©bruno glätsch
 
 
 
 
 
 
 

Prece

 

 

É dia de frases, e a fronte é distante e morna como a festa, e se, em certo instante eu retornar pelo caminho inverso e parar e disser uma palavra imotivada, se, no meu tom de voz houver uma fresta anterior a essa ideia de sono que elabora um ciclo que teria sido uma viagem redimida num lugar abundante, numa incerta altura o meio-tom melancólico de um não ir. A decisão de não falar até que outra arquitetura surja e se decante num sustentáculo mais inteiro. Que outro ano se finda e a fadiga não fenece no que há de vir quando se sabe do que é capaz a tragédia.

Uma ressalva para os vivos em que o exemplo é reflexo. Que o ser maior nos renda a fertilização, a sacralizada bebida desenterrada do pó e faça das jornadas a intocável substância de osmose, de plantações profícuas. Que nasça outro abecedário distanciado do que é triste para propagar-se em cada arranhão dos pontos estelares. Uma placidez para reaver as horas sem ferimentos, as lágrimas furtadas da complacência, dos pássaros luminosos. Tudo se redime em afeição e bom pressentimento. Penso no que tive e julguei meu e agora que o último inseto se recolhe deixo de existir enquanto minha obra me vela.  Talvez eu tenha escolhido a rua errada, a resposta, a confusão, a elaboração duvidosa e surreal — e se tudo não tivesse acontecido com tamanha adversidade para preservar a vida, prostrando-me impassível na escadaria das banalidades. Queria ser como Jesus e pôr em risco a própria sorte, sem desejar servir ou necessitar de servidão. Que sejam esmagados o fanatismo, o niilismo, a negatividade e os pretensos representantes da divindade. Borda-me, Deus, com a generosidade angustiante de um dossel inviolável. Que nada me seja treva ou círculo moribundo nem rasgo a dobrar-me as vértebras e que a linha me seja intacta e o bem orbite vivo como um coração afogueado em odes de afeto. Que se deslinde a suficiência do meu organismo vivo, a rebeldia dos predestinados. Que há abrangência de revoadas longínquas ao meu estado de ave nômade. Que a contínua vigília me seja o hálito das manhãs, a respiração aromática da sabedoria, da eficaz marginalidade em que a harmonia, o pensar intensivo e a criatividade brotam isentos de todos os horrores.

 

 

 

 

 

 

O tempo é o grande possuidor de todas as coisas

 

 

O chão se toma de líricos laços. A viagem é longa e escorre pela lama. É um partir descalço e rendido que, talvez, não lhe sirva para nada. O destino aprisiona-o como a uma gôndola prateada sob um céu de aço. Não há pilares de sabedoria sem que antes haja consciência. Bento é o desejo de mármore ao fundo, sentimentos de não pertencimento, urgências e poderes no coincidir da fúria que lhe amplifica reflexos dos quais ele é, espontaneamente, escravo, como se ele surgisse de algo irresgatável, onde a esterilidade lhe foi cadência; não seria a velha ovelha de vestimentas fúteis e omissas. Nem o mordaz tentáculo de falseamento, confronto ou qualquer lapso brotado das matas ainda disponíveis, das alcateias intactas. Irônico, Bento se veste do ácido magnetismo, dos afazeres ordinários e não se paralisa diante do sarcasmo com que é hediondamente apedrejado. Não lhe pertencem aqueles substantivos vencidos pelas bagas da discórdia. Não se deixa vencer, embora dê essa impressão, num primeiro acesso.

Bento se eleva contrito nas radiações com que atravessa as atrocidades, num êxtase aveludado que lhe abranda as tragédias, as infâmias silenciadas nas encenações indeclináveis de um surdo desespero. Como a habilidade de moldar as estalactites edificadas na fissura das origens, deixa-se extravasar num encontro absurdo entre obstáculos e amor porque, feliz, necessita chorar. "Tantas são as quedas em que o meu coração rebate. Tudo se cala inopinadamente feito uma fera fustigada por caçadores inclementes, códigos e geografias que não se abrandam nos dilúvios — apenas uma figueira ressequida no que há por acontecer e, de forma silenciosa, me conduz até onde não adivinho".

Bento é a espontaneidade do que resta do nascer continuado, a resplandecência de não necessitar de nada que o assome. "Terás sempre o paraíso se não te perderes da tua circunstância. O caminho das pedras não é o mesmo das pradarias, cujas reiteradas vogais são cálidas canções de oferta". Diz-lhe Magni que o segue instintivamente.

