Moderninha

 

Pronto, pronta para o combate. Pintada, disfarçada de mito, mascarando ritualisticamente sua animosidade pulsante, uma dependência crônica de bandoleiros, ia ter com eles, ah! Se ia... Mas eram-lhe delícias quando lhe possuíam. Bracelete de serpente no braço, camiseta branca de algodão, não, vermelha, não, preta, não, prata, aquela com lantejoulas, cheia de brilhos, de crochê, pensando bem, a branca mesmo. Intuía que devia ser a branca, melhor, sentia, melhor, um aviso, melhor, um sonho que teve onde vestia a mesma camiseta. Olhos mais profundos ainda, as custas do rímel, sombras e muitas noites de solidão e amargura. Era instável, sem dúvida. Porque era inteligente, não o bastante para ser feliz com simplicidade, mas o suficiente para saber-se infeliz, por nada, porque gostava até, da tensão, do caos, da repulsa para aludir-se vítima e mulher, da malícia, do talento, da cultura, da retórica. Filha banida sofrida pela ditadura, pai taciturno sofrido pela ditadura, mãe noturna sofrida pela ditadura do pai. Gene de gênios há muito acompanhava sua família. Era como se via. Para os piores dias, travestia-se de bruxa e cria mesmo ser cheia de magias, além dos artifícios básicos de sedução: falso recato, falsa modéstia, falsa alegria, falso pudor, falsa franqueza, falsa fraqueza, no fundo mesmo, era vaidade pura. Feminista sim, mas das modernas, dado que não abria mão de certas frivolidades. Não faz um minuto chorava, não mais, visto que era lua-cheia que lhe conferia poderes, outorgados por Iemanjá, babalorixás e vovó, a velha de fibra que largou a família e, a contragosto, uniu-se ao negro, e naqueles tempos, observe bem. O contragosto lhe agradava. Não sei ao certo se pelo prefixo ou se pelo sufixo da palavra ou por ambos, porque era contra tudo e todos. Alto lá, tudo e todos é que eram contra ela, queriam seu fim, gratuitamente, não precisavam de motivo, por inveja, por trabalho encomendado, por não suportarem a sua felicidade, dizia. O que ela esquecia no auge da briga é que ela não sabia ser só, mas também não sabia ser de um só, tampouco de muitos. Tinha que ser de um que sofresse por ela, que sentisse por ela, que entendesse por ela, que vivesse ocasionalmente. Nascera para bailar, o brilho estava-lhe assegurado segundo os profetas, proibido é pretender igual, imitar, não vale. Tinha também que ser muito jovem e, maiormente, bonito, lhe dava prestígio. Tragava tudo compulsivamente, chocolates, cigarros, bebidas e maridos. Compulsoriamente desistia ou nutria a desistência nos outros. Testava, isso, media a resistência deles, impunha-lhes o limite máximo para ver se durariam, ao menos, uma vida. Não, não era coragem, era imponderação mesmo, agia convulsivamente e causava aos desavisados a impressão de bravura. Tinha medo, muito medo, medo de tudo, sobretudo de gente, mais de homens, sumariamente da verdade e gritava e berrava e esperneava quando esta queria se fazer ouvida. Armava escarcéus, como ensinara à filha, coitadinha. Se algo vai errado, butiques, revistas de moda, novelas, receitas, dietas, milagres e elogios, escrava deles. Cria profundamente nos milagres, da medicina, dos despachos, dos anjos que nunca lhe largariam, das sortes proferidas, desde que bem pagas, pela cartomante, cria que, um dia, não tardaria e seria glorificada, ao acaso, o destino na campainha, de joelhos e mãos estendidas suplicando perdão pela demora, uma desonra do falho Deus, por certo. Tinha ódio, ódio não, seria enaltecimento aos menores, aludia pena, realmente sentia indignação, isso, revoltava-se se outra com menos talento fosse escolhida, essa burra, deve ter dado para conseguir... O perfume de marca secreta, na nuca, no ventre, no colo dos seios. Guerreira, dizia para si em frente ao espelho. Um trago antes de sair por aí, outro, e outro, e outro. Convida-a o doce que havia escondido na geladeira por detrás do cheiro-verde e do pote de feijão que restara do almoço do último domingo. Quanta fome. Que se explodam, se acham que está gorda, e daí. Chora, mas chora de barriga cheia. A cama macia, um sono de mansinho. Sabia que milagres não aconteciam, sua vida não mudaria assim, como num passe de mágica. Deitou-se, um pouquinho só, cobriu a orelha com um paninho, guardado do tempo em que filha era bebê, cobriu os pés, nunca se sabe, uma barata, uma alma. Fechou os olhos encharcados de quereres. Adormeceu. Sonhou vassouras, príncipes e balagandãs.

