alheio
ao próprio sentido
aquém de tudo e
de todos os poemas
um
poema
existe
além e muito antes
do
poeta
o poeta rumina
um desejo
na
lonjura
de um sempre
no
alto
de uma profundeza
num
pedaço
de sem fim
num
mar
petrificado
encontrar a
letra inaugural
que
relê
o futuro
antecipa
o passado
e
faz
as
coisas em seu estado original
ausentes
de peso
poema
e poeta
lábios
opostos de um mesmo beijo
brincam
de esconde-esconde
num
céu iletrado
de onde vem este gosto de vulva em minha
língua
essa fala, cheiro de uva que a chuva empresta à vinha
aroma
de eros que a letra exala, esse fato
gozo de favo a festa que se
derrama enquanto falo
entre o breu e o brilho
armou o cavalete.
pintava fora do quadro
com os dedos
em pleno ar
onde o espaço era amplo
e a tela mais
macia.
o que ouvia punha ali.
naquele pedaço
de
céu de chão de sonho
o pio do passarinho
a voz do vendedor
de loteria
o apito do afiador de facas
a correria para o
recreio.
os gritos no pátio do colégio
a mãe chamando
para o almoço
e o gosto do bife de fígado da avó
poria
depois, bem depois
quando tudo estivesse esquecido
num
momento em falso
em alguma noite sem estrela
sem
esperança, sem salvação.
pintou pintou e
pintou
até lembrar
definitivamente
que antes de tudo
toda arte existe pra
nada.
escrever
esquecer-se no papel
permitir que a página
imagine
apalpar cada palavra
cada silêncio
entre um entendimento e
outro
cada preciosa desimportância
como um violão sem cordas
um relógio sem ponteiros
um poema sem autor
eu queria escrever um
poema
mas poema não se escreve
cai na cabeça da
gente
como uma maçã
ou um céu bárbaro
ou a lembrança
de um castelo de areia
sempre esquecido
eu queria escrever um
poema
como quem pinta
ou despinta um grilo
escrever
como se inscrevesse
na pele
de uma janela aberta
um
caracol
um fóssil
ou um corvo amarelo
no ombro de um
leão negro
eu queria escrever um
poema
um que fosse a festa do sentido
mas poema não se
escreve
transborda
como um sonho
uma idéia
uma
vontade
luz de
estrela
faço versos
sim, faço versos
sou
réu confesso
faço versos
quando tropeço
no
universo
faço versos de bobo
e não há acerto
que me faça
não errar de novo
faço versos
porque posso
se não
faço
me dá um troço
faço versos
por nada
por
pirraça
é a minha cachaça
faço versos
porque quero
se nesse
mundo
tudo tem um número
o meu é zero
já vou faz tempo
nem sei onde
meu
caminho de volta
me leva pra longe
já venho faz muito
nem sei ao
certo
meu caminho só de ida
me deixa mais perto
vou a lugar algum
pra que ir
se
tudo aqui significa
sou da vanguarda
não de quem
vai
mas de quem fica
lembrei de vovó
canto mais
velho que o pó
lembrei de esquecer
que às
vezes é melhor morrer
lembrei de mim
sempre perto
do fim
lembrei desse defeito
que se
tornou perfeito
lembrei do mar
e, antes que
esqueça,
lembrei de
lembrar
na imensidão branca
do papel,
grita
a letra uma escritura
(certo silêncio
é audível
somente
às orelhas das páginas)
a folha vazia, parede fria
de caverna
escura
sonha garatujas
de argila e carvão
(fina linha desenha o vocábulo
sílaba
a sílaba
sublinha, com singeleza de cinzel
uma canção
antiga)
versos voam sem asas
o paraíso da
criatura
é o deserto da palavra
nunca mais digo nunca
nunca é
muito tempo
e sempre também
vou dar um tempo
vou dar tempo
ao tempo
o tempo engole o tempo
engole tudo
os bons os
maus tempos
num gole o temporal
vou dar um tempo
até o
singular
ficar
plural
o Deus da palavra
é um Deus
silencioso
cavalga páginas em
branco
lacera estruturas neuronais
se entranha na trama
celulósica do papel
como um vírus sub-atômico
(dá asa ao nada, língua à
vida
anima a coisa inanimada)
no sal da sua saliva
pulsa
aceso o caos de um céu imaginário
onde nasce a flor axial do
sentido
o Deus da palavra
leva o
poeta carinhosamente pela mão
até a beira do
abismo
o guarujá passa
alguma coisa
acontece
minha pressa vira prece
e o guaíba desagua na
calçada
se o guarujá passa
me vem à
cabeça
a balada do pintor
que pintava
de mãos
amarradas
a imagem daquele louco
que dizia o
verdadeiro quadro
nunca estar pronto
este é o ponto
a poesia me
sabe
quem sabe eu sei?
amor é droga pesada
não é melhor em
pasárgada
mas se o guarujá passa
antes fosse amigo do
rei
a vida é já
tudo passa
passa o
guarujá
o mármore grita:
— homem
ao mar!
