DEDOS

 

Estavam as quatro sentadas em casa, chegadas uma de cada vez da rua, dos afazeres, das vidas exteriores: mãe e três filhas. Pai não há, está no lugar dele, longe, onde estiver, de onde nunca deveria ter saído. No entanto, se não o tivesse feito, não teria nos dado estas mulheres.

Afazeres importantes trouxeram para casa, e cá estão elas a cumpri-los, cada uma em seu silêncio, sentadas a escrever a ler a estudar, quietas como se bordassem, mãos no trabalho, pensamentos em pessoas lugares coisas distantes, bem lá fora e longe do que chamam casa.

Oito olhos baixos se levantam quando entra carta por debaixo da porta da sala ao lado. Não se viu entrar, mas ruído de carta por debaixo de porta não se confunde, chega-se a saber o tamanho do envelope pelo som que produz ao passar pela fresta. Por pouco não se percebe a cor, e mais ainda quando temos quatro tão atentas e sensíveis pessoas no ambiente ao lado.

Mãe autoridade e servil, porque seria diferente de todas as mães?, levanta-se e vai à porta, melhor dizendo à presença do já sabido pequeno envelope. Apanha-o e volta ao seu lugar, olhar quieto surpreso, um meio sorriso sobre o remetente. Maior surpresa havia sido receber carta em tão adiantada hora da noite.

Senta-se à poltrona e abre a orelha não colada do envelope com o algum cuidado que o envelope merece, tira-lhe um pequeno papel e lhe passa os olhos. Faz como sempre faz: uma rápida busca a palavras que quer ver, pula saborosas frases antevistas como quem empurra paio para o lado a comê-lo logo mais com a gota de pimenta especialmente dedicada a ele, belisca uma ou outra palavra que tenha passado desapercebida na primeira leitura e repega a empreitada do começo, a ler as letras como se lêem cartas. E começa a gemer.

E se ouve, grave e baixo, o que bem poderia ser o miado de um dos quatro estômagos repletos do quente jantar de ainda agora. O segundo som é gemido alto e claro. Conclui a primeira leitura do bilhete, mal lhe podemos chamar carta, tamanha magreza de palavras, e reinicia a tarefa gemendo antes de reler, mas agora mais alto, agora ouve-se nitidamente uma vogal estranha, uma letra que não é um a nem um o, e ao meio da releitura um deus é invocado e lhe vai uma mão ao meio das pernas, não do deus, claro, e sim das dela, das suas pernas já prudentemente abertas na primeira leitura.

Agora que segura o bilhete, chamemo-lo de bilhete portanto, agora que o segura com a mão esquerda, tem a direita livre para subir a saia preta e enfiar dedos quantos tivesse por debaixo do que trás por debaixo da saia, e esses dedos encontram carne molhada, carne que pulsa em choque, mas as mãos vão em segurança, o choque não as repele e os dedos se entram pelas fatias de carne molhada e buscam o ponto por onde toda a eletricidade é descarregada e o encontram.

E agora uma só mão é pouco, descansa o papel sobre a barriga, basta-lhe a fresca lembrança do que acabou de ler, e traz os pés para cima do assento da poltrona, abrindo-se ainda mais, e enfia dedos por onde pode, por onde nunca tinham andado, por onde antes só tinha ido a língua que lhe escrevera o bilhete, e ela ao se lembrar da língua umedece ainda mais os já molhados dedos e os faz moles e delicados como a língua a lhe passear pelas fatias todas e enfia o maior desses dedos por trás até que acabe todo e inteiro enquanto quatro dos da outra mão lhe entram pela frente, é gente esfomeada a tentar passar toda ao mesmo tempo pela estreita porta do refeitório, e vai sentindo a onda que lhe chega pelo fundo, por baixo, por trás, nunca sabe de onde vem, de qual parte aquilo brota, e a onda passa por ela inteira como um êmbolo até lhe chegar à garganta, de onde começa como a continuação do leve gemido de ainda agora e termina num grito imenso, grave, e se retesa estica arqueia a oferecer a carne como se ele próprio, a língua, estivesse ali em pé à sua frente. Passada a onda, desmonta-se de uma vez sobre a poltrona num estrondo. O bilhete cai ao chão, inútil por ora.

As filhas largam suas leituras e escritas. Levantam-se e vão à cozinha, em silêncio, em busca de uma coisa, talvez um doce, um gole d'água. Na cozinha, uma em frente à geladeira aberta, outra na mesa a mexer nas sobras do jantar, outra a lavar um copo. Vem desta da pia o comentário:

— Mamãe anda impossível, não?

