Viola Azulada
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Romance das Manhãs de Domingo
É preciso urgente cortar os excedentes.
Nada de adiposidades.
Estamos em crise.
Os adjetivos que me perdoem,
os substantivos são mais esbeltos,
e a Nova Era recomenda que sejamos seletos.

Há uma pena de andorinha voando à toa.
Há um redemoinho que nos afunda a proa.
Há uma onda marejada que não se escoa.

É preciso pôr um bêbado no timão do barco.
Que saiba das marés pelo trago das estrelas,
que saiba afundar levantando um brinde,
e mesmo nos destroços saber-se príncipe
salvo do rescaldo para o cetro da palavra:
La parole est morte. Vive la parole!

Há uma paixão em cada esquina torta.
Há um resto de angústia celebrando a morta.
Há um boi no labirinto procurando a porta.

É preciso correr atrás da utopia que se fez distante,
para que ela volte a habitar os dias mais comuns,
e faça que o sonho se pareça ao sonho,
mesmo sob o manto pessimista da névoa,
afiando o sabre na pedra que restou da cachoeira.
Ah, nuvens vermelhas, derramai vossa chuva de fogo!

Há um canto entravado na garganta.
Há um sufoco que já não me espanta.
Há um espelho que já não me encanta.

É preciso fugir do tempo perdido.
O que ficou pra trás encantou-se com a serpente,
e todos os dias buscamos novos corredores:
aléias renovadas para as pegadas recentes.
Salvemos aqui a parelha dos pés que suporta a canga
nesse itinerário do agora recolhendo ontens.

Há um solitário na mesa de um bar.
Há um suicida na voragem do mar.
Há um reclamante do verbo amar.

É preciso, finalmente, se apaixonar todos os dias.
Experimentar o gesto no corpo da amada.
Imprimir no toque a tatuagem serena
para que fique perene quando for saudade:
A vida se amplia num flash de coisas pequeninas,
e o que ficar são ecos de melodia transitória.

Há um desejo que me faz cantor.
Há uma paixão saída da sua cor.
Há um amor na contramão da dor.
As manhãs da minha infância
chegavam sempre serenas
levadas de claridade
roçando as manhãs do sol
nos meus olhos de menino.

E só viam o que viam
porque só queriam ver
o que no olhar revelava
novidade e descoberta
para os meus olhos de festa.

Porque de festa se faz
toda manhã temporã
das cidades acanhadas
perdidas em suas sestas
como a Manaus dessa época.

Manhãs que se embandeiravam
no descanso colorido
dos andaimes de Domingos
construindo em algazarra
os sons nos pés dos moleques
com seus folguedos alegres:
coquinhos de tucumã
no futebol de botão;
pelada para os mais hábeis;
carrinhos de rolimã;
papagaios de papel;
língua do pê, canga-pé,
macaca e barra-bandeira;
pedrinhas e manjalé.

Fora outros passa-tempos
(em que nós todos torcíamos
para que nunca passassem)
partilhados em segredo
com meninas assanhadas
bem mais do que curiosas
unidas num só desejo
de pulsão interior:
sussurros umedecendo
os mistérios revelados
(que não eram os gozosos
das ladainhas das missas)
nos arrepios dos pêlos
(ainda ralas penugens)
na pressa dos batimentos
dos corações pequeninos.

Sal na saliva furtiva
no toque breve dos lábios
língua lúdica e cândida
de leve inocência lúbrica
na respiração molhada.

Ciclo regido nas águas
cheiro agreste de alfazema.
No talhe corpos franzinos
adocicando a paisagem
de surpresa e descoberta:
corpos deitados nas tábuas
dos escondidos porões
fugindo aos olhos contrários
de tias e avós zelosas
anjos com suas verdades
(que nunca eram as nossas)
de labareda e pecado.

Querendo aplacar a febre
da nossa chuva de fogo
neblina de suor úmido
de chuva fina na pele
lavando instintos ocultos.

E tudo era muito simples
como as coisas das crianças.

Nada para complicar
a nossa fala em silêncio.
Fala de olhos espertos
na parceria de cúmplices
quebrada só pela voz
da menina impaciente
sempre mais experiente:
— Põe o teu dentro do meu
não diga nada a ninguém.

Tudo ficava sereno
nos meus olhos de menino.

