Mãos de abrir nuvens

 

Ter mãos de abrir nuvens

Romper o velcro de baunilha

E espiar

Dentro a catedral

Dos sonhos

Um rito de encanto

Crianças e lagos

E mapas emaranhados

A Sexta Avenida

deságua no Eufrates

E as barcas cruzam

De Bagdad ao Mojave

As mãos se enlaçam

Negras brancas

Amarelas azuis.

 

Ter mãos de abrir nuvens

Descobrir a alma de neve

E perfumes

Que se fazem

Pássaros

Camelos

Bailarinas.

 

Quem possui mãos de abrir nuvens?

Quem rega pedras

E pesca pássaros

Em tempestades

E ancora no alto

Da montanha mais alta

Suas caravelas.

 

Quiçá Penélope,

Sem manto, grilhões, espera.

A abrir nuvens

Além da torre de concreto

Em pleno azul

Entre a brancura espumada.

Mãos de mulher livre

A abrir o velcro

Da humanidade encantada.

 

 

 

 

 

 

Pulmão de Deus

 

Sussurro suave ao redor, nuvem

de seda embalando astros.

Aqui, onde respira a vida,

 

perfume de malva, silêncio de córrego

entre pedras. Ar lúcido de luz.

 

 

 

 

 

 

 

Sopro de Deus

 

Sigo distraído e breve — piedade na alma,

opulência no calabouço.

 

Sigo sereno, neblina me abraça.

Meu corpo um jarro de esperanças.

 

O amor — única navalha que me corta.

Aprendi que somos sopros de Deus — instantes.

 

 

 

 

 

 

Deus sorrindo na varanda

 

O quintal de Deus é o céu.

Um paraíso em uma ilha.

Alcançaremos quando formos náufragos.

 

Aguaçal encoberto de dor,

nascituro rompendo em harmonia

 

a eternidade — Deus sorrindo na varanda.

 

 

 

 

 

 

Violetas brancas

 

Sigo teus passos, feito asteca, sonhando

a terra eterna e rica — tua pele.

Pele de diários, onde leio a lua.

A maré suave que me enlaça nua,

 

écharpe de brisa e aurora, corais gris.

Adeus soledade de pedra. Paloma triste

em vôo riste, ao longe.

O deus-do-sol-do-meio-dia, colibri azul

 

da era atômica, é um sopro de luz e sons.

Sonhos delineados na tela fria.

O mundo sangra e transforma a garça

 

em íbis rubro. Leio um salmo antigo,

acordo em manhãs violetas. Tenho por companhia

um pequeno vaso de violetas brancas.

 

 

 

 

 

 

Tábula rasa

 

As portas da cidade branca.

Abertas, par-em-par.

Meu espírito, tabula rasa.

 

Antes da data no tempo gravada,

Para alcançar a sacrossanta cidade.

Sigo beijando vermes,

Como se fossem jasmins.

 

 

 

 

 

 

Barco de Lia no Rio de Cora

 

No escuro escrevo como quem

adora

teu olhar que o passado inteiro

descora.

Zero duplicado em infinito

ancora —

istmo — o oceano dos medos

deflora,

rasga em amor, imprime a tatuagem

canora.

Seres do Olimpo a ressuscitar

Pandora.

Amor — linha e linho — como Gil e

Flora.

Teu, meu corpo banhado em tesão na

aurora.

Teus, meus versos banhados no rio de

Cora.

 

 
 
 
 
 
 
 
 

 

 

Encantado silêncio

 

Entre estrelas

entre algas

entre brancos lençóis

e paredes brancas.

Vermelha viagem da vida nas veias.

Instante que precede ao nascimento,

também à morte.

A morte é um silêncio suspenso.

...E o sol, um silêncio vermelho.

Nuvens em seu passeio,

diante da janela deste apartamento.

Tem uma sinfonia em tons vários,

que gritam — silêncio!

Silencio. Branca, como estrelas e algas.

Passeio brancas areias de Maputo,

olhando ao redor em busca de Mia Couto...

Ansiando que ele me ensine a estrondar

o encanto.

 

 

 

 

 

 

Lupercal

 

Taças tecidas de junco

guardam

o vinho de romã,

que vai bailar em chamas

em teu coração de deus silvestre.

 

A minha ternura

vai cobrir de melissas

o teu leito branco.

Com este bálsamo,

hás de dormir sereno.

 

Na lareira,

chamas em carrossel

valsam ao som

da encantada flauta.

Teu lábio de deus arfante,

causticante sina

— ter beleza tão divina —

a comandar a alegoria

das notas encantadas.

 

Tua melodia fazendo o fogo

tornar viva

a ciranda de signos:

Unicórnios

Leões alados

Centauros

Águias de fogo.

 

É o tempo do teu tributo,

belo deus silvestre.

