§
dizendo muchacha
eu rumaria sem espera
para o túmido aroma de nêsperas
do seu corpo
se eu afivelasse a máscara de paz,
octavio
mas não devo ser
o mimo menor do mexicano
sequer um continuador amaneirado
do seu insurrecto póssurrelismo descolonial
(deixemo-lo em paz e sob a terra leve
apartado da tutela do continuísmo devocional)
restaria um poeta para nada
se eu não fosse o poeta, o cantor tão somente de
sierva sirena maria, abissínia, sagitária, dionísia
aliás, nenhuma outra ambição
enruga o velho lago do meu peito
menos sereno do que sonoroso
dante o poeta de beatrice
marília de dirceu
paramurilo mendes o moinho do mundo
se desembainhara de jandira
não quero ser polifônico
quero ficar como o poeta de denixe
denixe que é de ronald
(ela me chama: meu poeta)
minha menina com meneios de água
verte-me ministra-me mocidades de água
então senesco sed amo
três vezes murmuro seu nome
três vezes enlaço seu corpo cabeça-tronco-membros
e três vezes cheiro seu pescoço que exala mirto
e beijo sua boca
(fade out/in, quem sabe nesse intervalo?)
melhores que todas as cervejas escuras
são seus beijos
§
tremelica teso o capim
arrepiado pela brisa cuja densidade
me faz evocar
a preguiça compacta (a nossa)
por quem dissipamos um no outro
os corpos
§
todas as palavras e nenhuma depois
entornadas retornadas em imagens
os pensamentos curvos
porque se deixam embrulhar
em meu coração
e o sombreado fonema à beira
do mar manso de santo antonio
de ulisboa
nesga de vináceo maroceano
enquanto pouso
minha fronte de cabelos encaracolados
no colo nas coxas
de minha neguinha dionísia
e o cheiro da árvore
a copa que se inclina a nos lamber
e o vento arruivado
memória de hálito e pregas
Mnemetrônomo
[escrito entre os dias 12 e 18 de junho de 2011]
"Soy amigo
de saber, y lo soy tanto
que siendo ignorante libre
quise saber siendo esclavo".
Mira de Amescua
ao peso se dobra
por seu modo insurrecto e sem molhar palavra
ria menos viril que ônfalo e às pregas
alheio a mais desditas derribando regras
que lhe custaram escaras tanta choça brava
quando não anedotas de secar escrúpulos
aos que lhe eram caros e ruins dependendo
outra vez seu acinte prestava a medo
quem lhe dera o molesto jurara sem cuspo
pelo sol sem cachaço que surte com o inverno
não havia outro trato a dar à circunstância
foi sempre assim consigo e a um golpe de lança
fende-se essa página engolindo-o inteiro
sócios no transe
nem bem em si nem fora
de si uma perna
além do quadro bate
seu acento átono
figura de compasso
ao rés da luzerna
de todos os celícolas
que lhe dão o lado
com desdém ao seu dano
sem fixar arrocho
nem quitar sua chance
de vir sem reparo
ao sólio das deidades
o vulcano coxo
que alça a gâmbia seca
e sai num pisar raro
em que pé vai ossanha
ninguém sabe ao certo
bebum de muitas ervas
pisa-as com o talão
rastro ímpar no bosque
em folhas diserto
ao pé dessa muleta
argumenta ou não
sua vária medicina —
a encontra no atalho —
cura pelo caroço
o saldo dos queixumes
não rói a própria dor
o osso de que é falho
é livre de ordem unida
graças ao aleijume
o que mal se explica
não se faz emprestar ou separar do senso
fujo ao cimento branco da copulativa
é cinjo-me ao calor dessa imagem que penso
flexível ao silêncio à nudez dormitiva
cadência parafrástica puro não ser
que lezama babuja leixa quando traga
e escuma a fumaça do escuso afazer
com que se justifica além da sua plaga
não precisava ser lezama a sinédoque
do meu vil trobar clus saquei-o à minha estante
por amor ao acaso para ser mais breve
chegando até aqui sem dizer o bastante
a estrela invernal
dizer em sáficos esses dez lustros
com que deslustrei minha juventude
não é de amargar mas me sai a custo
o tempo inda é metro ou senectude
curioso fado dos cinquenta anos
não me admira a lira estar banida
do horizonte de poetas gusanos
em trâmites de cláusulas extintas
a eles falta o que em mim viceja:
os livros que ela aqui do meu lado
palpa progênie de crespa nereida
amor de ipásia que me há mudado
não é que torne refeito ao arquivo
(o vampiro exsurge ao cetim do esquife
súplice morto no visgo do vivo)
tão-só me move outra vez esse filme
a mais baixa atividade mental
das naves do inferno trampa residual
à província admoesta sem lograr cuidado
sequer de quem lhe deve atenção mais venal
o mundo é uma máquina rolê italiano
moinho sem mais trava que se lhe ofereça
nesse samba de escol (nem loreno nem branco)
de preto feito rosselini e seu cinema
a musa maldizente opalesce porquanto
não há mais nula estrada gaiata pantera
a obstar-lhe o talhe efêmero histrio
