museu primitivo do homem

 

um coração mumificado. a boca

recentemente restaurada. um grito

conservado no tubo de vidro. basta

girar duas vezes a manivela, ele se

libera. a menina curiosa, toc-toc. na

tentativa de ser discreta. amarra o

passo. hic-hic. risca o chão com as

solas. nada aqui é tão atraente quanto

o som de seus sapatos. no peito pula

uma ausência, no rosto a mudez fala.

a menina veio buscar o susto. saiu

com os olhos escuros, roubados do

ostensório de prata

 

 

 

 

 

 

musa

 

fantasma do texto boca da palavra sexo de mulher que fala

serpente que engole a própria cauda

e no branco espalha o gozo

lágrima da tara

 

 

 

 

 

 

*

 

leito de pedra

ou musgo — nada é macio do outro lado

corolas de papel rabiscos de criança

comovem o insone

que atravessa milharais e invade casas

a procura do que

dedos do amor

cravaram no ar

como cifra

 

 

 

 

 

 

paixão

 

anêmica drenou

meu rubor

deixou minha boca

 

branca

arrítmica

 

projetou flores

adoeceu raízes

 

salvou versos

envelheceu artérias

 

tocou uma nota

desafinou teclas

 

encomendou

ex-votos sugou

rezas

 

encarcerou

no alvo

estas setas

 

 

 

 

 

 

no meio

 

penso a idade média como corporeidade pura — dentes podres corpos mastigados alumbramentos do sexo — quanto mais sublimados os gestos; santos descalços anjos toscos cabelos não-lavados e o pecado como sombra

em procissão ao suplício dos honestos

 

 

 

 

 

 

poças, nuvens, arcos

 

sol pálido deflorando

árvores, a fertilidade

é também violência

fêmeas bicando-se

e o fio de sangue

irá separar

a mais fraca

da continuidade

 

 

 

 

 

 

uma poética

 

deixem quieta a velha

lúcida

ocupada com seus trastes como todos

esperando o tempo que resta passar

 

ela já abandonou os sonhos de grandeza

e só conserva a bengala de jade

para ameaçar a janela — esquadrias carcomidas vidros encardidos

mais que moldura

perspectiva descarnada do quadro

descaso com a vida lá fora

quando no próprio quarto arrasta-se o caminhar

 

 

 

 

 

 

quarto 415

 

deixar de ouvir aquela música

seria como nascer — ter de enfrentar

um ambiente estéril sem qualquer defesa

inevitabilidade em botão, o primeiro tapa

banhos de luz averiguações

 

seria possível escalar outro caminho

o homem de branco me daria opções

ou melhor ter dado duas voltas

no pescoço com o cordão

 

 

 

 

 

 

copacabana

 

a moça empurra um resto

na calçada

sacos de lixo

cachorro com sarna

em frente ao prédio

é o ar fresco

que vinha buscar

o velho

não sua doença

terminal revigorada

 

 

 

 

 

 

*

 

instante anzol turquesa

umidade exacerbada

o caroço se expande no ventre da cereja

 

até ontem fomos

errantes amealhamos foices

a ceifeira, no entanto, segue

em seus cantos

e nos libera — armadas

tendas e redes — para um

provisório descanso

 

 

 

 

 

 

república dos sonhos

 

lambendo um sexo como sorvete, onde você pensa que vai, jovem louro com a perversidade da menina que balança os cachos para roubar? não nos siga, lúbrico leitor, vamos penetrar na selva dos banheiros públicos e nos apoiar em latrinas, vamos sair daqui com a dignidade nos saltos e um ramalhete de pesadelos para sonhar

 

 

 

 

 

 

dramaldade

 

a unha quase perfurando o lábio numa situação corriqueira, é o fim da linha, o corpo anestesiado e triste inveja taras pueris, seria fácil desejar tenras meninas, elas depois poderiam reiniciar suas atividades, revigoradas, nenhum dano permanente. 24 pernas, velhas gordas, cachorros viciados, fácil lidar com a repugnância dos próprios segredos, ou ainda, chupar ossos, cozinhar veias, apaixonar-se por um coração morto. fácil enforcar-se até o desmaio, viagem dentro da morte temporária. impossível acordar para meu teatro, palco da perversão inexorável — eu só queria sentir alguma coisa enquanto espero um deus ex-machina para ressuscitar pobres-diabos que minha personagem tem aniquilado.

 

 

 

 

(imagens ©andrzej jobczyk)

 

 

 
 
 

 

Andréa Catrópa nasceu em São Paulo, em 1974. É doutoranda em Teoria Literária e coordenou a série de programas de rádio Ondas Literárias. Integra as coletâneas de poesia Antologia da poesia brasileira do início do terceiro milênio (6 dias, 6 noites, 2008), 8 femmes (2007), Vacamarela — 17 poetas brasileiros do XXI (2007) e publicou Mergulho às avessas (Lumme, 2008).