
com orgulho de ver um cidadão de bem.
O orgulho que o priva de saber
o que seja cidadão e o que seja bem.
Procura-se
Em que parte do corpo
se encontra a clemência?
Consultemos, para o resgate,
os manuais da criação humana!
Estaria camuflada
sob a língua
que profere verbos imperativos?
Estaria presa
às cavas do peito
que prefere morte em vez de afeto?
Estaria desmaiada
no assoalho do pulmão
que suspira ares
de quepes, coturnos e castração?
Estaria no caminho
de volta ao cérebro,
desejo de um estado pré-fetal,
ao descobrir que se tornara obsoleta?
A clemência está desaparecida.
Mas pouco adianta pregar
placas pelos órgãos oferecendo recompensa.
A clemência não aparecerá
enquanto os homens
continuarem com chorume nas veias.
Enquanto os homens
não virarem do avesso
o que chamam de vida.
Análise poética
Na visita ao analista,
a poesia reclamou dos amantes,
do arco-íris,
das íris coloridas,
dos céus estrelados,
dos lados luminosos,
dos postais, pontes e poentes.
À mostra com os dentes,
estava decidida a lançar um olhar
alijado de flores e frases feitas.
Agora, quer rastejar pela lama,
trocar a dama pela puta. O amor pela secreção.
— Mais genitália e menos coração, senhores!
Pretende enfiar o sol no bueiro,
arrancar os testículos do absoluto
e esfregar o cu na cara do sossego.
Sim, ela precisa espedaçar a esperança.
E, na dança, descalça, rodar pela praça
sem seguir receitas ou procurar piedades.
Vai, então, poesia!
Crava a língua na carne crua do presente.
Sobe a saia, goza com o sublime
e arremessa a eternidade na sarjeta.
Mutismo
A Adolfo Bioy Casares
E de repente
as bocas foram convidadas
a deixar os rostos.
Às que não aceitaram,
línguas decepadas.
De repente, não!
Muitos viram o facão sendo amolado.
Muitos pesaram a mão do carrasco.
Muitos inflaram sua garganta,
o sangue a escorrer pela voz.
Agora,
as bocas apátridas,
por detrás do muro verde-oliva,
velam as línguas que se decompõem
no subsolo da memória.
Mesmo o carrasco desaprendeu a gritar.
Os rostos,
que não beijam mais,
que não mais clamam por justiça,
ainda podem chorar.
E choram muito.
Choram inclusive
porque não conseguem sentir
o gosto da saudade.
Perspectivas
Fui superestimado pela vida.
Fardo pesado arrancar o dardo
do ventre do mundo,
vale inundado
de sonhos secos,
de olhares estreitos
feito estradas do interior.
Por isso desisti de violentar o tempo
com entulhos ou promessas.
Troquei o destino pelo delírio
e ainda devolvi troco:
deixei as verdades penduradas
no dedo frígido de Deus,
que, pesado,
não pôde mais me proibir.
[Poemas do livro um clitóris encostado na eternidade. Patuá, lançamento em setembro de 2019]
junho, 2019
Matheus Arcaro é mestrando em filosofia contemporânea pela Unicamp. Pós-graduado em História da Arte. Graduado em Filosofia e também em Comunicação Social. É professor, artista plástico, palestrante e escritor, autor do romance O lado imóvel do tempo (Patuá, 2016) e dos livros de contos Amortalha (Patuá, 2017) e Violeta velha e outras flores (Patuá, 2014). Também colabora com artigos para vários portais e revistas.
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