A que está na geladeira faz um a-hã, a outra nem isso, apenas concorda com a cabeça. Mulheres.

 
 
 

 

 

 

PRA VER O MAR

 

Eu disse que acompanharia você nessa viagem pra ver o mar, disse que era isso que eu queria, mas você sabia que não era só isso, sabia que eu estava saindo deste nosso ermo pra acompanhar você nessa viagem só pra estar perto de você, e quem sabe até, em alguma hora da viagem, quando a conversa parasse um pouco e a gente não tivesse muito o que falar, eu pudesse pegar na sua mão e nós fossemos assim enquanto o calor das mãos suadas nos permitisse ficar de mãos dadas, e isso pra mim já pagaria o esforço da viagem.

Mas não, nós saímos a pé em direção ao mar depois que você dedicou uma semana inteira da sua vida a tentar me convencer a acompanhá-la nessa bobagem, que eu só aceitei porque sou idiota, mas você fez isso parecer uma coisa agradável, falou das paisagens, falou das montanhas que teríamos que atravessar, falou do mar azul que estava atrás das montanhas e que nem eu nem você ainda tínhamos visto, e uma semana depois de resistir, vendo você me pedindo com esses seus olhinhos azuis arregalados e me falando de tão perto que até dava pra sentir esse cheiro que sai da sua boca que é tão bom que nem dá pra chamar de hálito, eu, mesmo achando que era idiotice, achei que valia a pena, só por ficar perto de você esses dias todos, e fiz o que era necessário pra sair de viagem.

Você passou uma semana inteira me convencendo a ir com você, me mostrando só metade do problema, contando as horas que a gente conseguiria andar por dia e quantas horas descansaria por noite, e eu ouvindo e pensando que ninguém consegue andar isso tudo por esse tempo todo, e já estava vendo a gente arrebentado de andar no fim do segundo dia, suado, rachado de sol e com os pés em sangue, mas não me importei com isso, pensei em você assim, sentada na beira da estrada, segurando os pés sangrando, suada e rachada, e mesmo assim você ainda era linda como sempre tinha sido.

E depois de muitos dias fazendo e refazendo contas sozinho deitado na minha cama, eu percebi que as contas davam uma semana só pra gente ir, faltava outro tanto pra gente voltar, e quando nesse mesmo dia eu falei com você sobre isso, depois que eu já tinha me acostumado ao absurdo de ficar uma semana fora de casa e longe do meu velho pai, você me disse que era claro que seria uma semana indo e outra voltando, e ainda perguntou, sorrindo e pondo as mãos na cintura - ai como eu adoro quando você faz isso! - como é que podia ser só uma semana, se levava uma semana inteira só pra chegar no mar?

Tive que convencer meu velho pai de que só uma semana não faria diferença, e fiz isso entalado de vergonha porque sabia que estava mentindo, sabia que se tudo desse certo seriam duas as semanas fora, e sabia muito bem que uma semana de ausência minha faria muita diferença pra ele, que nem se mexe direito nem sozinho, mas menti pra ele igual você tinha mentido pra mim, dizendo que era só uma semana que eu gastaria na viagem, e meu pai fingiu que acreditou nessa conversa, ele é velho mas não é bobo, quem sabe ele mesmo já não tenha feito essa mesma viagem atrás de olhos azuis como os seus, o que eu sei é que minha mãe tinha olhos da cor da terra seca. Ele só me pediu que desse alerta à vizinha que, se o ouvisse gritar por ajuda, fosse em seu socorro, e isso me fez sentir meu coração uma uva passa pequeno e amarrotado, e eu saí depressa de perto dele, como fosse lá fora procurar a tal vizinha, mas o que eu queria mesmo era saindo de perto pra chorar sem que ele visse.

Saímos no dia seguinte, você não podia esperar mais, era tanta a vontade de ir ver o mar que qualquer minuto lhe parecia uma semana, e eu juntei uma coisa ou outra, uma garrafa com água, uns trapos e uns trocados que pude encontrar, era pouco meu dinheiro mas resisti a mexer no do meu pai, isso eu não fiz, posso ser mentiroso, mas ladrão nunca, e não lhe pedi o dinheiro porque sabia que ele me daria mesmo precisando muito dele, mesmo ele sabendo que era pra ser gasto numa viagem estúpida, e pouco depois, ainda escuro, eu já estava sentado na beira da fonte seca da praça, ainda sentindo o cheiro da testa do meu pai quando o beijei, e pensando que talvez fosse por causa daquela fonte estar seca que você quisesse tanto ver o mar.

