©peter pyw
 
 
 
 
 
 
 

ORLA MARÍTIMA

 

 

Venta.

Venta demasiado.

Vergam-se as palmeiras e o pensar.

(Aonde arrasta-me a cabeleira em torvelinho?)

Venta um maciço em pregas de cortina.

Venta urna alma inconformada de oceano.

Venta um crepúsculo polar.

Venta uma solidão sem limites.

As estrelas agarram-se ao firmamento.

Venta.

Desesperadamente.

 

 

 

 

 

 

FISSURAS

 

 

fissuras, porosidade

alvura maculada

alguma umidade

certa aspereza

 

somos no íntimo parentes

desta quente e velha parede

tantas vezes caiada

 

 

 

 

 

 

~

 

 

mesmo que tivesse cem bocas

mesmo que espiasse pela sexta janela

mesmo que o Diabo lhe fizesse a cama onde se deitar com as mulheres

mesmo que tivesse a roupa lavada com veneno de cobra

no terrível redemoinho debaixo da cascata mais alta

se perderia na neblina dos mortos

 

mesmo que voasse sobre o mar

mesmo que voasse além do nono céu

mesmo que fosse à casa dos trovões

mesmo que espiasse pela sexta janela

no terrível redemoinho debaixo da cascata mais alta

se perderia na neblina dos mortos

 

mesmo que caçasse o cisne sagrado do rio das Sombras

mesmo que tivesse cem bocas

mesmo que destilasse o mel dos estames de cem flores

mesmo que corresse pela margem como uma lebre

os peixes comeriam seus olhos

e rasgariam seus ombros

 

mesmo que a mãe o procurasse pelo bosque como uma ursa

mesmo que a mãe uivasse canções de feiticeira

mesmo que a mãe percorresse o pântano como uma loba

mesmo que a mãe interrogasse cada árvore

nada haveria a fazer

 

nem oito óleos prodigiosos

nem nove pomadas diferentes

fariam efeito algum

de nada adiantaria incomodar Deus

de nada adiantaria vir de tão longe

no terrível redemoinho debaixo ela cascata mais alta

se perderia na neblina dos mortos

 

 

 

[Poemas de A lua investirá com seus chifres. Giordano, 1996]

 

 

 

 

 

 

OS 4 ELEMENTOS

 

 

O corpo longo e escamoso de serpente

construído meticulosamente ao longo dos anos

anel por anel

apoiado em sólidas patas de lagarto.

 

A engenharia da cabeça comprida, maciça,

com dispositivos de permanência subaquática;

o crânio achatado, as pálpebras móveis

e as mandíbulas enormes de jacaré

entrevendo-se a grade de caninos.

 

A língua bífida, mística, com retoques bíblicos,

ativa como um metrônomo hipnotizante.

 

Asas de gigantesco morcego, quase blindadas,

interligadas eletricamente com os olhos sanguíneos

e com as garras pontiagudas de águia.

 

As ventas semioblongas no focinho de monoceronte

aperfeiçoadas com precisão genética

para expelir à máxima potência

o fogo de suas turbinas.

 

Nome: dragão.

 

O menor atrito ou ruído

pode desencadear sua natureza bélica.

Contudo, uma berceuse de Fryderyk Franciszek Chopin

o fará adormecer como uma joaninha.

 

 

 

 

 

 

RÉQUIEM

 

 

É tudo mentira.

 

Tu não verás

a lua apodrecer

entre os edifícios

 

nem o turvo rio

perder o pulso.

 

Não verás cortarem

a luz do quarteirão

 

nem tampouco tombar

a árvore na tempestade.

 

É tudo mentira.

 

O sol da mais longa noite

voltará a coroar teu céu.

 

Terás ainda de sobrevoar

o fogo do asfalto

 

cuidando para não queimar

teus jovens pés descalços.

 

E um vento lento

cego

bom

sem sobrenome

 

arrepiará

o espaço justo

infinito

sob tua saia.

 

Nele

partirás a galope.

 

 

[Poemas de Como um dia come o outro. Nankin Editorial, 1999]

 

 

 

 

 

 

LEMBRETE

 

 

Ontem

a morte ceifou

mais um de nós.

