*

 

Da banca até a casa pedras rolavam e era granito com barbante circunscrito

Barbante circunscrito e nenhum anjo disponível,

barbante circunscrito e apenas alguns rabiscos,

barbante circunscrito e um taxista suspeito,

barbante circunscrito e um coração trincado:

granito e barbante circunscrito.

Pedras rolavam enquanto eu atirava a manhã efêmera no lixo.

Foi bom!

 

 

 

 

 

 

Faixa de Gaza

 

 

O terror vinha da linha do trem

Fui tomada por grande melancolia

Quando diante daquela Teresina

E de seu Serial Killer

 

Não sei se foi música baiana, ou poema na camisa

Não sei se Kombi, rua, ou cúpula de igreja

Não sei se perfume talvez, ou talvez aquela brisa

 

                                                                             O terror caminha.

 

 

 

 

 

 

Misantropo

 

 

Teu olhar tem encantos como essa pedra ou o cheiro de ervas fervendo

Encantos de chá ou de sangue derramado no altar do sacrifício, teu olhar

Entrei no local sagrado onde, sob a pedra, crepitavam brasas rastejando no lastro do teu olhar

 

Desde muitos séculos há leveza no lenço pendurado no varal. O vento sopra por trás e eu sou o vento através do teu olhar.

 

Escravizado pela alma que habita esse espelho fui, um dia, a alma distorcida desse espelho.

Alma do espelho, porta do teu olhar.

 

Abismo que a qualquer matéria dissipa, grito sufocado pela sombra dos teus cílios, tétrica caverna onde me desloco cristalino com ira de navalha,

Torto, torpe, arranco da órbita

 

esse teu olhar.

 

 

 

 

 

Centro geométrico da cidade

 

 

{mulher feia pobre e fedida arrasta um cobertor encardido}

 

Observação número 1: Há uma lógica urbana no pouso do urubu e no flanar do aeroplano.

 

Centro geométrico da cidade

 

{ônibus quebrado, trânsito parado, asfalto, bandido}

 

Observação número 2: Nem toda interferência artística de vanguarda atinge seus objetivos com sucesso, no centro geométrico da cidade.

 

Centro geométrico da cidade

 

{bêbados pedintes mancos falsos meninos banidos}

 

Observação número 3: A miséria humana não é, necessariamente, uma praga urbana.

 

Centro geométrico da cidade

 

{obra monumental, cachorro morto, ódio contido}

 

Observação final: Disparo olhar para todos os lados esperando encontrar beleza naquilo que vejo do centro geométrico da cidade.

 

 

 

 

 

 

Língua

 

 

Diante da janela, na sala, é possível ver a grande praça de Pequim.

O espírito cansado, por carregar o peso de tanta existência.

Pensamentos circulares, tormentas e bilhões de vozes se chocam diariamente contra as muralhas.

Tomando chá, diante da grande janela na praça de Pequim, espíritos da guerra e suas atrocidades retumbam dentro do labirinto:

horror acústico de vozes sussurrando no fundo das gargantas cortadas, em mandarim.

Depois de lavar a louça, em frente a janela da sala, diante da grande Pequim, parece música o peso de tanta existência.

Na muralha esbarram os ecos das gargantas cortadas suplicando clemência em mandarim.

Sentada na cadeira, o espírito perdido dentro do grande espaço, na praça de Pequim.

Olhos cansados por carregar tanta existência.

Quando acendem as lanternas, uma luz vermelha encharca a praça na grande Pequim.

É possível ver chineses pedalando bilhões de bicicletas.

 

 

 

 

 

*

 

Cecília, grandes dentes. Risos. Que perfume você usa?

Deusas entreolham seu futuro. A mordaça. Em que carne você crava? Qual defesa? Há aquilo que caminha e só se sente. Onde estão os seus pertences? Flutuam por entre as coisas, derrubam jarros. Encantos atrás das mesas. Em que pó? Metáforas ridentes soletram sílabas. Entre frases há espaço: paralelos sofrimentos. Almas gemem arrastando correntes. Decifro-te. Que piano você toca? Atravessa a outra margem, consome-se toda ira. Devora-me. Quem perfuma seus invernos? Sólida manhã de outono, ecoam bombas. Cecília, avesso das coisas, nada carregando objetos. Quem protege seus infernos?

 

 

 

 

 

 

 

Simpósio

 

 

Sobe ao púlpito dourada ciência com auxílio do Olimpo e rege orquestra de ignorantes sedentos por uma saída. Seus potentes peitos prometem acabar com a fome, o sofrimento e a dor.

