©dorothea tanning
 
 
 
 
 
 
 
 

Moenda

 

 

Um poema retorcido no torno

mecânico do mundo

não muda mais a cláusula

das devastações.

 

— Quando a assinamos? —

 

Agora, o olho do furacão humano

sequer restaura a carcaça

da criança estirada na promessa

de tudo o que não salvamos.

 

E procuramos casulos na despensa,

asilos protetores

sob os rigores da ofensa,

porque as palavras viraram motores...

e os meteoros estão irônicos

na plataforma das dores

e dos emblemas. 

 

O poema parafusado no coração da noite

diz que a flor está fixa

em ciclo único de trinta e seis séculos a menos,

contínuos de galáxias.

Oremos!

 

Que tudo está posto

a pasto, a pó,

a póstumo,

 

em declínio vialácteo

convicto de nadas.

Nademos.

 

 

 

 

 

Nunca é outro Ontem

 

 

Parecia sal em partículas transcendentais. O sabor na boca do sono, por antecedência de mundo, ainda mastiga o verbo. A órbita, na escala das essências, desintegra cada vez mais o que era puro, da ira. Havia um par de sapatos abertos na ilha, onde os pés de agora, resignados por não irem, modificam a sola dos acasos. Todo acaso é firme. E transforma. Solene de ideias. Duvido de tudo o que não sei, só até o julgamento dos sentidos. Fôssemos crianças estaríamos mudas. Uma flor se pergunta à sorte antes da pronúncia interrogatória da superfície. Vejo, nas encostas, coisas bonitas ainda. Não fui absolvida pela beleza. Não estou morta de novo, porque preciso fazer a travessia até o próximo rio. Carrego as cinzas do quarto, a cesariana no aperto das horas neblinares. A água morna na bacia das profecias nunca fixas.  A faixa de embrulhar umbigo. Os embargos declaratórios das árvores, os rabiscos da chuva sobre o nome. Aqueles desenhos no terreno, feito com pequenos ramos... quase ritos. Passagem e grito nas mãos deixadas do perigo. Há um desconforto nos abrigos da manhã, que nos desconfia de existir. Lembra-nos tanto. Enquanto o mar, inconsciente, participa da inquisição parcial das ondas. Portanto, não desfaçam planos e redes. Não nos persigam cavalos ausentes. Marinhos de pranto. Afogados de tentar estancar a sombra na água com os olhos enxutos de ontem. Nunca é outro ontem!

 

 

 

 

 

 

Não é Natal

 

 

É um perigo. Uma superfície invisível se propaga para um nascimento coletivo contrário. Não é natal, na ocasião predatória, quando o lacre dos prováveis sonhos predomina, estável. Não é natal mais. E se porventura fosse... não convenceria os desalojados do querer, os enjaulados das promessas, os andarilhos do nada. As manjedouras bombardeadas. Os bárbaros! Os bárbaros cortaram ao meio uma borboleta, arrancaram suas asas. Hoje. Contaram-me os bardos: "não será mais natal!" E tal qual o anjo dormido na descrença, pensam os desejos, na volta de tudo, pelas beiras do impossível, já com os sapatos na mão: "nunca seremos natal". Sou pequena agora, guardiã de onde não venho, mas estive, e tenho rosto de água e sal. Corro para trás do avental de minha vó, se ela também fosse e estivesse.  Para desacreditar em tudo. De novo.

 

 

 

 

 

 

Depois desses Dias

 

 

Será feita a transfusão,

do ferir dos pássaros

para as feras,

 

do furor da caça

para o repouso do pó,

do pós-guerra.

 

Os dias novos

sairão de nuvens

abertas em socorro,

 

e não haverá

retroceder de choros

no colo das manhãs

com seus armazéns de sol

 

e alívio nos convívios.

 

A quebra no sigilo dos litígios

dissolverá os exílios

a caminho já de casa.

 

As casas, as caras refeitas.

Uma luz de nada austera,

a descansar no cerzir

de cada peito,

 

no estancar das rezas,

sob o improviso das mandalas,

 

das talas a amparar os ossos

e o coração retorcido nas ciladas,

vindo...