Depois as águas do banho
gelavam nossos desejos
e o cheiro do peixe frito
era o sinal para o almoço.
E todos sentavam à mesa
com olhos apreensivos
os ouvidos afinados
à espera de algum resmungo
ou de um olhar mais severo
da autoridade paterna
cofiando seu bigode
afiando os mesmos ralhos
cobrando as nossas posturas
de toda semana inteira
como se aquele Domingo
fosse o dia do juízo.

Mas em minha cabecinha
uma lembrança aflorava:
— Põe o teu dentro do meu
não diga nada a ninguém.

Tudo ficava sereno
nos meus olhos de menino.

Ária più soave
Sempre que houver saco retiro a viola,
e ponho a cantoria no sereno
da noite, em serenata que se evola
em sons antigos, raros, que enveneno.

Nos acordes do pinho, a mão que sola
repete a melodia no azul pleno
dessa paixão azul, de ontens e agoras,
azulando a saudade e seu terreno.

Carlos Pena Filho pintou de azul
os seus sapatos por ser impossível
pintar de azul as ruas do seu rumo,

e a trova azul que eu canto agora aqui
mundo afora vai na nuvem que assume
chover de azul os sonhos por aí.
As minhas mãos são pentagramas
acordando sons no teu corpo.
Ponta de dedos ímã o tato se vai
percutindo notas descobrindo poros
um toque de cheiro no silêncio úmido.

Nos teus cabelos teço a fina partitura
feita de duas claves:
A mão direita
sola um sol agudíssimo
na tua verbena escondida;
a esquerda se faz em fá
o grave fado
o gesto do teu tesão
fala no meu pulsar.
(Um sopro morno fala baixo
no bafo abafado em tua boca)
O suor dos nossos corpos
enquanto garoa no lençol —
lava por um instante
o tempo de um ritmo sem metrônomo
um cheiro concreto de amêndoas.
Anibal Beça, poeta, tradutor, compositor, teatrólogo e jornalista, nasceu em Manaus, na Amazônia brasileira, em 1946. Trabalhou como repórter, redator e editor, em todos os jornais de Manaus. Foi diretor de produção da TV Cultura do Amazonas, Conselheiro de Cultura, consultor da Secretaria de Cultura do Amazonas. Vice-presidente da UBE-AM, União Brasileira de Escritores, presidente da ONG "Gens da Selva", onde atualmente exerce o cargo de vice-presidente, bem como de vice-presidente do Sindicato de Escritores do Estado do Amazonas e presidente do Conselho Fiscal da Fundação Villa-Lobos. Neste ano de 2003, completa 37 anos de atividade literária e 41 de atuação na música popular, tendo vencido inúmeros festivais de MPB por todo o Brasil. Em 1994 recebeu o Prêmio Nacional Nestlé, em sua sexta versão, com o livro "Suíte para os Habitantes da Noite", concorrendo com 7.038 livros de todo o Brasil. Ao lado de seus afazeres literários e musicais, tem se destacado em prol da causa da integração cultural latino-americana, seja traduzindo escritores de países vizinhos, ou participando e organizando festivais e encontros de poesia. Representou o Brasil no IX Festival Internacional de Poesia de Medellín, no III Encontro Ulrika de escritores em Bogotá; Em 0utubro de 2001, representou o Brasil no VI Encuentro Internacional de Escritores, em Monterrey, México, onde apresentou a conferência "Literatura versus Televisión — El caso brasileño".

Sua produção poética tem sido contemplada em importantes revistas: Poesia Sempre (Brasil), Casa de Las Américas (Cuba), Prometeo (Colômbia), Ulrika (Colômbia), Revista Armas & Letras da Universidade de Nuevo León (México), Tinta Seca (México), World HaikubReviu (Inglaterra), Lectura (Argentina), Frogpond Haiku (Estados Unidos), Amazonian Literary Review (Estados Unidos), Mississippi Review (Estados Unidos).

Livros publicados: Convite Frugal (1966), Filhos da Várzea (1984), Hora Nua (1984), Noite Desmedida (1987), Mínima Fratura (1987), Quem Foi ao Vento, Perdeu o Assento (teatro, 1988), Marupiara — Antologia de Novos Poetas do Amazonas (organizador, 1989), Suíte Para os Habitantes da Noite (1995), Ter/na Colheita (1999), Banda da Asa — Poemas Reunidos (1999), Filhos da Várzea, 2ª edição (2002). CD – Música: Anibal Beça — O Poeta Solta a Voz (2001). Página pessoal: http://www.portalamazonia.com/anibal