que moça é essa, que moça
que moça é essa, que moça
que fincou estardalhaços
numa carne de maçã
num pecado de chumaços
amassado de manhã
que me deixou nos espaços?
quem reinou sobre meu fel
em papéis e desamassos
brandindo cada escarcéu
em olhares aos pedaços?
que moça é essa, que moça
que cortou os meus espaços?
que moça é essa, que moça
que derreteu meus bagaços
arrancou minha alma pura
ressecada de embaraços
que moça é essa, que moça
que me deixou nos espaços?
a moça é feita de rua
costurada em romaria
a moça é de carne crua
a moça é de ventania.
por meus olhares devassos:
é uma moça toda nua
que me deixou nos espaços?
os artefatos de Lia
1.
São tantos rios tiranos
arfados de entropia
são tantos cantos maganos
da vida sem melodia
são versos podres, insanos
desarmados de poesia
são atos, perdas e danos
atados na mão de Lia.
2.
São olhos sem muito amor
céu, inferno, estrada fria
janelas, pragas, horror
atados na mão de Lia.
3.
A mão única da via
o ato seco do asceta
a solidão do poeta
o olho que desafia
são todos, em linha reta
os artefatos de Lia.
João Cabral aportou no Recife em 09/01/1920
1.
os mortos que fendem toda lâmina
os guizos que arrastam todo estado
as tensas visões do já passado
o gosto que brota das derramas
2.
as rúculas mais tardas e placentas
os cactos com as carnes de um rio
sabido que só cabra é calafrio
sabido que só pedra o que aguenta
3.
sobre os magros porvires das idéias
por saber que cabral nasceu da lama
do recife brotado nas ninféias
4.
rasgado pelo senso de uma linha
ancestral pelo plano e pelo fio
da densa vastidão que não continha
5.
foi puro cabedal, foi quase esboço
foi feito joão cabral, foi feito osso.
Picasso é treva e luz. e pode tudo
se há problema, Picasso é a solução
atado em gesto e cor, feito de espaço
que ele mesmo criou na travessia
do rosto em Dora Maar e Jacqueline
são tantas fugas dos pontos, tantos atos
estradas, feras, viagens e armadas
que até pelo tormento pode muito
se arrancar a carne for a luz
azuis perpétuos, sacros, são a dor
do olho que antecede uma torrente
do verde ábaco, da pura substância
que morre e vive pela vala solta
e anuncia o minotauro louco.
Picasso é treva e luz. e pode tudo.
Minas são muitas e pálidas
Minas se dissolve
no ouro, no ferro
no azedume das almas
no pecado que vive em toda
procissão.
quantos deuses de Minas
se sacrificaram ao corpo capital
da morte?
precisamos de quantos séculos
18, de quantos açoites precisamos
até arrematar nossos pecados?
santo Drummond, santo Affonso Ávila
santos poetas são Pedro e são Paulo
quantas minas de poesia vão engolir
nossa montanha raquítica?
quando gado e aço acabam no meu corpo?
quanta terra ainda tenho que cobrir nos endereços
que me dão?
Minas são muitas e pálidas, como as mãos
de toda gente.
a arte cabe em qualquer boca
qualquer homem
é pedra ardente
mesmo que seco.
todo homem
é montanha
mesmo que bêbado.
cada homem
escava a morte
mesmo que sóbrio.
o levedo da arte
cabe em qualquer
boca.
vou escrever um manual do inferno
vou escrever um manual do inferno
onde caibam todos os desgraçados
da terra, esta terra solta na noite
dos olhos, no visgo dos olhos, no
preto de cada olho, no grito de cada
boca de poucas esperanças. quando
aparecerem todas as desgraças, eu
me renego e me esvaio. puto e ferido,
como só assim pode ser.
carta para lorca e tàpies
quando eu fosse menino e te entregasse
o meu coração tumultuado
no rasgo deste mundo desaguado
no travo da paixão que me amarrasse
se o teu olho de fogo me queimasse
e a cinza do sal adormecesse
se a manhã, mais válida, ficasse
num amor tão forte que doesse
se tua noite, teu dia, me esmagasse
e paixão mais dura florescesse
numa pálida visão que me restasse
se na vida, de fato, eu só sangrasse
que faria eu que me ardesse
tão bêbado, no fim, que eu me matasse?
"a vida só é bela para os ressuscitados"
o meu verso é um estrago
na linha do meu pescoço
o meu dente, só um bago
o meu corpo, puro osso
minha boca de ariranha
minha mão atropelada
minha ferida medonha
a minha pele rasgada
renasço. a cara lamenta
pelo buraco em que vim
e a minha vida nojenta
explode dentro de mim.
tem um reino sem um rei
nesta vila de ouro preto
onde sempre eu naveguei
tem um mar obsoleto
tem um reino sem um rei
na rua do meu tormento
faça sol, escuro ou vento
a vida é força de lei
se volto aqui, meu amigo
carrego o reino encantado
enterro tudo comigo
no meu olho sem pecado.
dizer mais, eu já não digo.
perguntas a Murilo Mendes
se eu me manchar de palavras
o que sobra do texto?
meu raro entrave?
minha alquimia?
meu passado andaluz?
minha vida crua
pulsa no texto
ou é mais um quilate de pedra?
sou denso e neutro?
leve e ávido?
quando posso saber
se a palavra é nada?
pelo teu olho?
pelo teu faro?
do teu espanto?
vou pisar nas ruas
e beber meus extratos.
fala, Murilo!
o poema, moça bela, é um entulho
o poema, moça bela, é um entulho
que peço me caber em cada canto
do corpo, essa estrada, meu espanto,
meu quebranto de escuros, meu engulho.
o poema, moça bela, é um reboco,
uma tela que cobre a tarde nua.
cada poema que piso é uma rua
imensidão de mãos, como num soco.
dezembro, 2019
Romério Rômulo é professor de Economia Política da Universidade Federal de Ouro Preto/MG. Poeta e editor, publicou os livros de poesia Bené para Flauta & Murilo (1990), a caixa Tempo Quando (4 livros, 2 volumes, 1996), Matéria Bruta (2006), Per Augusto & Machina (2009), "Si yo fuera Maradona" (bilíngue, português/espanhol, 2015), entre outros. Tem uma coluna semanal de poesia no Jornal GGN, editado pelos jornalistas Lourdes e Luís Nassif. É um dos fundadores do Instituto Cultural Carlos Scliar, com sede no Rio de Janeiro.
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