Nomes aos bois


Mumuzinho, Sereno e De Arroz
foram os nomes que eu dei
aos bois.
Desbocamento uma vírgula!
,
Desbocamento é para quem tem boca
     correta, sem dúvidas, que pode
     pensar.
E a verdade é incerta  —
nem é rebelde o poeta
mas manso como De Arroz.
Manteiga derretida.
Mastiga, mastiga
olha pra cima com ar de quem
     nada pode
     fazer
     para mudar.

Ô, Mumuzinho, me abraça
um abraço forte de quatro patas
preu pertencer em algum lugar!

Mastiga
enquanto procuro nomes mais
    perto do certo
como Sereno é sereno — caga e anda —
e Um muge
berra
bota a boca no mundo
de vez em quando.

 

 

 

 


*

 

Tem um verão dentro de mim
um verão quente
um verão louco

sol e vento se abraçam
amorosos

a luz explode.

É um verão que acende o corpo
e ao mesmo tempo agita a alma

da criança de sempre
que quer correr
descalça na praia.

Antes mesmo de setembro vem
com os cupins

venerar lâmpadas.


Alças, decotes
vestidos de algodão

debaixo do chuveiro
o Cacique Bunda Branca
tira o calção.

No ar promete um sopro
um bafo instiga

arde a vida no calor.

Viva o verão.

 

 

 

 
 
 
*
 

                A Emily

 

Cruzes em bico na luz incerta
decididos
com pressa
quinze patos pretos passam por mim.

Revoluteio:
ora líder ora trio
troca de lugar
de mar a céu.

Letras determinam
a combinação —
DNA.

Que tanto vão
e vêm
assim resolvidos
patos de ar?

 

 

 

 


Perder


                Para Moacyr Félix
                Ricardo do Canto
                Luiz Otávio
                Bernardo
                Pablo

                in memoriam

 

Nós temos que deixar você ir.
Temos que abrir
mão de você.

Não adianta reter aqui

comendo biscoito Maizena
pisando miúdo
os pés finos de menino
no andador.

Você não quer
fingir que não lembra
o nome da enfermeira
— é Daisy —
nem visitas mais quer

ou momentos de lucidez
para dizer
estou tonto
— tanto —
e você é sempre bem-vinda,
completamente gentil.

Como os outros
se foram
tomando conta de tanto do que há ou houve em nós
você também
quer mergulhar no não
— tubo que aspira ar
de volta ao pó.

Meninos, vocês estão todos juntos, não estão?
Encontraram vovó e seu Nathaniel?

 

 

 

 


Agora

 

Tudo vai dar certo agora.
Você vai ser promovido à chefia.
Eu vou ganhar na loteria.
Você vai consertar os dentes
a prestação.
E eu, tirar férias
trocar os óculos, enfim.
Vamos comprar aquela casa antiga
e tocar samba na vitrola
— o som vai voar pela janela
emoldurada de pedra.
Você cozinha jiló
e eu me acabo
de amar.
Tudo vai dar super-certo agora que você voltou, amor.
Vou passar as mãos pelo seu corpo todinho
alisando
acalmando com tapinha
cada pedacinho.
Você, dizer com voz grossa
coisas que derretem
e explodem.

Agora, amor, não tem porém.

 

 

 

 


Saber

 

Agora conhecemos os destroços
do que teria sido
Barco
Usina
Casa de campo.

Para além do fundo
da memória
— no oceano —
está o sal — comendo
alisando o cinza
que na tábua desliza
e repete clarões.

Pelo menos
(agora) não sonhamos.

A descrença
aos pedaços consolidamos
à suja Praia da Pobreza arremessados
em meio a pernas carcomidas de bonecos e garrafas plásticas.

Instigados pelos fortes ventos
água viva
plâncton
o sal da terra
a fina flor
fazemos
            o que há de melhor.

Somos inúteis.

Clowns
 
Será triste a passagem
para a Terra Sem Sentimentos
do capital total.
Um por um
pelo desfiladeiro
como os mocinhos do cinema.
Fardos, jegues.
Camelos?
Também, vindos de outros filmes.
Turbantes, sarongues, sáris.
Irmão, primo.
Pai.
Até mãe pelo despenhadeiro.
Nada sobrará.
Amor, sorriso.
Pedra sobre pedra.
Só frieza e névoa.
Não, não será triste.
É Sem Sentimentos a Terra
do capital fatal.
Ovelha irreal
simulacro de gemido
inteligência transgênica.
Clowns, clones — será gente
o que desce da garganta
do outro lado da montanha
da transmutação global?
 
 
 
 
 

*
 
Não sinto
(muito mais)
falta
nem saudade.
 
Estou tomando gosto das coisas.
 
Figuras e linguagem.
 
Uma laranja
diminutivo
sopinha quente
um sorriso
uma boa chuveirada.
 
O verão!
Como é colorido.
Super.
 
O Rio de Janeiro.
Uma viagem.
Contradições. Sinônimos.
 
Que boa a mão da idade.
 
 
 
 
 

*
 
Uma casa no ar
é a minha:
vejo do alto
casas antigas, panos ao vento, a luz do mundo
— o verão no Rio —
e sou feliz.
 
Poeta:
verde e sol
me atravessam.
 
Fotossintética
clorofílica
transparente
 
puro ar puro, moro aqui.
 
 
 
 
 

Pelas ruas do Méier
 
Jovem de novo
quando o verão vem.
O vôo nas mãos
na voz.
Mesmo o verão assim desordenado
fora de época
exagerado pelo buraco de ozônio
e outras alterações climáticas
produzidas pelo egoísmo de homens e mulheres ricos
e ignorância de homens e mulheres pobres.
O calor incha
enche
intumesce
emprenha.
Pelas ruas irregulares do Méier
vou feliz
me sinto no passado
tudo ainda em escala de gente
ao alcance de gente
chinelo de borracha gasta
distâncias
a custo vencidas — vencidas? — por lotações poeirentos.
Cascateia o trem
(como em Riabina, Riabina:
poiezdi catchaietsa).
No Méier, os novos tempos
apenas salpicaram lembranças
pela metade e já enferrujadas.
Com vigor vegetal
a pobreza,
rápida,
domina.
Temos que dar importância às ruínas.
A cada templo
cada tijolo esfarinhado.
Andaimes corroídos
espetados no ar
um dia sustentaram nossas sujas cidades!
Beleza tristealegre do incompleto e misturado —
outra vez jovem no calor do Méier
outra vez jovem no calor desolado do Méier.

 

 

 

 

 
 
 
Mais Angela Melim em Germina > No Cosmos de Calção e Sandália
 
 
 
Angela Melim nasceu em Porto Alegre (RS), em 1952,  e vive no Rio de Janeiro, onde trabalha com tradução e redação. Livros publicados: O vidro o nome (Rio de Janeiro: Vozes, 1974) poemas; Das tripas coração (Florianópolis: Noa Noa, 1978), poemas; As mulheres gostam muito (Florianópolis: Noa Noa, 1979) prosa poética; Vale o escrito (Edição da Autora, 1981), poemas;  Os caminhos do Conhecer (Florianópolis: Noa Noa, 1981), poemas; O outro retrato (Rio de Janeiro: manuscrito circulante, 1982) prosa poética; Poemas (Florianópolis: Noa Noa, 1987); Mais dia menos dia (Rio de Janeiro, 7Letras, 1996) obra reunida. Inéditos: Ainda ontem, contos, Prêmio Eneida da UBE-RJ, 1991;  Personagem, Prêmio Bolsa de Literatura da Fundação Vitae para as Artes, 2003. No prelo: Possibilidades, 2006.