 

Uma luz de nada austera

há de atear fundo

um outro humano...

 

menos de amputações,

menos de venenos

e tiros.

 

Eis a sequência das fraturas

para o instaurar

da novíssima frequência.

 

 

 

 

 

 

Monólogo quase Definitivo

ou Desnecessário

 

 

Agora pinta as paredes do teu nascimento.

— decora teu abismo —

 

Suspende o pacto de não ceder:

esquece.

 

Cega e habita?

 

Colide o cordial contentamento.

Cautério.

 

A quase cicatriz...

reaberta.

 

Deserta teu sol

carvão profundo.

 

Diminui as mãos

desse absurdo

E me ensina a voltar

para onde eu vou.

 

 

 

 

 

 

Oratório d'Água XII

— dos aguaceiros —

 

 

Ainda é cedo

nos ossos adormecidos

das batalhas.

 

Sonhei que estava lendo

esse poema — agora em curso —

 

mas creio que não era

em nenhuma praia.

 

Era um não lugar. Avulso.

 

E eis que ontem

os aguaceiros foram trazidos

pelo mormaço.

Aos sustos.

 

Aos justos de sede e de séculos.

 

Hoje o céu nublado em círculo

se espalha.

 

Há uma navalha de chumbo

que reinventa a si mesma.

 

Quaresma. Prisma interior.

 

Vigésima água repetida

de tudo o que trago.

 

Mil olhos machucados

de entulhos e talhos

nas arrebentações.

Bentas.

 

Tantos gatilhos escorridos

em doses lentas,

e outros estragos na estrada

estrutural do tempo.

 

Temporal ainda submerso

nos poros dos reparos.

 

Dispara-me a noite

com seu universo.

Faz-se clara, encharcada,

nas palhas dos porões...

 

nas colisões das quilhas.

Eu choro em localização.

 

Olho para os astros.

 

São rostos imantados

das armadilhas já dispersas

dos desperdícios periódicos

de vidas,

das quais há muito perdi

o rastro.

O risco. O grito. A chave.

 

Mas os caminhos se abrem

em guarda-chuvas.

 

Às coisas novas.

Às coisas uivas.

 

 

 

 

 

 

Quando Pressentem

 

 

O silêncio não nos corrompe

porque temos as mãos melhoradas de vazios.

 

Logo serão monumentos

floridos na pele

das colinas de uns mundos acidentais,

 

quando tudo mais se recolherá

em meditação.

 

Guardemos este molhe mental

para proteção do que sobrou

de pensamento,

 

até a convergência mais próxima

das alterações...

das atracações humanas,

 

nesses becos sem barcos

de saída,

com civilizações pendentes ainda,

 

de onde se desprendem

em arrependimentos

abissais

 

ao longo fundo das águas que se calam

 

quando pressentem.

 

 

 

 

 

 

O Sono de Tudo

 

 

Não é que a manhã não esteja bonita. Não é o café que está amargo no paladar imediato desse dia que ensaia o de amanhã. É a vida na fila das horas, a consolar o que lacera, o que nos memória, enquanto a morte se escora para descansar nos entulhos, em braile, depois que os olhos ficaram fincados para trás. É algo a mais embrulhando cacos coloridos de sal no futuro, onde há sempre um urso polar a olhar o aberto dos pulsos... o fechar das tocaias, dos discursos, em semigritos que brotam das grotas nas estradas, pelas quais há vitrais que não veremos:  nascentes de outros tempos, quando o corpo tinha sede de gelos derretidos... sede do fim dos flagelos, esses clichês difíceis de consentimento. Mas é tão fácil entender depois de desisti-los. É tão abrigo das entregas, que a tristeza vem em tréguas de sustentação. Os sustos sentados às margens das crateras. Os sonhos do lado contrário das poucas esperas. O sono, o sono de tudo! Tão fácil atender a isso!!! Se o precipício afaga a queda líquida, sísmica de compromissos. E afasta da crosta terrestre os rastros dos inícios. Anuncia-nos o que nunca fomos, talvez por um último átimo necessário de sacrifício. O urso não é mais de pelúcia. Nunca mais é. É a lúcida imagem da infância crescida longe das miragens. É o escalar selvagem da dúvida, com os dedos agarrados nas ramagens, com as mãos dormentes na subida incerta rio acima. Na gravidade do espírito moldado em palavras famintas, diante do breve instinto a perfurar a verve do silêncio nervoso de infinito. Não é que a amanhã não esteja bonita! Não é?