 

 

 
 

 

O parvo e a puta

 

Vendida a alma, não ao diabo propriamente dito, mas, medo de não ter coisa melhor, preencheu o dia de impossibilidades e desejos reprimidos, como fazem os santos e os acéticos, como fez no dia em que deveria encarar, de frente e não de soslaio como usualmente fazemos com as verdades que ululam sobre nossas vistas, o verdadeiro demônio, ou simplesmente fato inevitável à alma qualquer, a solidão.


Deu-se assim o ensejo, com um sim uníssono aos presentes e por intermédio do típico disse-me-disse a todos quantos interessavam saber do acontecimento, aceites, em duo dito audível, peremptório, veemente, inexorável, categórico, determinante, decisivo, crucial, taxativo, contundente, arrebatado, imperativo e quantos possam ser os significados à primeira vista, pois nunca palavra é igual à outra palavra, a dar-se conta pelo som infinito, ou muito irrelevante, que possa se criar no ouvinte, pois, quando toca fundo, é pêndulo sem fim até que se esgote de tempo, por isso, tantos sinônimos e mesmo assim incompletos.


Tavinho sempre fora esquisóide. Freak, inclusive no país dos Belgas, diziam-lhe. Herdava o receio do povo, ensinado nos seus engatinhos pelo pai comunista. Nunca estudara nada profundamente, mas foi por osmose e noites ébrias que criou retóricas e postulados. Frases rápidas, cortantes, ironias em punho e a aura de pensador encimavam o inconsciente e o coletivo. 


Claudinéia fisgara-o num ato transitivo do desdém que a outra impusera. Porque nascida pobre e por isso mesmo o clã taxava de burra. Burra que nada, salvou a pele bronzeada e correu léguas do energúmeno. Claudita, como chamavam, era vivida em demasia e restava pouco para fixar nome e respeito, difamados aos quatro ventos. Não tardaria e o violão do seu corpo violaria a resistência dos glúteos ante a gravidade. Perderia o charme, a bunda roliça que atiçava, desde menina, os perdidos. Que não ousasse as palavras, desastroso seria o intento, verborrágica e histérica, cobras e lagartos abismariam até os mais lascivos. Silente Claudita. Mas na penumbra das taras era rainha. Enlanguescia qualquer que se chegasse. Após incontáveis, Tavinho chegou e ficou.


Retocada a barba aos modos do pai, Tavinho estaqueou os cabelos apáticos e pareceu ter vida própria. Alguma mesada no bolso, exceto preservativos, porque não tinha do que se preservar, nem queria, calçou franciscanamente seus sapatos em voga e saiu fazendo figa escondido. Haveria de arrumar uma mulher. Urgia sua solidão quando nas madrugadas vagava entre mundos no televisor que ornava o medo do vazio, a melhor aquisição, sem dúvida, suadas prestações. Mas, já que nada presta, não ver é o que lhe resta. Contudo, hoje é dia de festa, os sorrisos aquiescerão as febres típicas dos tribais. E por minutos, amava todos como iguais, como Bob Marley e um baseadinho, é claro. Coincidências jazem nos diários dos infantes. 


Foi quando seu deu o esbarrão. Claudita esvoaçava os ralos cabelos. Seu halo de mortiça embriagou-o e sem que se desse conta, ajoelhava-se ao púlpito e repetia com o orador, sim, sim, eu me entrego de corpo e alma a todos os santos. Tavinho daria a luz em pouco. Em nome do pai e do filho (alheios) e principalmente, do espírito-santo que embuchara a bendita por si. Na aldeia rumores tomavam proporções imensas, Tavinho passou a colecionar desafetos, dado que não admitia mentiras. Era um homem reto, bramia. Claudita, santa.

 

Justo então que vivessem na horizontalidade. Ela, mais e discretamente. Sua beatitude intitulada dormia sem culpa no retrato que encomendara do amante. O criado mais mudo que nunca.

