indefinição 
 
pois assim é a poesia:
esta chama tão distante mas tão perto de
estar fria.
 
 
 
história natural
 
Meu filho agora
ainda não completou três anos.
O rosto dele é bonito e os seus olhos repõem
muita coisa da mãe dele e um pouco
                                  de minha mãe.
Sem alfabeto o sangue relata
as formas de relatar: a carne desdobra a carne
                                       mas penso:
                             que memória me pensará?
Vejo meu filho respirando e absurdamente
imagino
como será a América Latina no futuro.
 
 
 
o fazendeiro do mar

mar de mineiro é
inho
mar de mineiro é
ão
mar de mineiro é
vinho
mar de mineiro é
vão
mar de mineiro é chão
mar de mineiro é pinho
mar de mineiro é
pão
mar de mineiro é
ninho
mar de mineiro é não
mar de mineiro é
bão
mar de mineiro é garoa
mar de mineiro é
baião
mar de mineiro é lagoa
mar de mineiro é
balão
mar de mineiro é são
mar de mineiro é viagem
mar de mineiro é
arte
mar de mineiro é margem
 
(...)
 
mar de mineiro é
arroio
mar de mineiro é
zem
mar de mineiro é
aboio
mar de mineiro é nem
mar de mineiro é
em
mar de mineiro é
aquário
mar de mineiro é
silvério
mar de mineiro é
vário
mar de mineiro é
sério
mar de mineiro é minério
mar de mineiro é
gerais
mar de mineiro é
campinas
mar de mineiro é
goiás
mar de mineiro é colinas
mar de mineiro é
minas
 
 
 

e com vocês a modernidade
 
Meu verso é profundamente romântico.
Choram cavaquinhos luares se derramam e vai
por aí a longa sombra de rumores e ciganos.
 
Ai que saudade que tenho de meus negros verdes
anos!
 
 
 
happy end
 
o meu amor e eu
nascemos um para o outro
 
agora só falta quem nos apresente
 
 
 
estilos trocados

Meu futuro amor passeia — literalmente — nos
píncaros daquela nuvem.
Mas na hora de levar o tombo advinha quem cai.
 
 
 
sonata

ecos daquele amor ressonam profundamente
e cada vez mais leves absurdas pancadas deu no
que deu minha memória relata
 
escorrego para dentro dos decotes dela
 
 
 
estações

Do corpo de meu amor
exala um cheiro bem forte.
 
Será a primavera nascendo?
 
 
 
ah!

Ah se pelo menos o pensamento não sangrasse!
Ah se pelo menos o coração não tivesse
                                   [memória!
Como seria menos linda e mais suave
minha história!
 
 
 
alquimia sensual
 
Tirante meus olhos e mãos
quero me transformar em seu corpo
com toda nudez experiente
do passado e do presente
 
E naquela noite
             entre suspiros
terei aguardado a hora incrível
de tirar o sutiã
 
 
 
busto renascentista
 
Quem vê minha namorada vestida
nem de longe imagina o corpo que ela tem
sua barriga é a praça onde guerreiros
                           [se reconciliam
delicadamente seus seios narram
                     [façanhas inenarráveis
em versos como estes e quem
diria ser possuidora de tão belas omoplatas?
 
feliz de mim que freqüento amiúde e quando posso
a buceta dela
 
 
 
capa e espada
 
meu amor sentindo-se incapaz de ser amada
levanta herméticos escudos e duendes a qualquer
dádiva
que de mim — ai de mim! — possa brotar
 
nada mais ameaçador que os olhos do amor
 
 
 
 
 
 
lar doce lar
 
Minha pátria é minha infância:
Por isso vivo no exílio.
 
 
 
táxi
 
O poeta passa de táxi em qualquer canto e lá vê
o amante da empregada doméstica sussurrar
em seu pescoço qualquer podridão deste universo.
 
Como será o amor das pessoas rudes?
O poeta não se conforma de não conhecer
todas as formas da delicadeza.
 
 
 
imagens I

Para evitar malentendidos
digamos desde já que nos amamos.
 
 
 
estilos de época
 
Havia
os irmãos Concretos
H. e A. consanguíneos
e por afinidade D.P.,
um trio bem informado:
dado é a palavra dado
E foi assim que a poesia
deu lugar à tautologia
(e ao elogio à coisa dada)
em sutil lance de dados:
se o triângulo é concreto
já sabemos: tem 3 lados.
 
 
 
poética
 
Alguma palavra,
este cavalo que me vestia como um cetro,
algum vômito tardio modela o verso.
 
Certa forma se conhece nas infinitas,
a fauna guerreira, a lua fria
encrustada na fria atenção.
 
Onde era nuvem
sabemos a geometria da alma, a vontade
consumida em pó e devaneio.
E recuamos sempre, petrificados,
com a metafísica
nos dentes: o feto
fixado
entre a náusea e o lençol.
 
Meu poema me contempla horrorizado.
 
 
 
surdina
 
Primeiro o Tenório Jr.
que sumiu na Argentina
Depois quando perigava
onze e meia da matina
veio a notícia fatal:
faleceu Ellis Regina!
Um arrepio gelado
um frio de cocaína!
A morte espreita calada
na dobra de uma esquina
rodando a sua matraca
tocando a sua buzina
Isso tudo sem falar
na morte do velho Vina!
E agora é Clara Nunes
que morre ainda menina!
É demais! Que sina!
A melhor prata da casa
o ouro melhor da mina
Que Deus proteja de perto
a minha mãe Clementina!
Lá vai a morte afinando
o coro que desafina...
Se desse tempo eu falava
do salto da Ana Cristina.
 
 
 
Cacaso nasceu Antônio Carlos Ferreira de Brito em 1944 (Uberaba, MG). Aos 12 anos ganhou página inteira de jornal por causa das caricaturas de políticos que enchiam seus cadernos escolares. Mas logo veio a poesia e antes dos 20 já estava colocando letras em sambas de amigos como Elton Medeiros e Maurício Tapajós. Em 67 veio o primeiro livro, A Palavra Cerzida. Os outros são Grupo Escolar (74), Beijo na Boca (75), Segunda Classe (75), Na Corda Bamba (78) e Mar de Mineiro (82). Livros que não só revelaram uma das mais combativas e criativas vozes daqueles anos de ditadura e desbunde, como ajudaram a dar visibilidade e respeitabilidade à "poesia marginal", em que militavam, direta ou indiretamente, amigos como Francisco Alvim, Heloísa Buarque de Hollanda, Ana Cristina César, Charles Chacal, Geraldino Carneiro, Zuca Sardhan e outros. No campo da música, os amigos/parceiros se multiplicavam na mesma proporção: Edu Lobo, Tom Jobim, Sueli Costa, Cláudio Nucci, Novelli, Nelson Angelo, Joyce, Toninho Horta, Francis Hime, Sivuca, João Donato, etc. Biografia boa é assim: poesia, música e a fina flor da amizade, que Cacaso cultivava carinhoso. Nas aventuras da vida de artista e nas polêmicas da poesia, os companheiros se chamavam Leilah, Pedrinho, Rosa, Paula, Vila Arêas, Davi Arrigucci, Miúcha, Cristina, Gullar, Hélio Pellegrino, Afonso Henriques Neto, Ana Luísa, Bita Carnerio, Maurício Maestro, etc. Em 85 veio a antologia da Brasiliense, Beijo na Boca e Outros Poemas. Em 87 o Cacaso é que foi embora. Um jornal escreveu: "Poesia rápida como a vida". [Do livro Beijo na boca, 2000]