pendurada na parede
a moldura
vazia
nada diz
nem uma pista
nenhum sorriso de
Monalisa
enigma algum a decifrar
é feito de silêncio e sal
o
cerne de um talvez
ossatura de sonhos
mó de
redemoinho
lá se foi a besta
cravar sua letra
na pele
de uma página
na bala de um obus
no lombo de um
desassossego
montar um cavalo
sem doma em
pelo foi o que fez
quem escreve
recebe não um
santo
mas mil demônios de uma vez
o som da neblina
chega
com sabor azul de silêncio
algo ilegível paira
quase ausência, pura vacuidade
aloja-se entre as
frestas o odor
de uma sílaba
translúcida
elo entre horizontes improváveis
tátil é o que não se vê mas
se sabe
a
lâmina de uma idéia
corta o verso por
dentro
eriça o pêlo da alcatéia
extingue a certeza
incontroversa
o motor da criação
gira suas hélices
oca é a matéria escura da
imaginação
com a chuva vem o
granizo
perto do fim o descomeço
antes da letra a
linha
antes da linha o
gesto
nexo is
sexo in the
léxico
I
ora direis
em minhas memórias
fazer
o quê?
o amanhã
despertou mais cedo
o
coração mudou de endereço
só me acho quando me perco
esqueço a
letra quando não devo
meu outro nome é medo
e se quando era nem
mesmo
um sonho distante
no ventre de minha mãe inascida
e meu
avô paterno salgava couro e carne
ao passo que o materno
plantava
árvores nos campos da Redenção
tudo convergia para este
ápice
onde o globo pára
o tempo inexiste
e o espaço
tomado
pelo êxtase imóvel
de um instante ínfimo
desiste
II
sois um diluidor
disse o verbo ao
criador
parto sem dor neve no equador
naco de metalíngua na boca
do trovador
o verso no alpendre a letra no quarador
a palavra a
lida a palavra lida
poesia de invenção
berrando estranhamentos
paradigmáticos
ao futuro do século passado
reinventando a
canção
recriando sintaxes
anunciando
o apocalipse das
artes
III
no alto da escada
sem degraus ou
corrimão
brilha a luz de um sol extinto
celebração das
cerebrações
encho de vinho a taça de um crânio vivo
e bebo à
saciedade
batuque de pano e couro
samba de
engraxate
poemas
p/
outros
p/
poucos
p/
doutos
p/
loucos
p/
todos
escrever
seguir o curso
entre a
surpresa e o susto
ler as entrelinhas
como o vento nos
arbustos
sempre corri atrás de mim
como uma
criança
atrás de um balão levado pelo vento
eu era o vento e não sabia
sim, pretendi ser mais do que
sou
desejei
a estatura da
araucária
a sombra da figueira
os braços verdes do
guapuruvu
mas que fazer!?
meu caule tem pêlos
os
galhos, cotovelos
folhas de papel na ponta dos
dedos
e meu fruto
semente feito
letra
escrever
orar
obrar
soçobrar
obra
é o
q
sobra
vem de viés esse ninguém
dentro
de mim.
— de acordo?
mas não firmo contrato.
mal acordei e
já estou sonhando
acordado.
máximas
insignificâncias
— troco um velho infame por uma
lâmpada queimada!
essa noite não dormi nada,
me
perguntava:
— onde fui parar que não me
acho?
— dei um godô em mim mesmo, acho.
— diacho! e daí!?
— e daí que eu não tenho nada a ver com isso
— como
não!?
— não tendo.
quando se tem o melhor de uma
mulher
quem quer ser outro?
que o vinho aguça a sensibilidade eu
sei
mas que amplia a percepção dos
feromônios femininos
descobri agora.
— vai um Pera Manca
aí!?
(imagens ©sara roitman)
Alexandre Brito é poeta, músico, letrista, produtor cultural, editor da ameop — ame o poema editora. Nascido
em Porto Alegre, começa sua trajetória como poeta nos anos 80, em
Belo Horizonte. No ano de 1986 publica Visagens pela
Editora Arte Pau Brasil. Em São Paulo, juntamente com o poeta e jornalista
Fred Maia, participa ativamente da "Edições Nômades", editora que
publicava poemas em vários suportes (livro, poster, cartão, postal,
camiseta) usando a técnica da gravura serigráfica. Com os poetas Paco
Cac e Samaral (Rio de Janeiro), publica uma série de Jornais poéticos
1990, 1991, 1992.
Idealizou e coordenou como editor a Coleção de poesia Petit-Poa
(em sua primeira fase; formato das caixinhas) para a Coordenação do
Livro e Literatura da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre,
quando foi publicado Zeros. Também produziu eventos
como o 2° Poetar (1991/SMC-POA) e a 1ª Semana
da Fotografia de Porto Alegre (1993/SMC-POA). Tem poemas
publicados em diversas antologias e revistas especializadas. Integrou
a Banda Os Três Poetas com Ricardo Silvestrin e Ricardo
Portugal. Integra a banda os
poETs com os poetas/músicos Ronald Augusto e Ricardo
Silvestrin, desenvolvendo trabalho de letrista e compositor. os
poETs acabam de lançar pela YB Music o Cd Música
legal com letra bacana.