Ela tem a faca para amputar a raiz do mal, o conhecimento para transformar o pouco em muito, a sabedoria para nos arrancar das trevas.

Ela é toda luz.

Nesse Simpósio, onde nos privam do vinho, retira o manto e exibe a vaidade com todas suas nuances de cor.

Mais poderosa que Ceres, vai semear os campos com seus superpoderes e fabricar as plantinhas saborosas e inocentes para os barrigudinhos do nordeste, os esqualidozinhos da África, os pobrezinhos da Índia.

Ela, a grande mãe, não precisa de censores, ela é quem sabe.

De cima do púlpito esguicha, em nossos olhos, seu leite geneticamente modificado e, enfim, agora vemos.

 

 

 

 

 

 

Freud

 

 

Quando tirei de cima o peso, sonhei com vestidos inimagináveis: linhas de Arthur me conduzindo ao labirinto, nós migrando, pulsações em negro e dourado saindo da mala.

Sobre a cama, sonhei a cidade em festa, grande barriga barroca, Veneza inundada por pandeiros e folhas de bambu:

Êxtase.

Quando tirei de cima o peso: Pássaro e fotografia do ritual sem mim.

 

 

 

 

 

O admirável mundo das velhas e boas formigas

 

                                          

Observando, com lupa, o universo das formigas se sobrepõe a toda existência. O mundo milimetricamente organizado sem pressentimento do tênis que o tomará de assalto. As saúvas invadindo as hortas brasileiras, silenciosamente, descem do morro para o asfalto. Meticulosas, não desviam das radiações amplificadas pela mente. Constroem, obcecadas, o castelo da rainha, sempre plena de operárias e de uma provável princesinha. O macho, na clandestinidade, morrerá sem registrar patente. Naquele universo, são todos formigas com exceção do tênis, da horta, da rainha e da lente.

 

 

 

 

 

 

*

 

Manhã:

me vêm raios em profusão;

preciso ir a Nova Iorque;

todos os cachorros latem;

engulo um café  amargo.

 

Tarde:

não me ilumina a metáfora;

chove granizo na telha;

preciso ir a Nova Iorque;

acesa a  luz de mercúrio.

 

Noite:

toda história se adensa

bebo o que tem no copo

seguro nos pés da cama

não vou mais a Nova Iorque.

 

 

 

 

 

 

*

 

Segredo: caneta que não escreve. Graças riem enquanto sobrevoam o lago, não escrevem. Água, água, água levando poder que não descreve. Tento guardar vida, segredo que precisa. Graças: força que circunscreve. Primeiro grito: voz rabiscada na parede da gruta que movimenta ratos/pássaros. Estridência subterrânea: água, água, água. Cântaros para os deuses, cruzes para os mortos, dinamite para o futuro. Irreversível água míngüa pinga fio grito primordial da gruta jorra sangue dos ratos /pássaros. Mistério é um coração com asas. Segredo: sem saber os outros voam.

Ave Graças!

 

 

 

 

 

Elementos

 

 

Cabeça mergulhada na banheira mediterrânea tentativa de poema procura objeto que concentra as forças o centro escondido na fresta do degrau onde tropeça o cego trespassado pela luz de todas as coisas.

 

Afundam cabeças n’água/espelho dessa rua que passa por dentro cego vê nas esquinas bichos estranhos mágicos potentes o mediterrâneo o ocupa.

 

Uma perna emerge da água mastro que sustenta em contato com outro elemento a experiência da perna que se eleva no ar sobre todas as formas/pensamento desejo de movimento enquanto cabeças se debatem para encontrar o orifício que escoa princípio segredo fundamento da matéria alfa e ômega.

 

Dedos movimentam-se no fundo porcelana tentáculos procurando a terra onde vermes lutam para fazer buracos e diluir e fertilizar e nutrir e permitir que a chuva carregue o resto para o centro onde espreita a luz de todas as coisas e o fogo queima e as chamas atingem o objeto escondido na fresta do degrau.

 

No sentido da água cabeças rolam seus perfumes pelo ralo emerge a mão direita e mediterrânea afunda na banheira a tentativa do poema.

 

                              O cego vê.

 

 

 

 

 

 

 

Adriana Versiani (Ouro Preto-MG, 1963). Co-editora das publicações Dazibao. Foi co-editora da coleção Poesia Orbital e do Jornal Inferno. Pertence ao conselho editorial da revista Ato. Publicou O barquinho pelo mar, A física dos Beatles e Dentro passa.