DAR ASAS

 

o prático

vê no vôo da borboleta

uma borboleta em vôo

 

o filósofo

vê no vôo da borboleta

a razão do Ser

 

o cientista

vê no vôo da borboleta

as matizes matemáticas do vôo

 

o poeta

vê no vôo da borboleta

a possibilidade de dar asas

ao poema

 

 

 

 

 

 

EMBRENHAR-SE

 

caminho

de terra embrenha-se na mata

mata

que se embrenha na natureza

natureza

que se embrenha nos olhos

olhos

que se embrenham no poema

poema

que se embrenha no amarelo do Ipê

 

 

 

 

 

 

ESPIÃ

 

na várzea

uma estrada vermelha

no cotovelo

uma árvore espia

: folhas atraem uma leve brisa

algumas pousam

outras se agitam agonizantes

e a brisa se recolhe

em desconhecida dimensão

 

na várzea

a estrada vermelha

no cotovelo

uma árvore espia

: um carro passa

puxa um rastro de pó vermelho

que se agita

e logo repousa sobre os esquecidos

 

na várzea

uma estrada vermelha

no cotovelo

uma árvore espia desconfiada de tanto silêncio

e a tarde acesa

 

 

 

 

 

 

FRESCOR

 

farfalham

palavras nos varais

experimento

um frescor frio nos lábios

o vento

agita poemas em meus dentes

 

 

 

 

 

 

GRITO

 

caminho nos campos de Van Gogh

assento-me nos sonhos de Kurosawa

aceito as incertezas, dúvidas e medos

grito ao mundo a arte do poema

e o retorno é um sussurro da morte

 

 

 

 

 

 

DESEJO

 

não queria o sepulcro

nem a pústula nem o muco

talvez a viúva

que traz tanto a morte quanto a vida

que assim é todo poema

: meio urna meio puta

 

 

 [De Poemas Viscerais]

 
 
 

MISÉRIA

 

arquear

o cinto no ar

bater

— com raiva —

no couro da rua

e não

ser preso por homicídio

culposo

 

 

 

 

 

 

CENA FAMILIAR EM UMA FAVELA DE GUARULHOS I

 

margeiam

sem olhar os lírios

do campo

o sorriso

um varal de dentes

é todo

de seu homem que trabalha

o filho

chacoalha alegria

em pipas

aventureiras no céu

 

 

 

 

 

 

CAIS DE SASSOON

 

peixes

mortos nos cestos

mortas

trafegam trôpegas

pelo cais

à procura de comprador

do corpo

 

 

 

 

 

 

CRIANÇAS DORMINDO NA CALÇADA DA CATEDRAL II

 

             sinos

   ressoam na catedral

         Beneditinos

   redobram em cantos

             fora

         : crianças

rebatem em gregorianos

            latidos

      agudos de dor

                e abandono

 

 

 

 

 

 

CENA NA FAVELA DO PATURI II

 

desconjuntada

a boneca jaz afogada no esgoto

a céu aberto

ante o olhar de indiferença

de crianças

que coçam piolhos na cabeça

 

 

 

 

 

 

HIPOCRISIA

 

por cem reais

a menina menor de idade

sempre virgem

abre o cheiro de seu sexo

ao homem

que se diz da ordem

e do direito

um velho calvo e careca

erotômano

que anda a julgar crimes

de sexo

 

 

 

 

 

 

CENA DE INFÂNCIA

 

o menino

da casa de grandes portas

e janelas

olha

os meninos da favela

brincarem

sem vestes na lama

do outro lado

da velha estrada de ferro

os meninos

da favela e da lama

sem vestes

pensam no menino

da casa de grandes portas

e janelas

do outro lado

da velha estrada de ferro

um trem

apita na curva

separa

as duas vontades

 

 

 

[De O ceú conta histórias de fogo]

 
 
 
 
 
(imagens ©inaczej | silverka)
 
 
 
 
 
 
 

Carlos Pessoa Rosa, poeta e contista, escreveu Cor e a textura de uma folha de papel em branco, prêmio Ficção Nacional, UBE/CEPE; Poemas viscerais, prêmio Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro, entre outros. É editor do site Meiotom Poesia & Prosa. Assina o blogue Meiotom.

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