Tão perto a Roma Antiga.

Tão real os mitos.

Quando me vens,

olhar de fauno,

som que enfeitiça o fogo.

 

Demolindo as ervas daninhas

da alma.

Erguendo um altar

de segredos.

Decapitando meus medos.

 

— Lupercal  —

fevereiro em festa,

a tua mão abrindo

esta fresta

na cortina deste coração

l-e-n-t-a-m-e-n-t-e

esta luz atravessa

deixando impressa:

O fogo da tua música.

O perfume da tua alma.

O silencioso grito do amor.

 

 

 

 

 

 

*

 

fechar a mão

sensação

de estrela triturada

na palma

espocando surdamente

 

fechar a mão

rasgar a linha do destino

na seta norte

da estrela triturada

 

agora não há mais bússola

agora não há mais rota

mulher-gôndola extraviada

no lago-céu

 

fechar a mão

triturar oráculo

reter na palma

estrela fragmentada

 

depois soprar

a energia morta

na enxurrada fria

do teu escárnio

 

 

*

 

 

 

 

 

Meu Aleph

 

Houve um tempo

Em que em minhas veias

Corria um rio de jasmim.

 

Naquele sobrado

Com balanço no jardim

E músicas de Villa-Lobos.

 

Houve um tempo

Em que o barulho da chuva

Adormecia as crianças.

 

Toda leveza, dias brancos

Em que eu era o algodão doce

Na boca da monotonia...

 

...E ela a diluir-me

Entre seus dentes

L-e-n-t-a-m-e-n-t-e.

 

Houve um tempo

Em que acreditei em Deus

E me cobri de lírios...

 

...Corpo tesão moreno

Em roupas de Woodstock,

Fugindo de mãos lascivas.

 

Houve um tempo...

 

As crianças cresceram.

Não há sobrado. Não há Jardim.

Não há Deus...

 

...Nem melodia de chuva.

O piso branco me acena

Quatro andares abaixo.

 

A lua zomba da minha solidão.

Ácida, aponta estrelas

Que não são minhas.

 

Bêbada, me tira pra dançar,

Depois, deita-me naquela cruz

— Cruzeiro do sul.

 

Acordo

E tem um rio podre

Em minhas veias...

 

...Rasga e acelera

Meu coração

Em mágoa coagulada.

 

Nas pessoas, não há sorrisos.

Nem esperanças de primavera.

E na luz do dia, me apavoro...

 

...Rostos que olho e

Vejo cadáveres,

Meninos mortos, esqueléticos.

 

Árvores sangrando

Folhas negras

E vento rasgando a rua.

 

Os cachecóis coloridos

São forcas esgarçadas

E as calçadas, areias movediças.

 

A música enlouquece em

Guitarras estridentes.

Anjos satânicos dedilhando gritos.

 

O sol esfria nas artérias.

O aroma do pão fresquinho congela no ar

E não chega aqui, para me lembrar — é dia!

 

É noite! Apocalipse!

Morte dentro, angústia

De não poder amar-te — Meu Aleph!

 

Calar o universo que me ninava

Como chuva na grama.

Que me fazia pisar o Jardim de Deus.

 

É um apocalipse de mágoa,

Ter que calar teu nome,

E não poder gritar saudades.

 

 

 

 

 

 

Ciranda com Emily & Hilda

 

A bela de Amherst

E a obscena senhora H

Contam-me de seus dias de paz.

Puxam-me para a misantropia.

Nunca mais seguir guias que abandonam

no meio do caminho.

 

Nunca te vi de branco,

Emily!

Nunca entrei na Casa do Sol.

Mas estivemos juntas em ciranda

Alma-a-alma

Thalassa & Sêmen.

Atavios de fadas & Ave Nave.

 

Crisálida outra vez.

Ouvindo as notas de vidro do amor.

Coração vestido de branco.

Nos pés as sandálias do sol.

 

 

 

Bárbara Lia é professora de História e escritora. Nasceu em Assai, norte do Paraná, e vive há vinte e dois anos em Curitiba, com os filhos Paula, Tahiana e Thomas. Publicou poemas no jornal Rascunho, Garatuja, Mulheres Emergentes, Revista Etcetera, Revista Coyote, Ontem choveu no futuro. Na Internet, tem textos publicados na Zunái, Cronópios, Blocosonline, Editora Ala de Cuervo, entre outros. Finalista do Prêmio Sesc de Literatura 2004, com o romance Cereja & Blues e, em 2005, com o romance Solidão Calcinada. Em 1997, recebeu menção honrosa no Projeto Orpheu da UBE-RJ (crônica). Finalista dos concursos de poesia Leminski (2000) e Pinheiro do Paraná (2002). Publicou o livro de poesia O sorriso de Leonardo (Curitiba: Kafka Edições Baratas, 2004).
 

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