biografia XIV: península

mar era novidade sempre
refeita corpos
quentes largados na
areia

planície de cor
indefinível memória
longínqua dos
vales

era completa ausência silêncio
indevassável esperança das
serras
embrutecidas nossa

única companhia

 

 

               entrega 

dois quartos duas
camas à espreita dos
cheiros dos sonhos de
pedro e
alice

um silêncio manso penetra as
paredes

duas janelas duas cadeiras à
espera dos risos dos
olhares de
pedro e
alice

um abraço vasto roça a
porta

 

 

               frágeis

teu sorriso por
trás da janela enluarada uma
estrela entre duas
nuvens o
pio
da
coruja

um pouco de teu
calor no travesseiro um arco
íris de manhã um
pote quase
cheio meus mais
tolos
devaneios

 

 

               estrelas

tenho todas as noites em meu
corpo desde que foste
embora e nelas não
brilha sequer
uma
estrela.

meus olhos trocaram a luz
de teu
sorriso pela sombria
vertigem de meus
sonhos.

minhas mãos arderam em
intermináveis
vazios minha
pele manchou-se inteira de tua
saudade 

exaurido arrastei-me entre as
noites e
os
dias dentro

de mim tenho
todas
as noites e nelas nada
brilha.

 

 

               degredo

                       para Elaine

teus olhos mares
de inexatidão tua
boca de novo ador
mecida

tua pele toda
esquecimento teu
corpo horizonte
enegrecido
  
não há pouso
possível
para esta
dor

 

 

biografia XVI - meninos

entre a casa e o
grupo escolar ruas
praças avenidas e
árvores tudo muito
enorme

mas vazio e quase
silencioso

desses silêncios que
carregamos para
sempre

 

 

         vespertino

por ventar nas
folhas secas o
dia levou tuas
sombras por

chover nas pedras
escorregadias a
noite achou
me na

janela atado
aos
sonhos naturalmente eu

me
encontro

 

 

                destino

tudo está na
boca tuas
palavras a ardência da
língua teu

silêncio a
inundação do
desejo todo
o

assombro de nosso
encontro o
húmus
sanguíneo a

lua
minguante

 

 

        biografia VII - estrangeiro

da beira
rio ao rés das
montanhas do calor
ardente aos ventos
do vale frio meu corpo de
menino pronto se
acostumou

minhas retinas úmidas
jamais

 

 

           descuidos

pela fresta da porta
entreaberta raios tímidos
de sol e o vozerio das crianças
vizinhas

a poeira rala depositando-se
nos móveis o resto
da espuma sobre
o ralo

a mão tocando a
barba uma nesga
de sorriso entre lábios o bico
dos seios sob
a blusa

 

 

                                                                      ©wicca

 

 

       tardes

              para Adrilene

horas insípidas pálidos
sabores luzes para
sempre desvanecidas

nem tanto o tempo cruel a crua
distância tombaram sobre
as
tardes

lembranças inaudíveis em
redor incansável e solitário

nem o tempo nem
a distância apenas a límpida
certeza
do
fim 

 

 

             monólogo 

                      para Soledade

4 ou 5 versos sem
destino o vão
resvalar dos lábios no
nada

minha ternura toda
desperdiçada

 

 

        biografia X - parede

no vale outrora frio e
estrelado em meio às montanhas
dilapidadas distraio meu
corpo minhas mãos
cansadas

da água do
rio do sol sempre
quente guardo só
saudade sempre
inútil
 
valadares não é sequer um retrato

 

 

                apto

quando a gota
d'água pingou da
torneira rompeu-se inteiro o
silêncio do
mundo

mas apenas os grãos de
poeira assustaram
se

 

 

                remoto

tão ausente que não
te encontro mais nos meus
versos tão
pouco no teu
toque

não te vejo não
te toco
não

tão distante que meu
corpo a
ti não se
sabe
mais

 

 

            perdão   

                "eu choraria. eu talvez chore.
                o amor é de si insanidade".
                                    Nálu Nogueira

eu diria amor não
fosse a angústia das
noites a cegueira da luz
matinal diria

amor não fosse a
pele puída os
olhos
embaçados

eu diria amor não fosse a solidão
das lágrimas inúmeras
tardes lentas diria não

fosse tanta distância tua
falta absoluta de
palavras

 

 

                    prelúdio

serenada a noite em nossa
pele o mundo se re
fazia em secretos
sussurros

na madrugada mansa teus
olhos murmuravam paisagens em todo
meu
corpo

carregamos para
sempre a iminência das
manhãs entreabrindo-se na
janela

 

 

         eclipse

tua ausência há
muito ensombra
meus
olhos

nesta distância astro
nômica nenhum fulgor pode
me
amanhecer

 

 


Adair Carvalhais Júnior. Valadarense e belorizontino, poeta e professor universitário. Vive em Belo Horizonte. Publicou Roteiros para um final de era — poemas reunidos (Edição do autor, 1998) e Desencontrados Ventos (Outras Letras Editora, 2002). Escreve o blogue  Desencontrados Ventos e tem um site pessoal, homônimo: Desencontrados Ventos.