ERUPÇÃO

 

O
toque
rarefato, primeiro
feixe sobre a retina

interiores despertos
por signos voláteis

surda infusão
perceber o branco, fragmentá-lo
em faces

sorrateiro e túrgido, um seio
um veio de ouro, um braço
corre feito cavalo insone

libélulas arfam

incongruências, gravar o magma
em imóveis andores,
lapidar os escombros

para que, altaneira,
a folha paire ilesa
e se vista de orvalho

 

 

 

 

 

 

ORIGAMI URBANO

 

 

A cada vinco, mudanças
na química do asfalto

embotar o gris, romper
a lápide que se estende
sob o casco humano

céu de agapanto

conformar-se,
seguir a lógica da nuvem
entrevista na sala de espelhos

nos sulcos dos rostos
trincheiras de ausência
transeunte

busca obstinada, a seiva
nas saliências

e o papel domado se rende
ao pequeno órfão, canto
dobrado

celebrar a estatuária
em diminuta escala,

celulótico

poema

 

 

 

 

 

 

AYAHUASCA

Entre Totomoxtle e Coatzintlali,
tombou um cacto
eletrônico

Coiotes passam dis-
simulados, uivando
cóleras
descrevem órbitas
os olhos vidrados
do apache

Escavar rugosidades
no corpo inerte
labirintos traçados
com artifício, des-
sangrar o mártir
expor o cerne, extrair
a víscera

a palavra
-hóstia-
ingerí-la

e ver
os vermelhos

Más allá

de todo o sentido
de toda a forma

 

 

 

OFÉLIA RELOADED

 

Senhora
dona de mim,
não reparta
o cristal escarlate

iguanas se formam
em meus bolsos,

lodo no copo,
flor esgarçada
no sexo

retira a jóia
torpe,
subverte

o vate

vela,
lâmpadas cáusticas
vertem fogos
fátuos,

descasca-lhe o frio
dorso,
incrusta um nome
às avessas

verbo,

seda luxuriante
que dilacera,


o corpo inerte,
mortalha silente,

olhar os próprios olhos,
enquanto tomba
a cabeça
e desaprender a dor
num instante,

essa voluptuária
serpente

de jaspe

 

 

 
 

 

SIMETRIA

 

Leve folha toca o solo

Intento homólogo. Do céu,
icto raio ilumina o branco,
estrai uma labareda, risca
uma chama incontroversa

Forjar o signo
isteiro no cálice

Leve folha toca o solo
e o dizer destilado escorre
do relicário

Língua,
frágil elo

entre nave e pássaro.

 

 

 

 

 

 

OYÁ


Menina afogueada fruta verde
virada na ponta do casco
brasa que anima o toque
ventania da savana
fagulha ligeira que esparrama

É parreira alada, é Matamba
folha rebelde de Aruanda

 

 

 

ODÉ WAWÁ

O templo tomba no cotovelo atado
do azulão que atroa frente à falange
jarro oleado
repositório de Caiabi
único pássaro branco que volteia pés firmes no chão
antítese do equilíbrio entre tons de breu e alume

no caminho apiloado de nuvens
navalhas e o sabor agridoce de primavera.

 

 

 

FATUMBI

(a Pierre Verger)

Um vê púbico prenuncia viagem
de quem olhos rasos gesta
a idéia de renomear pedras
ifás estendem as mãos
formam caminhos dois solos
com ondas extremas.

Fatumbi, relâmpago do liame
entre o ontem e o sempre
apura os sentidos estrela guia
de Ori desata os últimos nós
enquanto o povo verga
e bolam os deuses.

 

 

 

 

 

 

TORNEIRA

 

 

t

ris

tris

te tris

tris te tris

tris te tris tris

te tris tris te tris

tris te tris tris te

tris tris te tris

tris te

 

(SE²D)

 

 

 

 

 

 

STOP MOTION


Toda vez que o mar recua
algo de inocente se perde,

a longa estação embaralhando

discursos urbanos

duas pedras de gelo

duas doses de gim
uma tempestade

Antes não era assim,
Ofélia ofegava glamour rosa
frágil feto afogado em seu tubo
de ensaio (ab) sinto

e um príncipe de saias
caçava incólume na Cornualha
cabeça a prêmio
galhada pregada na parede do palácio
olhos esbugalhados ostentando

a glória taxidermista

-
Stop-motion-


só o mar avança (em flashes)
e o dedo que desliza prestidigitadora
mente no gatilho

 

 

 

 

 

 

TAUROMAQUIA

 

No oco da boca

paira um segredo mal guardado,

embotado pela fêmea

que o habita.

 

Vórtice semi-cerrado de dentes e lábios,

magna fenda

de um universo a ser tragado,

deglutido

e novamente soerguido,

 

a boca regurgita.

 

Mas a quem caberá o jorro do abate?

Quem vai preparar a ceia do ocaso?

 

No oco da boca

crescem flores de fogo,

mas no fundo do olho

permanece a menina

 

alheia

e em chamas,         

                      uma menina que grita.

 

 

 

 

 

 

PIETÀ PAGÃ

 

 

Le petit fils me confidencia:

— Vou cortar o cabelo.

Indignada, esbocei comparações esdrúxulas

como uma pálida Dalila.

Ele riu.

Argumentei que não o fizesse:

— Por mim!

(a defensora de belas melenas e

reminiscências pueris)

Ele, resoluto.

Era um menino lindo, de grandes olhos negros,

buscando sua essência viril.

Ouvia ópera e fumava um tanto blasé.

Se pudesse, embalaria-o em meu colo,

essa pequena criança

que não temia o escuro.

 

 

 

(imagens ©pamela gladding) 

 

 

 

 

 

 

Ana Ramiro (São Paulo-SP, 1972). Autora de Menina-Poesia (Editora Blocos, 1999) e Desejos de Gaia (no prelo). Participou de antologias e tem artigos, poemas e traduções publicadas em revistas como Zunái, Critério e Cronópios. Traduziu Alejandra Pizarnik, Elizabeth Azcona, entre outros. Edita o blogue Folhas de Girapemba. Vive em Brasília-DF.