 

 

 

 

 

 

Doze Navios

 

 

Doze navios me olham.

Selvagens.

 

Hoje é dia de atravessar o campo

das águas anuladas.

 

O perigo não faz silêncio

antes que se abra a hora do alívio.

 

E a chave das épocas

nunca é definitiva

do que desata.

 

Traduzem-se agora os sete arcos

de imediatos destinos.

 

Cruzam-se as patas dos barcos

que são cavalos mais discretos já.

Com sotaques marinhos.

 

 

 

 

 

 

Remoção

 

 

Removo-me à ilha.

Sou a que se retira

da fila das tradicionais sequelas

e do fel,

com devoção.

 

Fiel. Felina sobrevivida,

por oito calendários menos um,

nos campos diários dos assédios,

dos decretos cretinos,

inventados para a opressão,

revestidos de bobagens nunca sutis...

me removo.

 

Pela renovação talhada nas pedras...

como se restauram os pés,

as pétalas, depois das guerras. 

 

Removo-me pelo implodir

de um ciclo,

máximo de atrito, digno de estudo.

 

Que a tudo soterra

com mãos finais, 

fazedouras de idas...

nascidas de uns seres

irretornáveis

do que é humano.

 

Removo-me à ilha,

nessa instância necessária e prometida

da vida,

 

vou pela saída

da frente,

 

rente ao fechamento

das feridas.

 

Porque era assim.

 

 

 

 

 

 

Nave Migratória

 

 

Que uma delicadeza inédita

renovasse a nave migratória

das contendas...

era a encomenda de Deus,

 

nas incertezas áridas,

pálidas de chuva,

quando as flores aprendem a chorar

sem que ninguém as veja,

 

até que o vento as veleje

e nas vértebras das voltas,

as defenda.

 

Que o sol desobedecesse a chuva,

num lastro de perdão,

em arco e em íris,

para os abrires multicores

das promessas,

era o querer dos corações

nas preces.

 

Que ajuntassem as folhas

no quintal das falhas dessa espécie,

era a oração antecipada

da estação que não tivemos,

por falta de esplendor.

 

Mas finca o exemplo do que termina

até onde for.

Que se não ensina nem socorre,

dolore o solo das retinas

o quanto pode. Até que.

 

 

 

 

 

 

Do que Liquida

 

 

A luta garante que foi grande

e o dia à noite se expande.

 

Resiste com o que restou.

 

Não haverá cavernas mais...

Os carnavais governam

a proteção de todas as ruínas.

 

A luta foi grande...

e a lua alta

arrebata com precisão

as não marés dos refúgios.

 

Há sermões de cansaço

nas águas estendidas sobre as pedras,

em crucifixo. 

 

No plexo solar dos avisos

reviso as estrelas

em pigmentos de cruz.

 

Estou à beira

do que desdobra as veias,

do vermelho-cinza das febres,

que de tão antigas

as abrevio de interstícios

crepusculares.

 

Sonares de sonhos

que a vida já não valida.

 

E uma entrega soluça. Aqui.

Liquida.

 

 

 

 

Patrícia Claudine Hoffmann nasceu em São Paulo/SP, 1975 e mora em Joinville/SC, desde 1981. Graduou-se em Letras pela Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE, em 2004. É professora efetiva da Rede Estadual de Ensino de Santa Catarina, onde leciona Língua Portuguesa e Literatura. Autora dos livros de poesia: Água Confessa (Letradágua, 2001), Sete Silêncios (Fundação Cultural de Itajaí, 2004), Matadouro Imperfeito (Letradágua, 2016), Feito Vértebras de Colibris (Marianas Edições/Bolsa Nacional do Livro, 2017) e O Livro de Isólithus (E-book. E-galáxia, 2018). Mantém as páginas Espólio do Sol e Matadouro Imperfeito. Integra antologias e tem poemas publicados em revistas digitais.

 

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