minas gerais

a pia pinga
até a medula a pia pinga

galo canta a pia pinga
noite dia pinga pinga

você cresceu você casou
houve um golpe militar

a pia pinga e o menino
da esquina virou padre

a pia pinga

a pia pinga toda
a caixa d'água

 

 

 

 

 

 

 

*

mandíbula 

não imita:

acha o próprio

grito

antes que

desça

pela garganta

com

a saliva 

e grita, grita

 

 

 

 

 

 

 

*

 

emoção sem opção 
viajar no avião 
da manteiga aviação

 

 

 

 

 

 

 

como bolinar um coração de ouro 
 
 
sou flaubert do fliperama 
a forma faz parte da flama.

 

 

 

 

 

 

 

musiké

 

tenho pavor de festinhas

aparo as arestas da farsa

visto minha roupa nova

mas hoje não saio de casa

 

 

 

love-lorn soft-porn 
 
tenho sempre 
para a Musa 
um poema 
na traquéia 
uma prosa 
sob a blusa

 

 

 

 

 

february mon amour 
 
janeiro não disse a que veio. 
mas fevereiro bateu na porta 
e prometeu altas coisas. 
'como o carnaval', ele disse. 
(fevereiro é baixinho, 
tem 1,60 e usa costeletas. 
faria melhor propaganda 
do festival de glastonbury.) 
pisquei ligeira nas almofadas: 
'nem tô, fevereiro. 
abandonei o calendário.' 
'você é um saco', ele disse. 
e foi cheirar no banheiro.

 

 

 

 

 

*

 

keats quando estava deprimido 
se sentindo mais pateta que poeta 
vestia uma camisa limpa 
eu tomei um banho 
com os dedos ajeitei os cabelos 
vesti roupas limpas 
olhei praquele espelho 
o suficiente pra 
sem relógio caro 
fazer pose de lota macedo soares 
e sem pistola automática 
pose de anjo do charlie 
então eu disse: "é, gata" 
rápida peguei as chaves 
e saí num pulo 
só fui rir no elevador.

 

 

 

 

 

reinvenção do front 
 
sabe bala zunindo 
e soldado lendo  
carta de amor 
na trincheira 
zzzzzzpiiiiiiiiiiiiiiiuuuu? 
 
sou eu.

 

 

 

 

 

trattoria arrivederci 
 
 
rabiscar um poema no guardanapo do café ou restaurante, que lindo, letras marcadas pela boca, borra, tinta chupada pelo papel, borrão charmoso, toma meu amor. e o seu amor dobra, retribui o olhar, guarda, guarda o guardanapo, o guardanapoema. inusitado porém seria sair do banheiro com a obra escrita em prosa ou verso na tripa de papel ou no rolo inteiro e sem enrolação dizer: toma, meu amor, eu fiz pra você, eu fiz pensando em você

 

 

 

 

 

*

 

aos onze anos
atrás da casa da minha avó
eu fumava um cigarro gol comprado
avulso por cinco centavos num boteco
onde a moça conhecia a minha mãe
a moça me olhou atravessado
mas me deu o cigarro mesmo assim
e lá onde tinha uma horta
eu minha irmã e uma prima
demos nossas primeiras baforadas
foi bom o gol de cinco centavos
até que alguém jogou fora rapidinho
ao ouvir uma tia um cachorro ou
o vento nos pés de couve

 

 

 

 

 

 

*

 

vou acordar cedo, ligar a cafeteira
pôr o pão na torradeira e sentar à mesa
e te odiar por ter me dito sorrindo
e te odiar por ter me dito chorando
que já não dá mais
e te odiar sobretudo por não ter me dito
que já não dá mais
vou odiar não me chamar johnny
e não ter uma arma de qualquer calibre
e não ter uma pistolinha que dispara água
e nem um bodoque de borracha envelhecida
pra ejetar essa coisa qualquer que ficou na garganta
vou pegar o café na cafeteira
encher a caneca e tomar sem açúcar
vou pegar o pão na torradeira
e cobri-lo com uns nacos de manteiga
não tenho tempo para ser
um poema de prévert
tomo meu café e saio
e na rua o ipê roxo
me lembra que o grande e nunca banal ciclo da vida veja só meu amigo
continua
e sobretudo deixa a mensagem clara quando alguém escorrega nas flores gosmentas caídas no chão e precisa ir ao pronto-socorro levar pontos no queixo
no ponto de ônibus tem sempre um rapaz
ouvindo qualquer coisa que soa como erasure
por mim — hoje é sexta — ele que se engane pra sempre no fio de seu ipod.

 

 

(imagem ©frederic cirou)

 

 

Angélica Freitas nasceu em Pelotas-RS, em 8 de abril de 1973. Tem poemas publicados na antologia Cuatro poetas recientes del Brasil — Joca Reiners Terron, Angélica Freitas, Ricardo Domeneck y Elisa Andrade (organização e tradução de Cristian De Napoli. Buenos Aires, Argentina: Black & Vermelho, 2006). Em 2006, publica Rilke shake, seu primeiro livro de poesia. Edita o blogue Tome uma xícara de chá. Escreve às segundas-feiras no Algaravária.