O MEU AMOR GOSTA DE FLORES

 

O meu amor gosta de flores,

segura uma flor do campo na mão

como fosse uma princesa

e gosta do mar.

 

O meu amor gosta tanto do mar

e, às vezes, com a flor ainda nas mãos,

seus olhos mergulham no horizonte

- é quando estremeço -

temo que não volte,

fique presa entre os corais.

 

 

 

 

 

 

ANTES DE INVENTAREM A LOUCURA

 

Antes de inventarem a loucura,

ela já era louca,

mas esperou você chegar

para sentir amor pela primeira vez.

 

Quando as flores eram gérmenes

da imaginação de algum gnomo encarcerado,

ela o esperava pra sentir isso por você.

 

Antes de um mundo tão certo,

esse do mesmo molde de seu paletó,

havia outros onde se inventavam castelos

e ela fez o de torres mais altas,

enfeitou com açucenas e estrelas

e esperou tão intensa por você,

mas você era de vidro.

 

 

 

 

 

 

QUANTAS CONCHAS AINDA CABEM NA TUA MÃO

 

Quantas conchas ainda cabem na tua mão

para você parar de ajuntá-las

e prestar mais atenção

que eu te sigo na praia?

 

Datam longe meus rastros na areia

- a mesma idade da tua distração -

e se teu caso são conchas vazias

(eu sem você)

porque não colecionas

a concha que é meu coração?

 

 

 

 

 

 

MINHA PORTA DE TANTO FICAR ABERTA

 

Minha porta de tanto

ficar aberta

não mais dá para ser fechada

 

e por ela entram todos

os seres das tardes

e os espectros da madrugada

 

só não entra aquela a quem um dia

dei as chaves

 

 

 

 

 

 

BUSCAR O SENTIDO NUMA FOTOGRAFIA

 

Buscar o sentido numa fotografia

ou numa estrela que caiu no mar,

é como sair, procurar e voltar sem nada.

 

Tem as pedras, ventos, mil coisas.

O sentido está aí.

 

Mas você é diferente

- alma gêmea da fantasia -

mergulhou no mar

e, da tal estrela cadente,

trouxe uma fotografia.

 

 

 
 
 

QUEM ME DERA PRENDER A TARDE PELAS ASAS

 

Quem me dera prender a tarde pelas asas

e conservá-la profundamente em éter

ou no álcool dentro de um copo.

 

Guardá-la sempre e proteger o azul

fundo das antenas cristalizadas.

 

Olhar de repente

e lá na estante

uma tarde inteira guardada.

 

 

 

 

 

 

O CENTRO DO UNIVERSO ERA MINHA CASA

 

O centro do universo era minha casa

e o átomo menor

era o botão de osso da minha

camisa azul.

 

Havia menor ainda,

dois furinhos do meu botão:

eu entrava por um

e saía por outro.

 

Certa vez, ao entrar numa dessas cavidades,

eu encontrei o meu umbigo.

Só não descobri

o quanto eu deixei de viver.

 

 

 

 

 

 

UMA SENHORA NO PONTO DE ÔNIBUS

 

Uma senhora no ponto de ônibus,

com ânsia de informação,

indagará acerca das minhas olheiras.

 

Eu que às vezes me aterrorizo

com meu sumir no espaço,

deixando na história dos homens apenas minhas

olheiras (como síntese do que foi minha vida)

lembrarei de Mabel,

uma princesa impregnada de sol...

 

E direi a essa senhora:

- Eu nasci com elas. Sou apenas isso.

 

 

 

 

 

 

IVO TINHA UMA CAMPINA DE CRAVOS

 

Ivo tinha uma campina de cravos

na cara.

Tinha época que aquilo se dilatava

arroxeava

e eram mais crisântemos.

 

Ivo nunca ganhou uma rosa

e muita coisa que sentia

nunca floresceu para o mundo.

Tudo ficou à flor da pele.

 

 

 

 

 

 

EU QUERIA SER TRISTE COMO O MAR

 

Eu queria ser triste como o mar

e não ser triste assim

porque a minha tristeza

nasce de uma dor vulgar

 

E a tristeza do mar é diferente:

ele só é triste

porque se compadece de mim

 

 

 

 

 

 

UM ENORME ICEBERG

 

Um enorme iceberg

dentro do meu copo de cuba

gelava a parte da Coca

esquentava a parte da pinga.

