ORLA MARÍTIMA
Venta.
Venta demasiado.
Vergam-se as palmeiras e o pensar.
(Aonde arrasta-me a cabeleira em torvelinho?)
Venta um maciço em pregas de cortina.
Venta urna alma inconformada de oceano.
Venta um crepúsculo polar.
Venta uma solidão sem limites.
As estrelas agarram-se ao firmamento.
Venta.
Desesperadamente.
FISSURAS
fissuras, porosidade
alvura maculada
alguma umidade
certa aspereza
somos no íntimo parentes
desta quente e velha parede
tantas vezes caiada
~
mesmo que tivesse cem bocas
mesmo que espiasse pela sexta janela
mesmo que o Diabo lhe fizesse a cama onde se deitar com as mulheres
mesmo que tivesse a roupa lavada com veneno de cobra
no terrível redemoinho debaixo da cascata mais alta
se perderia na neblina dos mortos
mesmo que voasse sobre o mar
mesmo que voasse além do nono céu
mesmo que fosse à casa dos trovões
mesmo que espiasse pela sexta janela
no terrível redemoinho debaixo da cascata mais alta
se perderia na neblina dos mortos
mesmo que caçasse o cisne sagrado do rio das Sombras
mesmo que tivesse cem bocas
mesmo que destilasse o mel dos estames de cem flores
mesmo que corresse pela margem como uma lebre
os peixes comeriam seus olhos
e rasgariam seus ombros
mesmo que a mãe o procurasse pelo bosque como uma ursa
mesmo que a mãe uivasse canções de feiticeira
mesmo que a mãe percorresse o pântano como uma loba
mesmo que a mãe interrogasse cada árvore
nada haveria a fazer
nem oito óleos prodigiosos
nem nove pomadas diferentes
fariam efeito algum
de nada adiantaria incomodar Deus
de nada adiantaria vir de tão longe
no terrível redemoinho debaixo ela cascata mais alta
se perderia na neblina dos mortos
[Poemas de A lua investirá com seus chifres. Giordano, 1996]
OS 4 ELEMENTOS
O corpo longo e escamoso de serpente
construído meticulosamente ao longo dos anos
anel por anel
apoiado em sólidas patas de lagarto.
A engenharia da cabeça comprida, maciça,
com dispositivos de permanência subaquática;
o crânio achatado, as pálpebras móveis
e as mandíbulas enormes de jacaré
entrevendo-se a grade de caninos.
A língua bífida, mística, com retoques bíblicos,
ativa como um metrônomo hipnotizante.
Asas de gigantesco morcego, quase blindadas,
interligadas eletricamente com os olhos sanguíneos
e com as garras pontiagudas de águia.
As ventas semioblongas no focinho de monoceronte
aperfeiçoadas com precisão genética
para expelir à máxima potência
o fogo de suas turbinas.
Nome: dragão.
O menor atrito ou ruído
pode desencadear sua natureza bélica.
Contudo, uma berceuse de Fryderyk Franciszek Chopin
o fará adormecer como uma joaninha.
RÉQUIEM
É tudo mentira.
Tu não verás
a lua apodrecer
entre os edifícios
nem o turvo rio
perder o pulso.
Não verás cortarem
a luz do quarteirão
nem tampouco tombar
a árvore na tempestade.
É tudo mentira.
O sol da mais longa noite
voltará a coroar teu céu.
Terás ainda de sobrevoar
o fogo do asfalto
cuidando para não queimar
teus jovens pés descalços.
E um vento lento
cego
bom
sem sobrenome
arrepiará
o espaço justo
infinito
sob tua saia.
Nele
partirás a galope.
[Poemas de Como um dia come o outro. Nankin Editorial, 1999]
LEMBRETE
Ontem
a morte ceifou
mais um de nós.
Agora
no cemitério
enquanto o caixão é enterrado
o morto e os amigos
são obrigados a ouvir
ao redor
roçadeiras a diesel
operando estridentes
na mão de funcionários.
