©pedro covo
 
 
 
 
 
 
 

§

 

 

respira-se debaixo d'água

como as baleias

 

a cada movimento

a calmaria do oceano

que ondula

 

a cada respiro, um segundo,

um só

de vida marinha

no aquário preso entre as quatro paredes

 

e o livro, quando aberto,

se torna faísca, flash,

farol

 

luz néon

reverberando de azul

o teto o chão o ar até no fundo

de nossos olhos

 

nessa piscina que é o prédio

e todos nós dentro dele

 

mergulhados na noite

 

 

 

 

 

 

§

 

 

Os ruídos do prédio são leves e voltam sempre à mesma hora, abrem feridas invisíveis no dia. Nossa escuta é um bisturi que cinge e sutura com precisão, num inusitado remendo, a vida íntima dos locatários desta comunidade que habita o betume, o vidro e a vertigem.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

A manhã me recebe

alerta

com o florescimento da rosa

plantada no vaso

à meia-luz

 

enquanto seu perfume

inesperado

preenche os ângulos

sem encanto

do quarto,

 

o susto é esta rosa do campo

grata à luz artificial

do quarto no inverno,

 

esplêndida flor

aberta

antes da hora.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

Temos pele de vidro

e desejo de sobra

 

resta saber se não trinca

a pele sob a mão e seu tato:

 

as carícias como peixes

cobrem-nos de escamas.

 

Temos sorrisos e vidas

emolduradas

 

caso seja necessário

substituir meu vazio pelo teu

 

e enfiar-te no meu mundo

como roupa nova.

 

Temos palavras prontas

e livros que embelezam as estantes

 

caso seja necessário

inventar uma nova sabedoria

 

uma mera troca, rápida

como apertar essa tecla

 

e tudo deletar.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

a rua é quem esbarro

a fruta jogada no canto da calçada

a sola do pé que arde a dor

colada no asfalto

a esmola que resvala

na memória

 

a marquise onde me estreito

para que outros se acomodem

comigo

 

nessa ausência de nós

dentro da tarde

 

a rua é esse recorte e colagem

do olhar,

 

um super-homem de plástico

sem perna

afogado no bueiro

 

uma flor vermelha

que estoura nas grades

 

a rua é quem onde

agora

não sei

ou talvez amanhã

quem sabe

persiste

entre a poeira e o espanto

 

 

 

 

 

 

§

 

 

Há lugares que mudam de hoje para amanhã.

 

Não vimos esse canteiro, rente ao parque.

Em duas semanas a escavadeira abriu um deserto

ao redor

a geometria das flores extirpadas sem dó.

 

 

O guindaste surgiu do nada, fantasma solitário.

 

 

Será possível acreditar ainda que um circo

com a lona vermelha os palhaços os malabarismos

e a melancolia

alegre o lugar

 

ou um carrossel pouse no vento

e faça as crianças rodarem no ar?

 

 

 

 

 

 

§

 

 

Desfazer um mundo para erguer outro

 

pedaços resíduos tremores

a escavadeira fere a terra

pedra polida que talha

a civilização do barulho e do vidro.

 

Enquanto cava procura nas tripas

da cidade a água viva

talvez o coração do monstro,

 

abrem-se por toda parte

poços tumbas veias

diques do lado do parque.

 

Nós, dentro, ao abrigo

da demolição e da poeira,

 

gravamos perfis de bisões

às paredes

 

para que o instinto de vida

cuspa no asfalto e siga

apesar do escavo

 

explodindo em urtigas

invisíveis e milenares suas raízes.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

Ir da argila ao vidro cerâmica

 

idêntico instinto em conservar o traço

escribas contemporâneos

que forjam pictogramas

desenhos de pássaros primitivos

em tabletas de litium.

 

É preciso estocar cereais

caso seja impossível sair de casa,

 

recuar como caranguejos

da escrita das palavras para a escrita

das coisas

 

face aos escombros dessa nova Uruk

 

 

 

 

 

 

§

 

 

O canteiro é o esqueleto do monstro.

Aqui pode-se acompanhar o crescimento das unhas, dos ossos, das pernas, dos braços, o surgir das bocas, dos dedos, dos cotovelos e dos músculos.

E terá nós e olhos mil, em mil cantos do corpo.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

Os primitivos agora têm braços.

 

São as passarelas dos operários, suspensos no vazio, a passagem entre uma ala do prédio e outra, pernas que se sucedem, rápido, no alto, pernas e braços, braços e músculos, no alto, o vaivém das vidas que dançam a valsa da construção. Um dois três, um dois três, um dois três, o vazio, a vida embaixo, a vertigem, um dois três, os operários que dançam no fio, no alto, um dois três

perto dos astros.

 

Na rua, olhamos para eles como trapezistas no circo, com o desejo inconfesso da queda.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

Um desastre de fuligem e cinzas

 

deve ter sido assim

no primeiro dia

 

a construção e a ruína

cercando a planície

 

logo, do nada, a torre

no meio

 

esse desafio sem fim

para misturar o nosso destino

 

e entre a falha e o medo

erguer uma cidade

uma fronteira

 

 

onde deshabitar é nossa morada

 

 

 

 

 

 

§

 

 

E chegou o dia do estuque

 

 

o branco nos flancos

entre as costelas,

um branco absoluto,

tão escasso.

 

Parecem anjos

de gesso

ou papel machê

 

essa estranha transparência

ancorada no chão

 

a imitação imperfeita daquilo

que não somos,

 

um espelho trincado

 

um futuro para onde erramos.

 

 

[Poemas do livro Animal extremo. São Paulo, Patuá, 2017]

 

 

dezembro, 2019

 

 

Prisca Agustoni nasceu e cresceu entre a Suíça italiana e a Suíça francesa. Desde 2003 mora no Brasil, onde trabalha como professora de literatura italiana e comparada na Universidade Federal de Juiz de Fora/MG. Poeta, autora de livros infanto-juvenis, tradutora, ela escreve e se autotraduz em italiano, francês e português. Suas publicações mais recentes foram Un ciel provisoire(Genebra: Samizdat, 2015, sel. Prix Frontière); Casa dos ossos(Juiz de Fora: Macondo, 2017, semifinalista Oceanos) e Animal extremo(São Paulo: Patuá, 2017).

 

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