 

Bebi o cuba

não vi o bloco de gelo na minha rota

e naufraguei no sofá da sala.

 

 

 

 

 

 

AQUELA MANCHA VERMELHA NA PAREDE

 

Aquela mancha vermelha

na parede

não é marca de nenhum

ato de violência - sangue

nem correspondente a molho

de tomate.

 

É a projeção de um pensamento

novo com Campari.

 

 

 

 

 

 

NÃO MAIS LAVAR AS MÃOS

 

 

Não mais lavar as mãos

e deixar crescer lagartos

debaixo das unhas.

 

Não lavar a boca

e sobre a língua procriar

javalis do mato.

 

Não mais higienizar o espírito

e ficar na frente de casa

tomando sol pelo resto da vida.

 

 

 

 

 

 

O AMOR

 

Amo os seus beiços roxos e toda a sua espinha dorsal.

Amo a sua goela e a sua boca com gosto de tudo e seus dentes.

Amo seus dedos (apesar de seus anéis serem indiferentes)

e as unhas, meu bom Jesus, corno eu amo as suas unhas!

Amo os seus pêlos pelo o que há de mais sagrado.

Amo demais que fico com remorsos, com medo que esse amor

seja tara ou qualquer coisa degenerada e vá contra

a natureza humana.

 

Amo seus cabelos e toda cartilagem do seu nariz,

o pé, o umbigo, a nuca. Amo também todas as coisas

que tens por dentro: assim o fígado,

rins - essas coisas -, o coração.

 

Deveria tê-la conhecido em vida

e não nesse necrotério

 

 

 

 

 

UM DIA QUANDO NOS CANSAMOS

 

Um dia quando nos cansamos

de tanto ler sonetos parnasianos,

escutar aquela Joplin,

nos asfixiar em incensos "Krishna",

você expôs maliciosamente seus pentelhos

e eu fiquei queimando com vontade

de esfregar a rola em você.

 

Hoje não sobrou uma página dos livros

ou faixa dos long-plays

que não estejam engomados com

nossa porra.

 

Quem manda!

 

 

 

 

 

 

QUANDO TEREZINHA MORREU

 

Quando Teresinha morreu, sobre seu pequeno caixão,

dentro da sepultura, todos atiravam-lhe flores.

 

Atiravam-lhe muitas flores de tantas cores, tantas pétalas, flores:

rosas, dálias, muitas pétalas de dálias e outras flores perfumosas.

 

E flores e flores tantas flores, pétalas, sobre a pequena

Teresinha. Cravos crisântemos, até flores de amargosa.

 

E ela permaneceu serena naquele mundéu de flores.

Logo ela que não gostava de flores.

Sempre tão grossa!

 

 

 

 

 

 

O MAR DE ZIMBROS

 

O mar de Zimbros

é lindo

 

Eu mesmo que sou demais

tristaído

amei cada onda que chegava

à praia

 

Eu que sou mais triste

parecia que eu é que tinha

inventado esse mar

 

Eu que só fiquei olhando

porque não sei nadar

 

 

 

 

 

 

QUANDO SOUBE QUE ELE PARTIU

 

Quando soube que ele partiu

a primeira coisa ela desmanchou o penteado

 

desalinhou a mente jogou os brincos fora

 

nua correu lânguida desvairada pela rua

empalou-se num hidrante

 

 

 

 

 

 

A PRIMEIRA VEZ QUE TE VI

 

A primeira vez que te vi

estavas atrás do balcão

e já na primeira vez

eu te via pela metade.

 

Depois não mais te cruzei.

 

Pensei, e já era meio tarde.

E de tudo, por fim,

restou essa estranha meia saudade.

 

 

 

 

 

 

EXERCITO A MINHA SINA

ADIANDO OS COMPROMISSOS

 

Exercito a minha sina adiando os compromissos.

 

Dou sumiço em certas responsabilidades,

engaveto problemas e fico horas sem tempo para nada.

 

A vida é um anzol, vivo com água na boca.

 

(imagens ©trinka)

 
 
 
 
 
 
 
Bento Nascimento (Itajaí-SC, 1962-1993) Um dos mais importantes poetas catarinenses. Entre suas obras devem ser citadas Os loucos de pedra e Bento Nascimento - aos vivos.