§
respira-se debaixo d'água
como as baleias
a cada movimento
a calmaria do oceano
que ondula
a cada respiro, um segundo,
um só
de vida marinha
no aquário preso entre as quatro paredes
e o livro, quando aberto,
se torna faísca, flash,
farol
luz néon
reverberando de azul
o teto o chão o ar até no fundo
de nossos olhos
nessa piscina que é o prédio
e todos nós dentro dele
mergulhados na noite
§
Os ruídos do prédio são leves e voltam sempre à mesma hora, abrem feridas invisíveis no dia. Nossa escuta é um bisturi que cinge e sutura com precisão, num inusitado remendo, a vida íntima dos locatários desta comunidade que habita o betume, o vidro e a vertigem.
§
A manhã me recebe
alerta
com o florescimento da rosa
plantada no vaso
à meia-luz
enquanto seu perfume
inesperado
preenche os ângulos
sem encanto
do quarto,
o susto é esta rosa do campo
grata à luz artificial
do quarto no inverno,
esplêndida flor
aberta
antes da hora.
§
Temos pele de vidro
e desejo de sobra
resta saber se não trinca
a pele sob a mão e seu tato:
as carícias como peixes
cobrem-nos de escamas.
Temos sorrisos e vidas
emolduradas
caso seja necessário
substituir meu vazio pelo teu
e enfiar-te no meu mundo
como roupa nova.
Temos palavras prontas
e livros que embelezam as estantes
caso seja necessário
inventar uma nova sabedoria
uma mera troca, rápida
como apertar essa tecla
e tudo deletar.
§
a rua é quem esbarro
a fruta jogada no canto da calçada
a sola do pé que arde a dor
colada no asfalto
a esmola que resvala
na memória
a marquise onde me estreito
para que outros se acomodem
comigo
nessa ausência de nós
dentro da tarde
a rua é esse recorte e colagem
do olhar,
um super-homem de plástico
sem perna
afogado no bueiro
uma flor vermelha
que estoura nas grades
a rua é quem onde
agora
não sei
ou talvez amanhã
quem sabe
persiste
entre a poeira e o espanto
§
Há lugares que mudam de hoje para amanhã.
Não vimos esse canteiro, rente ao parque.
Em duas semanas a escavadeira abriu um deserto
ao redor
a geometria das flores extirpadas sem dó.
O guindaste surgiu do nada, fantasma solitário.
Será possível acreditar ainda que um circo
com a lona vermelha os palhaços os malabarismos
e a melancolia
alegre o lugar
ou um carrossel pouse no vento
e faça as crianças rodarem no ar?
§
Desfazer um mundo para erguer outro
pedaços resíduos tremores
a escavadeira fere a terra
pedra polida que talha
a civilização do barulho e do vidro.
Enquanto cava procura nas tripas
da cidade a água viva
talvez o coração do monstro,
abrem-se por toda parte
poços tumbas veias
diques do lado do parque.
Nós, dentro, ao abrigo
da demolição e da poeira,
gravamos perfis de bisões
às paredes
para que o instinto de vida
cuspa no asfalto e siga
apesar do escavo
explodindo em urtigas
invisíveis e milenares suas raízes.
§
Ir da argila ao vidro cerâmica
idêntico instinto em conservar o traço
escribas contemporâneos
que forjam pictogramas
desenhos de pássaros primitivos
em tabletas de litium.
É preciso estocar cereais
caso seja impossível sair de casa,
recuar como caranguejos
da escrita das palavras para a escrita
das coisas
face aos escombros dessa nova Uruk
§
O canteiro é o esqueleto do monstro.
Aqui pode-se acompanhar o crescimento das unhas, dos ossos, das pernas, dos braços, o surgir das bocas, dos dedos, dos cotovelos e dos músculos.
E terá nós e olhos mil, em mil cantos do corpo.
§
Os primitivos agora têm braços.
São as passarelas dos operários, suspensos no vazio, a passagem entre uma ala do prédio e outra, pernas que se sucedem, rápido, no alto, pernas e braços, braços e músculos, no alto, o vaivém das vidas que dançam a valsa da construção. Um dois três, um dois três, um dois três, o vazio, a vida embaixo, a vertigem, um dois três, os operários que dançam no fio, no alto, um dois três
perto dos astros.
Na rua, olhamos para eles como trapezistas no circo, com o desejo inconfesso da queda.
§
Um desastre de fuligem e cinzas
deve ter sido assim
no primeiro dia
a construção e a ruína
cercando a planície
logo, do nada, a torre
no meio
esse desafio sem fim
para misturar o nosso destino
e entre a falha e o medo
erguer uma cidade
uma fronteira
onde deshabitar é nossa morada
§
E chegou o dia do estuque
o branco nos flancos
entre as costelas,
um branco absoluto,
tão escasso.
Parecem anjos
de gesso
ou papel machê
essa estranha transparência
ancorada no chão
a imitação imperfeita daquilo
que não somos,
um espelho trincado
um futuro para onde erramos.
[Poemas do livro Animal extremo. São Paulo, Patuá, 2017]
dezembro, 2019
Prisca Agustoni nasceu e cresceu entre a Suíça italiana e a Suíça francesa. Desde 2003 mora no Brasil, onde trabalha como professora de literatura italiana e comparada na Universidade Federal de Juiz de Fora/MG. Poeta, autora de livros infanto-juvenis, tradutora, ela escreve e se autotraduz em italiano, francês e português. Suas publicações mais recentes foram Un ciel provisoire(Genebra: Samizdat, 2015, sel. Prix Frontière); Casa dos ossos(Juiz de Fora: Macondo, 2017, semifinalista Oceanos) e Animal extremo(São Paulo: Patuá, 2017).
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