 

 

 

 

 

O enlace

 

Há uma comichão instalada. Maldita. Começou pelos calcanhares (serão os meus de Aquiles?) e já anda pela espinha e na ponta da língua e em seguida pelo corpo inteiro. Ora oral, ora pélvico, como que uma gravidez repentina. Nove meses em nove minutos. Cabalístico, sem dúvida. E chuta o meu menino, e como chuta. Surtos, choques, arrepios, formigamentos e fome, sabe-se lá de quê.

 

Sua presença despertava e pincelava minhas faces de um tímido rubro, levemente. Daí, uma batalha interna entre seres habitantes no subsolo da minha existência, inquilinos anteriores inclusive, desde antes as primeiras balbúcies e até quando nadava despreocupadamente no oceano amniótico. Há exatos trinta anos, recordo-me. Tempo redondo, circunspeto, limbo do que se foi e do que se está por ser. Hora de revelações guardadas no baú do senhor destino. Segredos a sete chaves.

 

Restava-me correr para sentar-se sobre o primeiro objeto inanimado de quatros pernas, a primeira cadeira que encontrasse e convencer-me do inadequado. Todos os assentos ocupados, por senhoras na maioria. Tinha que me poupar da desfeita, da estupidez juvenil diante dos senis. Ainda mais ali, defronte da família, que tudo capta, do padre, que tudo aponta, da sociedade aristocrática, que tudo segrega, portanto, vis todos, sem exceção. Cumprimentava a todos passantes muito distintamente e exagerado era o estado dos nervos que beijei com estalos as maçãs das faces rosadas e caraquentas do Doutor Miranda, general altivo da reserva que, questão de minutos antes, bramia a todos os pulmões, com gosto tanto que lhe escorriam babas pelo canto da boca, seus feitos heróicos impetrados contra aqueles "cabeludos" e "vagabundos" de 67. "Não fosse por nós, esse país teria se tornado um Jardim da Babilônia". Olha fixamente para o generoso decote da neta Clarice de dezesseis aninhos que passa serelepe a sua frente. Pigarreia e continua: "estaríamos atolados de drogas e não se saberia afirmar quem seria filho de quem, visto que viviam em orgia. O diabo tomava-lhes conta dos corpos, acreditem-me. Vencemo-lo pois, a tempo e a contento".  Decerto me confundiu com uma donzela a mais, uma vez que me retribuiu com beijo intenso e estalos ainda mais sonoros e pior, molhados.

 

Corro para o lavabo, certifico-me da severidade da tranca, ligo todas as luzes, as duas que apontavam para o espelho oval ladeado por uma moldura em ouro e o conjunto de três outras, perfiladas sob o teto de gesso rebaixado. Ali, quem sabe, constataria a tolice estampada, e gritante, e constatei. Em auto-sugestão à velocidade da luz travo com o eu desenhado na superfície prateada e concluo ser dono de si. O público que encena a normalidade pelos salões afora aguarda o retorno triunfante do noivo. Em seguida da noiva, é claro, o centro das atenções.  Desacostumado àqueles trajes — medidos a silhueta, talhados para evidenciar volumes ou a ausência deles, prestes a exibir, portanto meu fim, certamente que sim — adormeço a volúpia a cascudos nos nervos do antebraço. Calombo por calombo.

 

Recomposto, enfim. Exceto pelas alvas gotículas escorridas no escuro tergal que, no caso, provocariam tantas hipóteses que das próprias se esvaziariam de sentido antes de se obter algo mais conclusivo. Não pensem que falo futilidades demais para uma ocasião tão nobre, porque é justamente nesse tipo de evento onde as futilidades passeiam naturalmente. Ademais, quando envolvidos de culpas, paradoxalmente os delituosos são os primeiros a se delatarem.  

 

Entre risinhos e cochichos a maçaneta ousa uma volta e quem a tornava, não satisfeita, forçou passagem supondo que a porta pudesse estar emperrada talvez. Um sorriso cuidadoso meio no canto da boca, muito treino, um segundo antes, cada gesto memorizado: "Queiram desculpar-me, senhoritas...". Mas a vida gosta dessas brincadeiras de mau gosto, espírito-de-porco. Ela, cheia de dotes e arcabouços, era quem ansiava esvair-se.