Roçadeiras
são foices motorizadas.
Nunca se deve esquecer:
a morte trabalha
em várias frentes.
RETRATO DE FAMÍLIA À BEIRA-MAR
A beira do mar é grande.
Nela cabe
toda a família (uns vinte)
posando para a foto
em trajes de banho
— costelas e barrigas,
coxas e joelhos.
Menos os pés.
Os pés
são preciosos demais
para se mostrar em público.
Por isso
foram deixados sob a água.
E é provável que
na hora da foto
tenham fugido
como um cardume.
[Poemas de Visão do térreo. Editora 34, 2007]
COME BACK TO ME
quero que você ouça
as oito estações
vivaldi e piazzolla
nos braços de gidon kremer
ou simplesmente
o inverno de piazzolla
com a osesp
em dia de festa
quero que ouça
l'appassionata
com a "desumana persona"
glenn gould
ou
se preferir
eduardo monteiro
vladimir horowitz
arthur rubinstein
mikhail pletnev
sviatoslav richter
que ouça tudo
que me faz lembrar você
mãe
e por tabela
dora ferreira da silva
quero compartilhar
minha shirley horn
recém-descoberta
cantando:
you won't forget me
don't let the sun catch you crying
ou ainda
a manjada
my funny valentine
quero que descubra
bebo (pai)
e chucho (filho) valdés
aníbal arias
e tudo de que sei gostaria
mas você
não responde
não está
faz um ano já
nem aí
aumento o som
até o último volume
RÁDIO DE GALENA
zumbe em meu crânio
um rádio de galena
que não conheci
salvo
dois ou três vestígios
na gaveta inferior
do armário
segundo
o falecido avô
aquilo eram peças
de um tio
que debandara
para os EUA
faz hoje
50 anos
que as vi
inúteis
nesse armário
de um quarto de edícula
sobre a garagem
meu avô
cem por cento calvo
possivelmente eletrocutado
por algum
rádio de galena
ou outra bugiganga
inventada no século XX
avião bomba atômica
banda larga
microscópio eletrônico
tubo de raios catatônicos
torradeira computador
ressonância magnética
máquina de lavar
satélites
hoje
querem me seduzir
a depositar a memória
em nuvens invisíveis
e compartilhá-la
com todos
tenho de acreditar
devo acreditar
porém
sou cético
não inventei
a física quântica
não descobri
os quarks
não intuí
a teoria das cordas
nem a dos buracos negros
além do mais,
e se chover?
[Poemas de Caçambas. Editora 34, 2015]
VÁLVULA
meu império é um quarto 3x4. nele cabem uma cama, uma mesa, uma cadeira. a mesa tem uma gaveta onde cabem uma caixa de fósforos, um caderno, um cachimbo, uma vela. na caixa de fósforos cabe uma foto 3x4, infinitamente menor do que o quarto. na foto vive uma rainha. quando estou tristíssimo, entro no quarto, abro a gaveta, a caixa de fósforos. sempre dou um jeito de chegar até os aposentos da rainha. deitamos então, eu e ela. conversamos horas a fio, fora do mundo. às vezes ficamos em silêncio, abraçados. às vezes fazemos amor, a coisa mais sagrada. e ficamos sem fôlego. e novamente ficamos em silêncio. depois rimos a valer. espirituosos espíritos passeiam sobre nossos corpos. a rainha é meu encanto. mistério de meu império. há quem a chame válvula. de escape? a mim, pouco importa.
GÊMEOS
levito. os pés descolaram do chão. estou como o pobre padre Adelir, que se pendurou em balões de hélio — mil balões de festa coloridos — e desapareceu mar adentro. dizem as línguas afiadas que ganhou o prêmio Darwin por ter se eliminado da espécie. um sentimento me aquece, me torna mais leve do que o ar. eu, balão sem balões. a brisa sopra para o alto, para longe. navego sem instrumentos de bordo além do meu desejo e de meus sentidos. ikrek em húngaro quer dizer gêmeos. palavra crocante. miro a cidade pontiaguda sem saber onde nem como pousar. o padre olhou assim o mar. fascínio e desespero. sou aprendiz.