 

Agora

no cemitério

enquanto o caixão é enterrado

 

o morto e os amigos

são obrigados a ouvir

ao redor

 

roçadeiras a diesel

operando estridentes

na mão de funcionários.

 

Roçadeiras

são foices motorizadas.

 

Nunca se deve esquecer:

a morte trabalha

em várias frentes.

 

 

 

 

 

 

RETRATO DE FAMÍLIA À BEIRA-MAR

 

 

A beira do mar é grande.

 

Nela cabe

toda a família (uns vinte)

posando para a foto

em trajes de banho

— costelas e barrigas,

coxas e joelhos.

 

Menos os pés.

 

Os pés

são preciosos demais

para se mostrar em público.

 

Por isso

foram deixados sob a água.

E é provável que

na hora da foto

 

tenham fugido

como um cardume.

 

 

[Poemas de Visão do térreo. Editora 34, 2007]

 

 

 

 

 

 

COME BACK TO ME

 

 

quero que você ouça

as oito estações

vivaldi e piazzolla

nos braços de gidon kremer

 

ou simplesmente

o inverno de piazzolla

com a osesp

em dia de festa

 

quero que ouça

l'appassionata

com a "desumana persona"

glenn gould

 

ou

se preferir

eduardo monteiro

vladimir horowitz

arthur rubinstein

mikhail pletnev

sviatoslav richter

 

que ouça tudo

que me faz lembrar você

mãe

e por tabela

dora ferreira da silva

 

quero compartilhar

minha shirley horn

recém-descoberta

cantando:

 

you won't forget me

don't let the sun catch you crying

ou ainda

a manjada

my funny valentine

 

quero que descubra

bebo (pai)

e chucho (filho) valdés

aníbal arias

e tudo de que sei gostaria

 

mas você

não responde

não está

faz um ano já

nem aí

 

aumento o som

até o último volume

 

 

 

 

 

 

RÁDIO DE GALENA

 

 

zumbe em meu crânio

um rádio de galena

que não conheci

 

salvo

dois ou três vestígios

na gaveta inferior

do armário

 

segundo

o falecido avô

aquilo eram peças

de um tio

que debandara

para os EUA

 

faz hoje

50 anos

que as vi

inúteis

nesse armário

de um quarto de edícula

sobre a garagem

 

meu avô

cem por cento calvo

possivelmente eletrocutado

por algum

rádio de galena

ou outra bugiganga

inventada no século XX

 

avião bomba atômica

banda larga

microscópio eletrônico

tubo de raios catatônicos

torradeira computador

ressonância magnética

máquina de lavar

satélites

 

hoje

querem me seduzir

a depositar a memória

em nuvens invisíveis

e compartilhá-la

com todos

 

tenho de acreditar

devo acreditar

porém

sou cético

 

não inventei

a física quântica

não descobri

os quarks

não intuí

a teoria das cordas

nem a dos buracos negros

 

além do mais,

e se chover?

 

 

[Poemas de Caçambas. Editora 34, 2015]

 

 

 

 

 

 

 

VÁLVULA

 

 

 

meu império é um quarto 3x4. nele cabem uma cama, uma mesa, uma cadeira. a mesa tem uma gaveta onde cabem uma caixa de fósforos, um caderno, um cachimbo, uma vela. na caixa de fósforos cabe uma foto 3x4, infinitamente menor do que o quarto. na foto vive uma rainha. quando estou tristíssimo, entro no quarto, abro a gaveta, a caixa de fósforos. sempre dou um jeito de chegar até os aposentos da rainha. deitamos então, eu e ela. conversamos horas a fio, fora do mundo. às vezes ficamos em silêncio, abraçados. às vezes fazemos amor, a coisa mais sagrada. e ficamos sem fôlego. e novamente ficamos em silêncio. depois rimos a valer. espirituosos espíritos passeiam sobre nossos corpos. a rainha é meu encanto. mistério de meu império. há quem a chame válvula. de escape? a mim, pouco importa.

 

 

 

 

 

 

GÊMEOS

 

 

levito. os pés descolaram do chão. estou como o pobre padre Adelir, que se pendurou em balões de hélio — mil balões de festa coloridos — e desapareceu mar adentro. dizem as línguas afiadas que ganhou o prêmio Darwin por ter se eliminado da espécie. um sentimento me aquece, me torna mais leve do que o ar. eu, balão sem balões. a brisa sopra para o alto, para longe. navego sem instrumentos de bordo além do meu desejo e de meus sentidos. ikrek em húngaro quer dizer gêmeos. palavra crocante. miro a cidade pontiaguda sem saber onde nem como pousar. o padre olhou assim o mar. fascínio e desespero. sou aprendiz.