Ele afasta da nuca o lenço que a vida lhe empresta. Do que vem a ser não ter a definição do nome da mãe ao longo de uma vida inteira e precisar libertar o próprio pai do estigma do gigante. Sonhar é uma pré-existência fecunda. Dar o melhor de si é a única alternativa digna. De ser tão forte. Na mente, organizam-se pendidos extravios, torpores. A verdade não é ingênua e sabe esconder-se como ninguém. É nas inóspitas voragens que Bento prende o contágio e alarga a ousadia, como um discípulo nupcial e simbólico. "Não desperdiço nenhum instante, comungo como suntuosa fênix, com assombroso amor, o que existe, o terror desconhecido, o colossal, o invisível. Tenho uma faca acima da cabeça. A ferida só cicatriza quando é afastada do que a faz ferver. Há uma asfixia compactada num relógio de corda curta que conta o tempo cantarolando com insidiosa insistência. What is this? Please, tell me! Vós todos, cuja sede se perde nas pontiagudas agulhas da expiração e inspiração, — que o trato respiratório é avariado pelo frio sobrevindo, sobrevoado. Vigiai e viajai. Com textos que tilintam como cristais quando se tocam. Eu e meu total desassossego".

 

 

 

 

 

 

Minah

 

 

Hoje se cumpre algo mais que uma razão para sorrir um vento mínimo que se instala na garganta e alcança os pulmões adoecidos de uma alegria quase incandescente. Ardoroso é o torpor que lhe sai pelas narinas de um tempo tenro e terno como quando havia idades pequenas para segredar a orfandade não se sabe por que pacto reza ou culpa. Os afinados esmeros do trajeto, sem ordem alguma, debulham-se como finas e longas pernas de ave, como se beijassem seu futuro, ainda sem forma e sem lágrima, por que oculto nas ondas proibidas pela febre e pelo ar pegajoso, rijo como uma pedra que lhe cai sobre os cabelos de ouro, deixando-lhe o contraste de uma paz nunca escrita — a órbita a cada guerra. Há quem de si tenha saudade. Aquela de ter sido. E de ter-se ido. A respiração sem angústia seguindo-se nos entretantos, serenando-se em toda a ação que foi olvido, armadura. "Tudo muda no pouco que me alcança com um capricho silente, casto. Pertenço a essa inescapável condição humana que, por ser excessiva, é quase nula. Só os ossos sabem sobrar nessa estrutura amarga. Quero distanciar-me do diz-me o que não és para que eu diga o que nunca sou ou fui — como essa habitação que se salvou das explosões. Quero uma gota de água que deixe os lilases menos cordatos. Quero esperar tranquilamente pelas espáduas setembrinas e pelas estrelas inconsumíveis enquanto regresso à casa das rotulações inclinadas. É o sabor da novidade que espreito nas diferenças que sobejam entre a sabotagem e o jogo. A palavra ausente de impurezas".

Minah inebria-se. Consumição acima dos rios ainda não conhecidos pelos mastros dos navios. Rabisca um firmamento particular, um planeta novo, um coração intocado, sem ser a inapta atitude da servidão. Colhe o arpejo, recolhendo-se como uma ostra. Por mais que ela se esforce, só diz que não encontra forma de dizer onde termina a sensibilidade — esse precioso sentimento que perfaz a grandeza de ensinar e aprender. Finalmente, se prostra por ser pequena, e quão pequena, para suportar a enormidade. Que a passagem sabe-a infinita, sofrida, assustadiça, mas também salvadora. Porque os olhos nunca se calam nem abafam o canto.

 

 

 

dezembro, 2019

 

 

Tere Tavares, escritora e pintora, radicada em Cascavel/PR, autora dos livros Flor essência (2004), Meus outros (2007), Entre as águas (2011), A linguagem dos pássaros (Patuá, 2014), Vozes & recortes (Penalux, 2015), A licitude dos olhos (Penalux, 2016), Na ternura das horas (Assoeste, 2017) e Campos errantes (Penalux, 2018). Conta com publicações em antologias, jornais e sites literários nacionais e internacionais. Integra a Academia Cascavelense de Letras. Mais em seu blogue M-eus Outros e no Facebook.

 

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