 

Esquivo, consegui, durante quase toda a festa, evitá-la com louvor. Ninguém, em sã consciência, arriscaria pensar que... Mas, e agora, o que fazer? Urrava dentro de mim a certeza de que dali não sairia impune. Poderia, em caso de vexame, fazer uso do fato de que ela acabara de receber alta. Deixou o sanatório não fazia uma semana completa. Poderia? Não. Ao contrário do que dizem, não sou cafajeste para tanto. Seus pais, revezando-se, também a vigiavam para que tudo corresse de acordo. Sua filha primeira teria o casamento prometido.

 

Nunca a amei e só concordei com o enlace para desencargo de consciência. O que acontecera quinze anos atrás me atormentava latente. Uma receita eficaz de manter alguém, senão junto, pelo menos preso a si é atribuir-lhe a culpa de tudo que de ruim possa ocorrer a você. Não é nada excessivamente elaborado. Crianças costumam fazer isso muito bem com suas mães. Quem não chora, não mama. Não é assim que dizem? A velha história da menina que implica com a irmã mais nova e corre aos braços da mãe, por ter o privilégio de falar inteligível e dedurar a pequena e após certificar-se do choro traz-lhe ao colo: "vem pro colo da maninha, vem que eu te amo, já te perdoei, menininha levada".  Um certo excitamento por odiá-la, vê-la inimiga e possuí-la selvagemente. Para quem, quando criança e inocente — o exemplo não é aplicável às crianças de hoje, malvinas por excelência — presenciou os pais em coito, sabe bem do que falo. No meu caso, cria no momento que meu pai estava a querer matar minha honrada mãe. Um horror. Uma delícia, entretanto. Não me surpreende crer que a bendita Maria tivesse parido o menino Jesus sem precisar ter passado por peleja animal igual. As mães, por piores que sejam, são virgens aos olhos dos seus rebentos.

 

"Oláaaaaaaa, vejo que não mudou nada". Seus dentes brilhavam e pude ver os caninos (juro que podia) crescendo à medida que ela revistava meu corpo com os olhos verdes e ávidos.

 

"Bondade sua. Perdi cabelos, ganhei quilos e...".

 

"Ficou um charme. Sempre soube que você ficaria assim".

 

"Assim como? Velho?".

 

"Não faça gênero. Você está ótimo e sabe disso". Um toque no rosto seguido de um leve empurrão para a esquerda com o desmunhecar da mão, sem muito esforço.

 

Uma vontade de puxá-la para dentro do cubículo, e beijá-la, e possuí-la, e dizer que a amava, e que nunca a esquecera, um minuto sequer, e que todas as bocas beijadas eram suas, e todos os corpos não se comparavam ao seu, e que me obrigaram, menino, a calar-se. Por que ela usava o mesmo perfume? Nada refinado, um cheiro de fêmea misturado com lavanda Johnson's. Inocência e malícia. Fatal.

 

"Olha quem está aqui? Meu amado noivo. Sentiu minha falta? Aposto que sim". Arrastado pela lapela do paletó, cruzei a multidão em direção ao terraço que dava para um enorme jardim de eucaliptos. Primeiro o beijo avassalador, depois a mordida na língua.

 

"Mas... o que é isso? Você me feriu...". As costas da mão direita colhiam amostras de sangue e exibia-se à noiva como prova.

 

Sacou uma bereta sob o véu que lhe encobria o rancor e, discretamente, encostou-o na minha barriga. "Não sofrerei da mesma vergonha novamente".

 

A contados vinte passos, pelo suntuoso vitral que separava o alpendre do salão de dança, curiosos e temerosos nos observavam. Aguardavam o show. Sua mãe me fuzilava com um olho, enquanto o outro olho deixou derramar uma lágrima. Uma lástima, devia estar pensando.

 

Tomei-a nos braços com ternura e sussurrei ao seu ouvido: "vagabunda".

 

"Vão em paz e o senhor vos acompanhe".

 

 

 
 

Aluísio Martins (22/03/1967, Fortaleza-CE) trabalha com projetos culturais e edição de livros de fotografia pela editora3x4. Escreve por diversão, dor, amor, ódio, enfim, escreve por pura emoção. Mais em seu blogue, Fenos e Fenótipos.