 

 

 

 

 

 

 

MINA SUBJETIVA

 

 

o reino das palavras é a jazida das palavras. extraí-las, tratá-las, lavá-las, como se lava o arroz, o feijão, o minério. jogar fora as impurezas. ficar só com o mais substantivo, essencial. jogar fora o açúcar, ficar com as formigas. obter um concentrado que brilhe como o sol, o ouro, o ébano, a lua, o césio. césio que fascine sem matar. no mínimo de palavras, o máximo de vida.

 

 

 

 

 

 

AGORA

 

 

                            Para Arnaldo Antunes

 

 

agora na fruteira o mamão apodrece agora o céu escurece agora apedrejam agora a lua rachou agora na rua o cachorro sou eu agora não mais tenho mulher agora a tira da havaiana se rompeu agora perco o ônibus e a esperança agora roubaram minha graça agora as estrelas se afogam agora meus olhos são míopes agora no lixo a salamandra e minha Szymborska agora minha mãe morreu agora o mar me derruba agora a morte me tira para dançar agora a cerveja está quente agora o pneu furou agora a faca de legumes me corta agora a canção me faz chorar agora o mundo sempre injusto agora entraram em minha casa agora as milícias matam o diferente e o igual agora a mata me perde agora nos presídios os evangélicos são facção agora passo fome agora não tenho nome agora meu amigo se foi agora meu eu se parte agora o vinho avinagra agora o leite azeda e transborda agora a vida é um bordel agora não tem mais por quê agora perco o sono agora perdi coisas e peso agora perdi o medo agora quero voar agora busco calor agora busco o sol agora sou coletivo agora sou cidadão agora grito meu sonho agora sou multidão agora sou uma voz agora atravesso paisagens agora cruzo países agora sou flecha a caminho agora nunca termino

 

 

[Poemas de Monstruário de fomes. Patuá, 2019]

 

 

 

 

 

 

TIRANIAS

 

 

antigamente

diziam: cuidado,

as paredes têm ouvidos

 

então

falávamos baixo

nos policiávamos

 

hoje

as coisas mudaram:

os ouvidos têm paredes

 

de nada

adianta

gritar

 

 

dezembro, 2019

 

 

Ruy Proença nasceu em 9 de janeiro de 1957, na cidade de São Paulo. Participou de diversas antologias de poesia, entre as quais se destacam: Anthologie de la poésie brésilienne (Chandeigne, França, 1998), Pindorama: 30 poetas de Brasil(Revista Tsé-Tsé, nos 7/8, Argentina, 2000), Poesia brasileira do século XX: dos modernistas à actualidade (Antígona, Portugal, 2002), New Brazilian and American Poetry (Revista Rattapallax, nº 9, EUA, 2003), Antologia comentada da poesia brasileira do século 21 (Publifolha, 2006), Traçados diversos: uma antologia da poesia contemporânea (Scipione, 2009) e Roteiro da poesia brasileira: anos 80 (Global, 2010). Traduziu Boris Vian: poemas e canções (coletânea da qual foi também organizador, Nankin, 2001), Isto é um poema que cura os peixes, de Jean-Pierre Siméon (Edições SM, 2007), Um certo Pena, de Henri Michaux (Pãooupães Editorial, 2017) e, de Paol Keineg, Histórias verídicas (Dobra, 2014), Dahut (Espectro Editorial, 2015) e Entre os porcos (Pãooupães Editorial, 2018). É autor dos livros de poesia Pequenos séculos(Klaxon, 1985), A lua investirá com seus chifres(Giordano, 1996), Como um dia come o outro(Nankin, 1999), Visão do térreo(Editora 34, 2007), Caçambas (Editora 34, 2015) e Monstruário de fomes (Patuá, 2019). Publicou também os poemas infanto-juvenis de Coisas daqui(Edições SM, 2007) e Tubarão vegano e outros elementos(Espectro Editorial, 2018).

 

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