do passo com que dança como se viera
de canseira em canseira aqui esbarrar triste o
córneo bibelô onde sopra o seu horror
branco marfim por sobre a porta que faculta
ar repentino rama em aceno ao décor
inça na sóbria rixa o caos que a sós discursa
mas se nutrira um só fascículo irritante
uma forma precária suspeita inumana
incisa a duras senhas à toa ao restante
sejam hastas ou sejam alas rente à chama
restaria pagado além do tolerável
assim um céu escuro escovado nenhuma
insinuação dos astros quando muito a idade
fria e intransigente de onde nada resulta
e o amor que trove letras defuntas debêntures
seus beiços cobiçosos em tarde de usura
nodosa realidade que dobra à imêmore
senhora o dispêndio a taxa da fodedura
dama de putifar guarda do faraó
protegê-la daquilo que lhe falta por ser
miúra hesitante entre o menor e o maior
tom arrasta o eunuco a dizê-la no fazer
que cansa, estafa
tramonta o artifício da eternidade
no plágio lacustre o eriçar dos juncos
o pai rendeu loas a iago o abade
a mãe resiste coberta de fungos
o crocitar do bosque turva o vento
em árdua razão a palma se alonga
quase lanha o friúme do sereno
enquanto a azenha a pilar toda ôntica
à beira da várzea múrmuro anuro
arredado da própria circunstância
ele se excede no que é sem augúrio
e assoma ao extremo da sua lâmina
versos de circunstância e acervo
tanto se dá como se perde ardor
respondi-lhe com rosto temperado
seu seio carmesim em meu honor
pendia dolente sem criar caso
então andava perdido e mal pago
escapavam-me os nervos muita vez
e com a razão não lograva diálogo
mas lhe servia mais um sirventês
só que sempre soava ser de outrora
a música com que dizia abissínia
tanto se dá como se perde a forma
respondeu-me com a face de menina
sua nuca outra volta já me entrega
o prazer do legado se renova
vinho mais barato em ânfora grega
não fora do tempo a última prova
supor-se poeta ao invés de bebum
corajoso apenas o bebum solitário
não basta ter colhão para
bebendo em grupo sindicalizado
proferir asneiras na esperança intimorata
de que no momento
seguinte nossas necedades rebrilhem
à maneira de árduos achados
sem ninguém com quem dividir o próprio ridículo:
esse o bebum de verdade opulento no opróbrio
nem mesmo os heróis homéreos (remeiros subalternos
quando postos em relação com o solerte e laércio odisseu)
libando além do dionisiacamente tolerável
nem mesmo tal progênie sabia beber
em equipe bebuns se ombreiam
até o ponto em que um
graças ao virtuosismo
se destaca do restante
espécie de mártir que absolve
os que ficaram mais atrás
bebum de verdade bebe sozinho
se é para beber em grupo
que se beba junto com o vinho
ou a cerveja escura, que se beba junto
o riso de si mesmo de pacto com o vizinho
beber em grupo e dar-se em espetáculo (misto
de imolação e amolação)
é mais de envergonhado do que de sem-vergonha
bebum de respeito bebe consigo mesmo
não obriga o cristão
a suportar misericordioso
sua cólica narcísica
o bebum sabe que não é poeta
bebuns supõem-se grandes poetas
oriki para iansã
oiá empurra-nuvem
verte sangue cor de pitanga
na esteira onde se deita guerreia com xangô
a taça com que xangô se empapuça
oiá dona do rebojo do paiol
pomba e senhora priapeia dos raios
que chamejam ao charme
de sua cara de cabra preta
galinha vermelha que risca o chão vermelho
oiá empurra-vento
oiá no olho vermelho da tempestade
oriki de ogum
o ogum a quem devoto
um ou outro oriki
não empunha espada, não
nem é espadaúdo
tal qual os semideuses
da marvel entretenimento
nem tem a musculatura
de estopa dos grandalhões
do cinema mudo
rabo-de-lagarto, pontuda
planta de mosqueado verde
quando é dita de ogum
grossa, com borda de ouro
quando é dita de iansã
é o análogo com que ogum
se deixa conceber a quem
exige que pose com espada
premida na palma em brasa
ogum não se paramenta
de soldado medieval
o vermelho e o verde
sabem sempre a ogum
elmo, guante de dragão
são saliências de cristão
com que ogum não se arruma
bananeira de pendão rubro
um galo e seu esporão de ferro
uma folhagem escarlata
chamejante que estala
uma figueira e seus galhos
de tenazes o ferrão da bigorna
onde ogum faísca
onde ogum limalha
junho, 2019
Ronald Augusto. Poeta e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Oliveira Silveira: poesia reunida (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), À Ipásia que o espera (2016) e Entre uma praia e outra (Artes&Ecos, 2018). Dá expediente no blogue Poesia-Pau e é colunista do portal de notícias Sul21. Editor do blogue A Voz Pública da Poesia.
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