Tempo de Guerra
 
Pega meu corpo de boneca
inflável
— língua nos meus dedos devagar.
      Aproveita que não éramos
      uma Penélope recalcada
      que perdeu seu homem pra
      uma feiticeira.
      Nós éramos a feiticeira.
 
Pega meu corpo de boneca
inflável
— palavrões nos meus ouvidos.
      Queríamos ser a
      Maria Magdalena
      pra ter a certeza
      que conseguiríamos corromper
      o cristo.
      Nós éramos a prostituta.
 
Pega meu corpo de boneca
inflável
e me acaricia na nuca,
que eu não era uma
Camélia prostrada
    e a Branca de Neve
    que conhecemos era só
    mais um vírus na internet.
    Nós éramos a maçã.
 
Pega meu corpo de boneca
inflável
— me morde nas coxas.
Que eu não tinha as neuras
de Mrs. Dalloway
    nosso dia nos possuía em 52h e
    e no nosso cardápio
    não entrava baratas.
    Nós éramos as donas da casa.
 
Pega meu corpo de boneca
inflável
— me espanca, faz o que quiser.
Pois há muito estupraram o amor
e não havia nada
que sobrevivesse à cama,
    nosso front, nossa trincheira,
    com estratégias jamais reveladas
    em revistas femininas.
 
Pega meu corpo de boneca
inflável
que não era hora de se pensar.
A cama
o transe
e o nada.
sucumbido ali no meu corpo:
um homem
como muitos outros homens.
 
E se por acaso você não me obedecesse
e me largasse sozinha por aí,
encontraria um outro dia
o sorriso sensual
da soberba indiferença,
que sacode os ombros e
dá as costas decotadas no
passo afirmado do salto.
    Nós éramos Walkírias.
    éramos guerreiras
    nós éramos as Walkírias.
 
 
 

Lugar Comum 14: Madrugada
 
teus desejos longe dos meus
gelo e vodka mexidos por entre os dedos
calçadas curvas
 
queimam mendigos,
acontecimentos estranhos nessa cidade,
Jokerman, Jokerman,
Você continua a rir alto demais
 
 
 

Lugar Comum 7: A Sociedade Civil
 
A cada segundo
comem uma criança negra
com mostarda de febre amarela
A cada segundo
Comem um campo de futebol da floresta verde
com molho vermelho de barro
A cada segundo
A cada segundo
A cada segundo
 
E aquela reunião não acabava nunca... tinha vontade é de comer pipocas.
 
 
 
 
 
Anoréxicas
 
Emagrecer,
extirpar a última gordura,
devolver as costelas emprestadas
e desintegrar-se em luz.
 
 
 

A Flor Roxa
 
Subitamente desabrochou tatuada no meu seio esquerdo
Essa daí deve gostar da noite
 
 
 

Teimosia
 
profundidade na sombra de um azul cintilante,
disciplina nos 3,7 cm de delineador,
mas gostam mesmo de mim borrada pelas manhãs.
 
 
 

Lugar Comum 10: Salomé
 
E ela dança.
 
Seus guizos ainda molhados,
olhos de cocaína e peito
arfando. E ela brada:
— Tragam-me a cabeça de João Baptista!
 
Trouxeram-lhe na bandeja de prata, os cabelos de mendigo escorriam na palidez arroxeada dos anjos decepados.
 
Anticlímax e luzes brancas no palco. Algum expectador tossiu, sacos de pipoca.
E por não haver palavras suficientes, inventou-se o beijo:
 
Cravo com ódio os lábios naquela boca de impropérios.
 
E ela suga — os lábios duros com o resto da última saliva,
a língua do morto solta como pedra forrada de veludo.
Ela acaba e olha ao redor.
 
Salomé em luz, com o vestido branco pela lua falsa, com a cabeça horrenda a escorrer pela mão.
E por não haver palavras suficientes, os aplausos vieram:
 
No início a balir como rebanho lerdo, depois exultantes, o exército de mãos brancas, ante a plasticidade romântica da cena.
 
E ela dança.
 

 

 

Entorpecentes

dos vagabundos aos homens de terno
todos agarram
essa solidão macia na rota de suas quedas.

 


Minha nossa senhora das flores

gosto que assim:
 
que me leiam por inteira
com toda essa metalingüística sacana no canto da boca

 


Corte

tenho uma navalha no meio das pernas.
quer ver?
assim você poderá sentir melhor,

já que eu cegarei
esse teus dois olhos
que nunca serviram para nada.

 


Lugares que não conheço

Geografia 1: nas ruas de luanda

há rosas frescas
maquiadas com o pó das folhas da floresta do Maiombe

pés descalços, cansaço e pés calçados

muitos tempos
em todos os dias


Geografia 2: no cais de Benguela

o sol beija o mar em outra hora
e as costas são mais negras

mas a televisão e os travestis
continuam com o mesmo nosso sorriso de puta velha


Geografia 3: nos campos de Huambo

há sempre soldados incansáveis como pedras
que nos lembra que é preciso ter cuidado ao arar a terra

senão engulo tuas pernas

 


Lugar Comum 21: O Dogma

Moramos em um país de futuro.

A letra de nossa bandeira
silencia,
como um trem fora de moda,
qualquer conversa de bar sobre os tiros que ouvi ontem à noite.

 

 

(imagens ©antoni tàpies)

 

Ana Rüsche, 1979, paulistana, advogada. Foi presidente da Academia de Letras da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) no ano 2000, cursa o 3° ano da Faculdade de Letras da FFLCH-USP, pesquisadora do Grupo SADI (Semiótica e Análise do Discurso) e agora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Em 2005, publicou o livro de poemas Rasgada, edição da autora. Publicada na Revista Phoenix (1998, 2000 e 2004), na Revista Metamorfose nº 2, no "O Casulo", Jornal de Literatura Brasileira, e em diversos sites. O seu: www.AnaR.com.br