MINA SUBJETIVA
o reino das palavras é a jazida das palavras. extraí-las, tratá-las, lavá-las, como se lava o arroz, o feijão, o minério. jogar fora as impurezas. ficar só com o mais substantivo, essencial. jogar fora o açúcar, ficar com as formigas. obter um concentrado que brilhe como o sol, o ouro, o ébano, a lua, o césio. césio que fascine sem matar. no mínimo de palavras, o máximo de vida.
AGORA
Para Arnaldo Antunes
agora na fruteira o mamão apodrece agora o céu escurece agora apedrejam agora a lua rachou agora na rua o cachorro sou eu agora não mais tenho mulher agora a tira da havaiana se rompeu agora perco o ônibus e a esperança agora roubaram minha graça agora as estrelas se afogam agora meus olhos são míopes agora no lixo a salamandra e minha Szymborska agora minha mãe morreu agora o mar me derruba agora a morte me tira para dançar agora a cerveja está quente agora o pneu furou agora a faca de legumes me corta agora a canção me faz chorar agora o mundo sempre injusto agora entraram em minha casa agora as milícias matam o diferente e o igual agora a mata me perde agora nos presídios os evangélicos são facção agora passo fome agora não tenho nome agora meu amigo se foi agora meu eu se parte agora o vinho avinagra agora o leite azeda e transborda agora a vida é um bordel agora não tem mais por quê agora perco o sono agora perdi coisas e peso agora perdi o medo agora quero voar agora busco calor agora busco o sol agora sou coletivo agora sou cidadão agora grito meu sonho agora sou multidão agora sou uma voz agora atravesso paisagens agora cruzo países agora sou flecha a caminho agora nunca termino
[Poemas de Monstruário de fomes. Patuá, 2019]
TIRANIAS
antigamente
diziam: cuidado,
as paredes têm ouvidos
então
falávamos baixo
nos policiávamos
hoje
as coisas mudaram:
os ouvidos têm paredes
de nada
adianta
gritar
dezembro, 2019
Ruy Proença nasceu em 9 de janeiro de 1957, na cidade de São Paulo. Participou de diversas antologias de poesia, entre as quais se destacam: Anthologie de la poésie brésilienne (Chandeigne, França, 1998), Pindorama: 30 poetas de Brasil(Revista Tsé-Tsé, nos 7/8, Argentina, 2000), Poesia brasileira do século XX: dos modernistas à actualidade (Antígona, Portugal, 2002), New Brazilian and American Poetry (Revista Rattapallax, nº 9, EUA, 2003), Antologia comentada da poesia brasileira do século 21 (Publifolha, 2006), Traçados diversos: uma antologia da poesia contemporânea (Scipione, 2009) e Roteiro da poesia brasileira: anos 80 (Global, 2010). Traduziu Boris Vian: poemas e canções (coletânea da qual foi também organizador, Nankin, 2001), Isto é um poema que cura os peixes, de Jean-Pierre Siméon (Edições SM, 2007), Um certo Pena, de Henri Michaux (Pãooupães Editorial, 2017) e, de Paol Keineg, Histórias verídicas (Dobra, 2014), Dahut (Espectro Editorial, 2015) e Entre os porcos (Pãooupães Editorial, 2018). É autor dos livros de poesia Pequenos séculos(Klaxon, 1985), A lua investirá com seus chifres(Giordano, 1996), Como um dia come o outro(Nankin, 1999), Visão do térreo(Editora 34, 2007), Caçambas (Editora 34, 2015) e Monstruário de fomes (Patuá, 2019). Publicou também os poemas infanto-juvenis de Coisas daqui(Edições SM, 2007) e Tubarão vegano e outros elementos(Espectro Editorial, 2018).
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