©nádia maria
 
 
 
 
 
 
 

~

 

 

Manhã de inverno.

Meus passos roçam a raiz das estações.

 

O céu é gaze cinza rasgada de azul

e o sabiá laranjeira escurece no telhado.

 

O esmalte do asfalto

se esfrega nos meus pulsos

como escamas de salmão.

 

Na esquina

a cascata de ouro e verdura

se enrosca na ferrugem do poste.

 

Da escória vertical

o rosto de mulher

é um túnel de luz.

 

(Através do silêncio

vejo beija-flores incandescentes

e sempre-vivas em combustão.)

 

Dias de tinta roxa na carcaça —

não basta olhar,

a vida quer tocar e ser tocada —

então os dedos fundos

no rosto de manteiga.

 

Rastejo em câmara lenta,

escavo com as unhas

o útero do labirinto.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Depois de uma vida, o casal desperta:

grão de sol gravidade zero,

a abelha adejou no café da manhã.

 

Saem de casa

com o sol zumbindo nos bolsos,

nas casas dos botões,

nas dobras da blusa.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Um dia qualquer

a morte acena no horizonte,

e o parafuso de aço —

porca e contraporca,

se atarraxa

na espinha do homem todos os homens.

 

Pão dourado em fogo brando,

celebra-se, às lágrimas,

a beleza do contraste.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Ouvindo música como um caracol;

do outro lado do vidro,

a alma azul de outono

se esvaindo em harmonia.

        

Fantasmas são lavados

da guerra de urânio

(chama-se enriquecido o urânio letal),

das palavras envenenadas,

de ódio familiar no coração;

brisa imaginária, de frescor, 

me restitui a inocência —

o sopro musical se sustenta no ar;

comove.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Faces de sol na verdura.

A árvore dança no cristal de outono.

Da copa às raízes dança com o vento.

A respiração de sol constante,

dança e dança.

 

Quatro de junho de dois mil e dezenove,

quinze horas e trinta e dois minutos.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

A escada na rua de inverno.

Carros passam.

Pessoas passam.

A realidade é úmida e silenciosa

         debaixo do guarda-chuva de nuvens.

Da casa cor de camurça,

         Bach nos dedos de Pablo

         e gotas harmônicas escalam o céu:

         a lágrima se ama une.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

No deserto semeamos o oásis da fertilidade.

Com cântaros portáteis

fertilizamos verdura na areia.

De tantos lugares aprazíveis

escolhemos a esterilidade do deserto.

Heroicos,

ao redor do fogo doméstico

trocamos educadas juras de amor.

De volta ao país de origem,

esfrega-se a borracha de areia na memória.

Depois

é só não regar a semente —

jamais.

Tementes ao frisson do caldo entornado

a textura de mãos é feita a sós.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

A árvore das águas da noite;

os mortos, até os mais antigos,

cruzam aberturas

no lugar de portas e janelas.

As palavras adormecem.

Os mortos

falam em silêncio

no oco da árvore submersa.

Meus cabelos se ramificam

na seiva da gratidão.

 

A árvore,

sou eu do avesso.

Os mortos,

o que passou permanecendo.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Orvalho, sereno, chuva de neutrinos

no canteiro de azáleas,

o Ser capilariza a emoção   

que evapora e condensa em sonho.

Ilhas de ilhas se afastam sem parar.

Aqui, na geometria da colmeia,

com olhos de vaga-lume, indago:

o que tem pés tão leves como o enigma?

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Quietude Bai Juyi —

sereno anoitecer de outono;

livre da grande cidade vazia de portais,

ouvindo o acorde dos insetos

caminho no fio de seda da Passagem.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Pensamos numa sala, uma mesa redonda, mas independe do espaço.

Em um círculo de espelhos não se fala tudo, não se ouve tudo.

Uma parte das palavras se perde pela porta, deixada aberta (ou sem querer, se preferem) bate com força nos fundos do corredor; outra parte recebe o rótulo de reserva, como vinho velho, e há uma distinção fortuita nesse bordeaux a frutas vermelhas, a fel no final, que se abre a sós; outra parte, o carvão do encontro, vem de colarinho cintado por uma gravata azul de cetim.

No bolso, em dobras geométricas, o lenço da palavra amizade.

Flutuando acima do círculo uma carcaça de barco no deserto da Namíbia.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Gestos do dia alcançam o útero da noite;

sóis, negro e ouro, em campos opostos.

 

Da velha poltrona do avô,

herdei manchas de sol na parede da casa.

 

Atrás de meu rosto em repouso,

mortos e vivos sussurram, suspiram.

 

Ouço as palavras que adivinho

dos lábios de cada um deles —

e as circunstâncias,

raiz irrigada a fios de cabelo,

se reconstroem precisas na sua origem:

o rosto vermelho,

riso e tosse na cadeira de balanço —

a barriga vibra na blusa azul Royal;

no suporte a quarenta e cinco graus

os livros adormecidos —

folhas se apegam

molhadas e secas de esquecimento; 

os dissimulados —

a brasa no canto do olho nos diz:

tenha cuidado;

os que subsistem com um nada de luz

recontam histórias:

fui o homem do chapéu panamá,

do fumo picado na concha da mão,

fui o que soube

(você sabe)

e guardei silêncio;

folhas de madeira se arrastam

às roupas de asas de borboleta;

no centro do lustre de mil pétalas

taças de ouro líquido

alimentam tristezas e alegrias

(e as alegrias vencem,

com nossa piscadela parcial);

gotas do tempo edificam  

corredores, aposentos, passagens secretas

que a lanterna da Presença ilumina.

 

Mortos e vivos,

munidos de folhas amarelas e vermelhas

armam o telhado da casa.

 

 

[Poemas do livro Centelha de inverno. São Paulo: G&C, 2019]

 

 

 

dezembro, 2019

  

 

Ricardo Carranza (São Paulo/SP, 1953). Arquiteto e Urbanista (Faumack), Mestre em Estruturas Ambientais Urbanas (Fauusp). Escritor, Editor, Pintor. Publicações: Scortecci, Sesc-DF, Cult, Clesi-MG, Zunái, Stéphanos, Cult, Mallarmargens, Cronópios, O arquivo de Renato Suttana, Triplov, &Escritas.org., Gueto, Ruído Manifesto, Pensador. Livros de poesia: Sexteto (São Paulo: edição do autor, 2010), A Flor Empírica (São Paulo: edição do autor, 2011), Dramas (São Paulo: G&C, 2012), Centelha de inverno (São Paulo: G&C, 2019). Artigos e Ensaios em 5% Arquitetura + Arte, desde 2005.

 

Mais Ricardo Carranza na Germina

> Poesia