Quando eu era menino, essa fonte jorrava dia e noite, nela eu vi água que me bastasse, tomei banho aqui quantas vezes quis, suado de correr atrás da bola ou de ter montado no cabo de vassoura, me empoeirava pela praça e depois caía dentro da água da fonte, abria os braços pra ser atingido pelo máximo de esguichos que conseguisse, e ia arrumando posição, de olhos fechados, deixando os esguichos entrarem por debaixo do meu calção me fazendo cócegas, e me fazendo sentir coisas boas que eu nunca mais senti, nunca mais na vida vi um esguicho depois que essa fonte secou.

Até os vinte anos eu vi água que me bastasse, mas você só nasceu no ano seguinte ao que a fonte foi secando, e já vão mais vinte desde que você nasceu, e nunca mais espirrou um pingo que fosse desta fonte excomungada, e acho que é só por isso que você quer tanto ver o mar, e eu pensava nisso tudo enquanto olhava pra rua de onde você ia surgir e lá pelas tantas você apareceu, essa cabeleira preta e crespa balançando, uma sacolinha de pano sujo na mão com quase nada dentro, vestido azul claro, e de repente eu nunca tive pai, não era desta cidade, nunca tinha mergulhado nesta fonte seca, e só queria dar a mão pra você e sair em direção ao mar, nosso destino, nosso lugar pra viver, e você me perguntou com esse sorriso se eu achava que a cor do seu vestido combinava com o mar e eu disse qualquer coisa, mas achei que ele combinava mesmo era com seus olhos.

Você estava de pé na minha frente e eu estiquei o braço pedindo ajuda pra levantar da beira da fonte, eu não precisava de ajuda mas queria logo pegar na sua mão, se a viagem começasse assim começava bem, mas você virou de costas num pulo e saltitando saiu a caminho do mar, dez passos à minha frente, me deixando de braço esticado, feito o imbecil que eu sou mas não tinha certeza, comecei a ter certeza neste instante, e agarrei a minha sacola, enfiei meus pés pra dentro das sandálias que tinha meio tirado pra descansar os pés antes de os cansar, e saí atrás de você, nem querendo alcançá-la logo só pra poder ficar olhando você de costas, saltitando e jogando a sacolinha pra cima, seu vestido curto subindo ainda mais em cada salto, e depois de apanhar a sacola que caía, ver você me olhar vez ou outra pelo meio desses cabelos pretos com cara de bicho que sorri, e eu atrás de você feito o idiota que sou mesmo.

Já faz dez dias e dez noites que pra mim os minutos se parecem com semanas, já faz dez dias que a gente anda sem parar e dez noites que a gente descansa na beira da estrada, já faz dez dias que eu cansei de tentar convencer você a pedir carona a um desses tantos caminhões que passam, que eu cansei de ouvir esses mesmos caminhões buzinando pras suas pernas sempre que passam, faz quase dez dias que sua boca arrebentou de sol, que seus pés sangram e que você continua bonita do mesmo jeito, por mim basta de querer ir ver o mar, basta desse silêncio, basta de acompanhar você calada, mais calada do que eu mesmo, basta de não ter pegado uma vez sequer em suas mãos, basta de ver você se sentar no chão pra descansar e, mal se senta, já apanha um bocado dessa terra seca e começa a deixá-la cair de uma mão pra outra, e de novo, e de novo, e de novo, como quem pensa em alguma coisa qualquer que não me diz porque eu não ia mesmo entender, por mim basta desse silêncio que me chama de idiota a cada instante.

Amanhã de manhã, quando acordarmos, eu vou dizer que quero voltar, que estou cheio disso, e se você pegar nessa terra e deixar cair de uma mão pra outra, de novo, e de novo, e de novo, eu me levanto e vou pro lado contrário de onde está o mar. Eu me levanto e volto pra casa, pra junto do meu velho pai. Mas não vou sem levar o que vim buscar. Eu mato você se for preciso e pego pra mim o que você tem no meio das pernas. Quero sentir de novo o chafariz da praça. E faço isso olhando firme e pela última vez nos seus olhos azuis, que são tudo o que eu sempre quis, são todo o mar que eu precisei por toda a minha vida desgraçada.

