chicote lírico

lírico é o chicote
quando fisga um poema
num dorso feminino

 

 

chicote lírico

lírico es el chicote
cuando fisga un poema
en un dorso femenino

 

(Tradução Reynaldo Jiménez)

 

a mulher do armário
 
aniquiladas:
ela e as traças
o filamento filiforme
é cabelo
 
en
canto de gaveta
 
oco

o apelido do fungo
é mofo

no abolorecimento
do cabide
 
dum mundo pequeno
e estranhamento
profundo

 


no desamparo

o segredo escrito
por caranguejo
albino
 
a encosta
cala nas costas
da onda rosa
ou dum cavalo-marinho
 
um beijo a mais
rumo ao oceano
ou o consolo
das piscinas termais
 
buscar o porto
no alto do morro
ou no útero da mãe
que não encontra

 


a marquise

a sua intimidade com o javali era enganosa. a intocabilidade do rosto envolto por pêlos brancos e negros. a parada. as patas fleumáticas em suas mãos. a distância celomática. a delicadeza a retirar. os ossos. o afastar dos afagos. o ócio. temia-lhe o peso mascavo.
a marquise.
temia-se em sua indocilidade carnívora de víbora. o difuso desejo. aninhá-lo no calor das entranhas. suas entranhas de óbito verdadeiro.

 


insana

a despeito da cegueira gigantesca e tosca talvez,
uma alucinação insípida naquela linguagem. a mais pura liturgia ante o surto.
mais uma
vez.
esvaindo-se em viés de sal e sentimento.
o fim em toque polifônico.

 


lutra-lutra


um dos caminhos era aquele: aquático. respirava distante e diante da sua pelagem espessa, brilhante e uniformemente castanha, com exceção da região do ventre. dEle o corpo, a cabeça e os olhos pequenos, movia-se leme a longa cauda, afilada na ponta, quase espada. indecisa a presença dEla. enquanto mergulhava submersa em seu interior, o impulso das patas. dEle sentia o movimento sinuoso do corpo. continha. aquela uma lontrafagia poética de peixe-anfíbio, reptílica ave. ética lírica. seus sistemas de galerias, suas entradas de zonas rochosas, suas entranhas, umas subaquáticas e outras ao nível do solo.

 

 

scorpione
 
a andarilha do deserto negro abandonava, algumas vezes, os seus olhos lagartos ao respirar a essência daquelas sílabas. a gramática monossilábica daquele pensamento escorpião de palpos compridos, demasiado horrendo e paralisante, demorava-se em sua mente. mergulhada nas águas profundas de pedras marsupiais, capturava a luz dum escuro oco de proteção. os seus sonhos prematuros estavam quase liquefeitos. vagava pela noite, quando um soluço escapou de seus lábios de atmosfera e pétalas trituradas. com suas cascas em ecdise atravessou mais uma porta de fechar atrás de si. e foi então que ele, cheio de coragem, levantou-se ofídico, Asclépio, à margem daquelas águas.

 


cão cérbero
 
antolhos. cão cérbero guardião das portas do inferno. estrangulá-lo. hera. belamente leão de neméia. esmagar os pés de bronze do antropóide. acomodá-lo nas entranhas dilaceradas da corça. voar... dentro da cabeça da égua alada. um destino no bico da ave antropófaga. as larvas mentais. do caos os miolos da sombra. sugar o monstro antropocêntrico dum poeta. mas o touro lança a chama violeta pelas narinas num umbigo. lírico.

 


entre papagaios de papel e borboletas esvoaçantes.
 
por um instante, os radares em miniaturas colidem. ziguezagues.
os olhos, os lábios. a voz um templo aquoso.
estar ali, em becos incertos, entre o concreto.
seios ou castelos?
uma situação intranqüila paira teleférica.
ela pede o café entre papagaios de papel e borboletas esvoaçantes.
ele está em paris.
acolhe a vida. um lugar (talvez) pacífico.

 


neméia
 
invulnerável leão de neméia ferido por uma flecha
de sangue. encurralado em seu próprio antro. matá-lo.
e comer toda carne crua. vestir-lhe a pele nua desenhando uma poesia ditirâmbica, tragédia, comédia em dionísia urbana.
livre. abraçar a divindade masculina. esguia. gerar o seu filho e
abandoná-lo. agora.

cavalgar um dorso num campo de trigo, onde as espigas não se curvem.

 

 
 
 
Adriana Zapparoli participou de antologias poéticas no período de 2002 a 2005. Colabora com o JP de Soares Feitosa. Escreveu o e-book de poesia: Erótica. Mais em seu blogue Zênite e no Jornal de Poesia.