RIOBALDO & RIMBAUD

 

— Sou um rio.

— Eu, um barco.

— E quem escreve?

— A mão que empunha o arco.

— Sou a água.

— Não posso bebê-la.

— Capinar sozinho, debulhar estrelas...

    Onde estiveste, depois que escreveste?

— Nas maresias, nas maresias...

    Ah, se eu pudesse mesmo gostar de Diadorim, o sorriso

    dele me dobrava como uma curva de rio, agora sei porque

    te chamas Rio... o Do-Chico...

— Êpa, o meu Diadorim é meu.

— Não é, é a tua neblina.

— Já sei, não recitar em francês é um crime:

    Par délicatesse

    J'ai perdu ma vie.

— Compadre, a gente viemos do inferno, duns lugares

     inferiores, deixe os  leitores... foi nessas veredas

     que Diadorim morreu.

— É, deixe de pacto, vamos vender as nossas armas.

— Antes, quero os cabelos de Diadorim.

— Tome esta tesoura de prata e esta caneta, escreva...

— Diadorim não morreu, virou o meu sol...

 

 

 

 

 

DEPOIS DO TROVÃO

 

Ich hör' es sogar im Traum.

 Heine

 

Depois do trovão o que haveria de falar?

Tudo se encolhe por defesa

Até o medo ensina a voar:

O pássaro que não sabia da asa.

e a água que treme sem sair do lugar.

 

Geme o trovão, soa o tambor

no céu rola a dor de um poder

que não se pode ver.

Para o grito que vem da altura

Mãos nos ouvidos, e mais fundo é o sentir.

Convence-me da solidão de um Deus

Que, do alto, se lamenta

porque de baixo

ninguém Lhe quer ouvir.

 

 

 

 

 

SEPARANDO DE TI AS MINHAS FOLHAS

 

Separando de ti as minhas folhas e tuas estrelas

o poema abrigava a primeira asa e eras o meu pensamento

até as palavras foram imperfeitas

para que nelas habitassem um coração

 

Aqui, todos te saúdam.

 

 

 

 

 

SORO POSITIVO

 

A metáfora mata como uma sentença,

Apenas um sinal, positivo.

Tudo está ante um resultado

Essa contínua ameaça

De termos dois caminhos

E de não querermos nenhum.

Duas dezenas de vírus cuja

Função é se reproduzir.

Mutar: matar e novamente mutar.

Nunca a morte foi uma humilhação.

Há algo de errado no arbítrio do sexo

Que nos quer intenso

e com a AIDS nos quer matar.

 

 

 

 

 

ACEITE ESTAS ASAS NO TEU CORAÇÃO

 

Aceite estas asas em teu coração antes que Tróia resista em vão e o poema não se abra da barriga do cavalo e da espada que a noite precisa ocultar no ventre. Aceite as gaivotas e os carrosséis com cavalinhos nascidos da espuma daquele mar que demoraste a olhar. Para as tuas mãos tudo falta levantar o vôo. Aceite minhas credenciais de um reino distante, cujo caminho é a estrada que se alonga na estrada. Queira me dar razão, por favor, pois esta loucura ainda se chamará poesia, basta acreditar na ilusão. É assim que se conquista um grande amor. Ainda há tempo de salvar a humanidade. A tristeza que te olhou do fundo do prato encheu-me de uma fome que nunca senti e na alma soou o tambor do coração. Pelo menos sabes que existe o país dos desesperados.

Aceite estas asas no teu coração como parte do meu abandono sagrado.

 

 

 

 

 

QUANDO EU DISSE NA FRONTEIRA

 

Para o meu velho Whitman

 

Quando eu disse na fronteira que era brasileiro, não me envergonhei das perguntas que me fizeram e nem tive medo do preconceito de me verem melhor do que eles. Tive até a audácia de responder na língua deles que todos nós somos estrangeiros e que eu estava a caminho do que era meu, e do que sempre me esperou do outro lado da fronteira.

 

 

 

 

 

LIÇÕES DO HÁBITO

 

Só se aprende o que se sabe

Só se enxerga o que foi visto

Só se toca o que foi tocado

Só se diz o que foi dito

 

Só se ama o que foi amado

Só se prova o que foi provado

Só se beija o que foi beijado

Só se encontra o que foi perdido

 

 

 

 

 

DÁ-ME O TEU SEGREDO

que é o meu medo

a tua alegria

 

Dá-me o teu silêncio

que eu te revelo

uma palavra

 

Dá-me o teu corpo

que eu te seguirei

em tua sombra

 

 

 

 

 

QUANDO

 

Quando, se por acaso te tocar a palavra

que me escapou do poema

não te insinues —

que é a minha procura.

 

Quando, se em sonho,

Faltar-te a paisagem

do pouso e da memória,

lembres que está

na minha solidão

tudo o que antes te pertencia.

 

 

 

 

 

É O VENENO QUE DÁ A VIDA

 

Was bleibet aber, stiften die Dichter.

      HÖLDERLIN

 

É o veneno que dá a vida

É o abismo que dá as asas

É o medo que dá a crença

É a crença que dá o viço.

 

É a morte que dá a vida

É a vida que dá a obra.

É a realidade que dá a verdade

É a verdade que dá conta disso.

 

É a palavra que dá o mundo

É o homem que se adianta

É o poema que dá o troco

 

É a poesia o que aviva

É a palavra que dá e tira

É a poesia o que fica.

 

 

 

 

 

PLATERO E ROCINANTE

 

  O que levas, Rocinante, um homem ou um sonhador?

— Não sei. Sei que ele é como eu sou. Melancólico e triste, e me diz que é o meu senhor. Eles dizem que são amigos como eu de Ruço sou. Talvez um pouco de amizade possa ser bom. Temos em comum a amizade, o que é um belo tema para um poema e para a vida.

— E tu, Platero porque és palrador?

— É verdade, conversamos enquanto comemos e nossos amos nem percebem o que dizemos.

— Se soubessem, nos matariam, pois só rimos e rimos dessas ridículas criaturas. Por isso evitamos a palavra. Não há nada mais doido do que querer dizer as coisas por meio desses grunhidos e desenhos.

  Até Sancho é louco ao aceitar a Baratária ilha.

— Tanta loucura para tão pouca criatura.

— Enfim, a obra é melhor que a vida.

— Sem dúvida, e o caminho está entre a razão e a loucura.

 

 

 

 

 

GUARDA TEU CORAÇÃO

 

Guarda o teu coração,

Não o reveles a ninguém,

Pois, se o revelares

Já não mais será teu.

 

O coração é um segredo,

Onde o medo ou o desejo

Se abrem ou se fecham

Como desejo ou como medo.

 

O seu único defeito

É não acatar a razão,

a razão que ao coração

não sabe dizer não.

 

Guarda o teu coração

Aqui, perto do meu.

 
 

 

 

 

(imagem ©cal state california history collection: ajax)

 

 

 

 

 

 

 

Benilton Cruz. Poeta e professor de literatura da UFPA. Publicou Aurora que vence os tigres (Belém: Edições Rumo, 1996), O livro da Malta de Poetas Folhas & Ervas (Belém: Edições Rumo, 1999), Antologia do Grão-Pará (Rio de Janeiro: Graphia, 2001) e LUZ — Antologia da Malta de Poetas Folhas & Ervas (Belém: Paka- Tatu, 2004).