 

 
 
 

 

 

 

PONTA À MESMA PONTA

 

 

No princípio era a minha cidade

Inteira

a feira a praça o coreto

as ruas a terra as calçadas

a igreja a torre da igreja

alta

a torre da igreja

 

 

Um dia chegaram uns homens pra dizer coisas que a gente sabia, que a água ia subir, que a gente ia se mudar lá pra cima, e nem dava pra acreditar que esse riachinho minguado cortava a vila e ia lá pra baixo, riacho abaixo, encher represa.

 

 

Os homens

de branco e chapéus

de cima do coreto

sorriam lá de cima

 

Sorriso

que cantava a morte

sorriso dos homens

 

 

Eu que já era homem feito, trinta anos ou mais, hoje me desfaço de velho, ainda aturo a seca, e dura seca. Água santa aqui não cai do céu, se junta em poça e não é santa. E eu nunca mais ia me esquecer de ver a água subir.

 

 

Do alto do morro da nova cidade

sentado no seco

vi água chegando

Não era rio cheio que vinha

 

Foi como uma poça

que andasse

 

 

Foi do alto do morro da nova cidade que eu vi. Não tinha mais ninguém comigo, ninguém mais viu o que eu vi. Viu depois e até viu mais, mas não viu o que eu vi: saiu uma poça andando de uma rua que chegava na praça, a rua ao lado da igreja, e a poça foi andando. Vinha na frente, como se viesse ver se o resto da água podia vir, procurava por alguém ainda vivo na cidade velha.

 

 

Era cobra

eu vi de cima do morro

Não tirei os olhos dela

enquanto havia cobra

 

 

Eu nunca mais ia me esquecer da água subindo e entrando na cidade devagar, matando tudo sem matar, afogando a vila, subindo hoje só o pouco pra deixar o chão molhado e amanhã quando o sol nasceu, dois palmos d’água escondiam os degraus das casas mas não as escadas da igreja, e depois de amanhã a água entrava pelas portas que o padre tinha deixado abertas, por suas portas de manhã bem cedo, a água tinha só esperado o sol nascer pra entrar na igreja, pra que todo mundo pudesse ver a poça feito cobra entrando em campo santo.

 

 

Não vi a água subir dentro da igreja

não pude ver

ladrilho por ladrilho

ladrilho por ladrilho

o altar

as colunas

os lugares dos santos

um por um

um por um

 

Mas foi como se visse

como se estivesse lá

debaixo d’água

 

 

Eu nunca mais ia me esquecer. Quando vi a poça acabar de cobrir a igreja ela ia longe no horizonte, não era mais poça, era o mar mal encorpado assassino água que não veio de cima santa, água morta que subiu dos baixos do riacho minguado. E vi uma bolha enorme sair de perto da torre, o último bafo uma tosse da igreja e morreu.

 

 

E chorei

 

 

Até ontem eu nunca mais ia me esquecer disso, até ontem que meu neto, sorriso enorme e barulhento meu vô meu vô vem ver o que nasceu da represa seca, meu vô! e eu queria ter morrido antes de meu neto entrar pela casa dentro gritando meu vô, eu sabia que do jeito que ia a seca, acabava nascendo alguma coisa de dentro d’água.

 

Fui em quatro pernas, minhas duas a bengala e meu neto, pra ver o que tinha nascido e vi a torre da igreja saindo do lago baixo, a poça grande nem tão grande, como já não era há tantos anos, eu do mesmo lugar que tinha visto ela afundar me pus em quatro pernas meus joelhos a bengala e meu neto, neto menino que olhava a torre e se ria e olhava pra mim e se ria, e de joelhos pedi pra não ver aquilo de novo e de novo Ele não me atendeu.

 

 

Olhei o sol

e ele não me cegou a memória

E não vi mas soube onde estavam

a feira a praça o coreto

as ruas a terra as calçadas

a igreja a torre da igreja

alta

a torre da igreja

 

Campo santo cemitério

aberto

violado

mortos enterrados n’água

Minha vida de volta pra onde de nunca saiu

 

 

 

 

(imagens ©rosanne olson)

 

 

 

 
 
 
 

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> Entrevista

 

Albano Martins Ribeiro (São Paulo, 1959), escritor e produtor gráfico. É co-autor do livro Dezamores (Escrituras, 2003), autor do espetáculo Quási, escreve para a revista Quarteirão Paulista, e atualmente recolhe contos para publicar mais dois livros. Mantém o Inteligência Ltda. (site de divulgação de literatura independente) e edita o blogue Branco Leone.