É
preciso urgente cortar os excedentes. Nada de adiposidades. Estamos em crise. Os adjetivos que me perdoem, os substantivos são mais esbeltos, e a Nova Era recomenda que sejamos seletos. Há uma pena de andorinha voando à toa. Há um redemoinho que nos afunda a proa. Há uma onda marejada que não se escoa. É preciso pôr um bêbado no timão do barco. Que saiba das marés pelo trago das estrelas, que saiba afundar levantando um brinde, e mesmo nos destroços saber-se príncipe salvo do rescaldo para o cetro da palavra: La parole est morte. Vive la parole! Há uma paixão em cada esquina torta. Há um resto de angústia celebrando a morta. Há um boi no labirinto procurando a porta. É preciso correr atrás da utopia que se fez distante, para que ela volte a habitar os dias mais comuns, e faça que o sonho se pareça ao sonho, mesmo sob o manto pessimista da névoa, afiando o sabre na pedra que restou da cachoeira. Ah, nuvens vermelhas, derramai vossa chuva de fogo! Há um canto entravado na garganta. Há um sufoco que já não me espanta. Há um espelho que já não me encanta. É preciso fugir do tempo perdido. O que ficou pra trás encantou-se com a serpente, e todos os dias buscamos novos corredores: aléias renovadas para as pegadas recentes. Salvemos aqui a parelha dos pés que suporta a canga nesse itinerário do agora recolhendo ontens. Há um solitário na mesa de um bar. Há um suicida na voragem do mar. Há um reclamante do verbo amar. É preciso, finalmente, se apaixonar todos os dias. Experimentar o gesto no corpo da amada. Imprimir no toque a tatuagem serena para que fique perene quando for saudade: A vida se amplia num flash de coisas pequeninas, e o que ficar são ecos de melodia transitória. Há um desejo que me faz cantor. Há uma paixão saída da sua cor. Há um amor na contramão da dor. |
As
manhãs da minha infância chegavam sempre serenas levadas de claridade roçando as manhãs do sol nos meus olhos de menino. E só
viam o que viam Porque
de festa se faz Manhãs
que se embandeiravam Fora outros
passa-tempos Sal na
saliva furtiva Ciclo regido
nas águas Querendo
aplacar a febre E tudo
era muito simples Nada para
complicar Tudo ficava
sereno Depois
as águas do banho Mas em
minha cabecinha |
Sempre
que houver saco retiro a viola, e ponho a cantoria no sereno da noite, em serenata que se evola em sons antigos, raros, que enveneno. Nos acordes do pinho, a mão que sola repete a melodia no azul pleno dessa paixão azul, de ontens e agoras, azulando a saudade e seu terreno. Carlos Pena Filho pintou de azul os seus sapatos por ser impossível pintar de azul as ruas do seu rumo, e a trova azul que eu canto agora aqui mundo afora vai na nuvem que assume chover de azul os sonhos por aí. |
As
minhas mãos são pentagramas acordando sons no teu corpo. Ponta de dedos ímã o tato se vai percutindo notas descobrindo poros um toque de cheiro no silêncio úmido. Nos teus cabelos teço a fina partitura feita de duas claves: A mão direita sola um sol agudíssimo na tua verbena escondida; a esquerda se faz em fá o grave fado o gesto do teu tesão fala no meu pulsar. (Um sopro morno fala baixo no bafo abafado em tua boca) O suor dos nossos corpos enquanto garoa no lençol lava por um instante o tempo de um ritmo sem metrônomo um cheiro concreto de amêndoas. |
Anibal
Beça, poeta, tradutor, compositor, teatrólogo
e jornalista, nasceu em Manaus, na Amazônia brasileira, em 1946.
Trabalhou como repórter, redator e editor, em todos os jornais
de Manaus. Foi diretor de produção da TV Cultura do Amazonas,
Conselheiro de Cultura, consultor da Secretaria de Cultura do Amazonas.
Vice-presidente da UBE-AM, União Brasileira de Escritores, presidente
da ONG "Gens da Selva", onde atualmente exerce o cargo de
vice-presidente, bem como de vice-presidente do Sindicato de Escritores
do Estado do Amazonas e presidente do Conselho Fiscal da Fundação
Villa-Lobos. Neste ano de 2003, completa 37 anos de atividade literária
e 41 de atuação na música popular, tendo vencido
inúmeros festivais de MPB por todo o Brasil. Em 1994 recebeu
o Prêmio Nacional Nestlé, em sua sexta versão, com
o livro "Suíte para os Habitantes da Noite", concorrendo
com 7.038 livros de todo o Brasil. Ao lado de seus afazeres literários
e musicais, tem se destacado em prol da causa da integração
cultural latino-americana, seja traduzindo escritores de países
vizinhos, ou participando e organizando festivais e encontros de poesia.
Representou o Brasil no IX Festival Internacional de Poesia de Medellín,
no III Encontro Ulrika de escritores em Bogotá; Em 0utubro de
2001, representou o Brasil no VI Encuentro Internacional de Escritores,
em Monterrey, México, onde apresentou a conferência "Literatura
versus Televisión — El caso brasileño". Sua produção poética tem sido contemplada em importantes revistas: Poesia Sempre (Brasil), Casa de Las Américas (Cuba), Prometeo (Colômbia), Ulrika (Colômbia), Revista Armas & Letras da Universidade de Nuevo León (México), Tinta Seca (México), World HaikubReviu (Inglaterra), Lectura (Argentina), Frogpond Haiku (Estados Unidos), Amazonian Literary Review (Estados Unidos), Mississippi Review (Estados Unidos). Livros publicados: Convite Frugal (1966), Filhos da Várzea (1984), Hora Nua (1984), Noite Desmedida (1987), Mínima Fratura (1987), Quem Foi ao Vento, Perdeu o Assento (teatro, 1988), Marupiara — Antologia de Novos Poetas do Amazonas (organizador, 1989), Suíte Para os Habitantes da Noite (1995), Ter/na Colheita (1999), Banda da Asa — Poemas Reunidos (1999), Filhos da Várzea, 2ª edição (2002). CD – Música: Anibal Beça — O Poeta Solta a Voz (2001). Página pessoal: http://www.portalamazonia.com/anibal |