estações
Do corpo de meu
amor
exala um cheiro bem forte.
Será a primavera
nascendo?
ah!
Ah se pelo menos o
pensamento não sangrasse!
Ah se pelo menos o coração não tivesse
[memória!
Como seria menos linda e mais suave
minha
história!
alquimia
sensual
Tirante meus olhos e
mãos
quero me transformar em seu corpo
com toda nudez
experiente
do passado e do presente
E naquela
noite
entre suspiros
terei aguardado a hora incrível
de tirar o
sutiã
busto
renascentista
Quem vê minha namorada
vestida
nem de longe imagina o corpo que ela tem
sua barriga é a
praça onde
guerreiros
[se reconciliam
delicadamente seus seios
narram
[façanhas inenarráveis
em versos como estes e quem
diria ser
possuidora de tão belas omoplatas?
feliz de mim que freqüento
amiúde e quando posso
a buceta dela
capa e
espada
meu amor sentindo-se
incapaz de ser amada
levanta herméticos escudos e duendes a
qualquer
dádiva
que de mim — ai de mim! — possa
brotar
nada mais ameaçador que os
olhos do amor
lar doce
lar
Minha pátria é minha
infância:
Por isso vivo no exílio.
táxi
O poeta passa de táxi em
qualquer canto e lá vê
o amante da empregada doméstica
sussurrar
em seu pescoço qualquer podridão deste
universo.
Como será o amor das
pessoas rudes?
O poeta não se conforma de não conhecer
todas as
formas da delicadeza.
imagens
I
Para evitar
malentendidos
digamos desde já que nos amamos.
estilos de
época
Havia
os irmãos
Concretos
H. e A. consanguíneos
e por afinidade D.P.,
um trio
bem informado:
dado é a palavra dado
E foi assim que a
poesia
deu lugar à tautologia
(e ao elogio à coisa dada)
em
sutil lance de dados:
se o triângulo é concreto
já sabemos: tem 3
lados.
poética
Alguma palavra,
este
cavalo que me vestia como um cetro,
algum vômito tardio modela o
verso.
Certa forma se conhece nas
infinitas,
a fauna guerreira, a lua fria
encrustada na fria
atenção.
Onde era nuvem
sabemos a
geometria da alma, a vontade
consumida em pó e devaneio.
E
recuamos sempre, petrificados,
com a metafísica
nos dentes: o
feto
fixado
entre a náusea e o lençol.
Meu poema me contempla
horrorizado.
surdina
Primeiro o Tenório
Jr.
que sumiu na Argentina
Depois quando perigava
onze e meia
da matina
veio a notícia fatal:
faleceu Ellis Regina!
Um
arrepio gelado
um frio de cocaína!
A morte espreita calada
na
dobra de uma esquina
rodando a sua matraca
tocando a sua
buzina
Isso tudo sem falar
na morte do velho Vina!
E agora é
Clara Nunes
que morre ainda menina!
É demais! Que sina!
A
melhor prata da casa
o ouro melhor da mina
Que Deus proteja de
perto
a minha mãe Clementina!
Lá vai a morte afinando
o coro
que desafina...
Se desse tempo eu falava
do salto da Ana
Cristina.
Cacaso
nasceu Antônio Carlos Ferreira de Brito em 1944 (Uberaba, MG). Aos 12
anos ganhou página inteira de jornal
por causa das caricaturas de políticos que enchiam seus cadernos escolares. Mas logo veio a poesia e
antes dos 20 já estava colocando letras
em sambas de amigos como Elton Medeiros e Maurício Tapajós. Em 67 veio o
primeiro livro, A Palavra
Cerzida. Os outros são Grupo Escolar (74),
Beijo na Boca (75), Segunda Classe (75), Na Corda
Bamba (78) e Mar de Mineiro (82). Livros que
não só revelaram uma das mais
combativas e criativas vozes daqueles anos de ditadura e desbunde, como ajudaram a dar visibilidade e
respeitabilidade à "poesia marginal", em que militavam, direta ou indiretamente, amigos como Francisco
Alvim, Heloísa Buarque de Hollanda, Ana
Cristina César, Charles Chacal, Geraldino Carneiro, Zuca Sardhan e
outros. No campo da música, os
amigos/parceiros se multiplicavam na mesma proporção: Edu Lobo, Tom Jobim, Sueli Costa, Cláudio Nucci,
Novelli, Nelson Angelo, Joyce, Toninho
Horta, Francis Hime, Sivuca, João Donato, etc. Biografia boa é assim:
poesia, música e a fina flor da
amizade, que Cacaso cultivava carinhoso. Nas aventuras da vida de artista e nas polêmicas da poesia, os
companheiros se chamavam Leilah,
Pedrinho, Rosa, Paula, Vila Arêas, Davi Arrigucci, Miúcha, Cristina,
Gullar, Hélio Pellegrino, Afonso
Henriques Neto, Ana Luísa, Bita Carnerio, Maurício Maestro, etc. Em 85 veio a antologia da Brasiliense,
Beijo na Boca e Outros Poemas. Em 87 o Cacaso é que foi embora. Um jornal escreveu: "Poesia rápida como a vida". [Do livro Beijo na boca, 2000]