ESCOMBRO DA SOMBRA

 

Algo se alastra

em mim,

amálgama

com vazio:

ser minha

própria mancha,

minha fábrica

de máculas,

e não caber
numa só nódoa.

 

 

 

 

 

 

PERDA LÍQUIDA

 

Uma vida,

uma pedra

tão próxima,

 

mas

 

o receio de

se derramar

 

 

 

 

 

 

LUTO COM A PEDRA

 

Luto na margem,

lutavas com o rio.

 

Cortava a vida,

os pedaços de ave

 

caíam em cubos

no gelo dos gestos.

 

Não podia abrir

uma vala em teu rosto.

 

Teu choro murmurava

água no sumo da rocha,

 

tua boca de leite

com uma cortina de pedra.

 

Um dia, eu te perdi

para o musgo.

 

Luto na margem.

 

 

 

 

 

 

GARGANTA DE RIO

 

Minha sede

não cabe em mim,

 

a água me sacrifica.

 

 

 

 

 

 

ESCUTAR ESCURO

 

Se converso comigo,

ainda não é monólogo.

Se despisto a língua,

iludo o diálogo.

 

Falar apara

o exercício da saliva,

palavra esculpida:

 

o som excede

a disposição da boca.

 

***

 

O que pronuncio

me põe a ímpar.

 

Escuto o que se despedaça

pela fenda do lábio:

 

— o desperdício,

uma boca dormida.

 

***

 

Ouço o que não sou,

 

e é como se sermão e cerimônia

fossem o mesmo hábito.

 

***

 

Se me escuto,

me expulso de casa,

espreito o som pela janela.

 

Onde a luz penetra,

entra também

o que se cansou do escuro.

 

***

 

A linguagem não espera

que eu me compreenda.

 

Falar é ateu.

 

***

 

Não carrego

piedade no olhar,

 

esqueço o alfabeto

a cada som.

 

***

 

Estou atrasado

para me converter em mim.

 

Falo comigo:

falo com ninguém.

 

Minha concha

perdeu o acústico,

 

a mão ignora

a mímica da boca:

 

concha marítima,

eco de afogado.

 

***

 

Sou lento

para me amparar.

 

Minha voz

corre como água:

 

por dentro,

ao fundo.

 

 

 

ÁSPERO REPOUSO

 

Um pássaro

voando pelo quarto

era mais

que um brinquedo.

 

Eu só entendia

do vôo das figuras,

dos círculos soltos

como um planeta

ou uma idéia.

 

Só a manhã

me entendia

com o sol.

 

***

 

Um pássaro voando

não era

para compreender:

 

mas um pássaro na mão,

nenhum no vôo,

quase era

um ovo cru.

 

***

 

Um pássaro liso,

se fratura a gema:

 

pedra ofegando.

 

 

 

 

 

 

ANTÍPODA

 

Com esquinas na boca,

rascunho murmúrios:

 

tenho um resto de vida.

 

***

 

Juventude:

 

enrugo o fogo,

osso que se deita.

 

***

 

Minha infância

encheu as gavetas

do cabelo,

 

passarei a velhice

em branco.

 

Minha calvície,

infância devolvida.

 

***

 

Duro para arder,

e fico em falso.

 

Ardo para durar,

e me falsifico.

 

***

 

Quem dura

não sabe arder.

 

Quem arde

não sabe durar.

 

A sabedoria está

indisponível.

 

 

 

 

 

 

ELUCIDÁRIO DA LUZ

 

Algo

se devasta

em mim,

alga

a bordo da

espuma:

ser minha

breve epidemia,

luzir aquosa

minha própria

luz fugitiva.

 

 

(Do livro inédito Uma luz, água láctea)

 

 
 

Roupa de passeio

 

Habitar é alcoólico.

 

Estou embriagado de ficar em casa

e de a cuidar como um corpo sujo,

um filho enorme,

e resultar em mim mesmo

um corpo sujo e preso,

um filho menor,

caçoado porque caçula.

 

Tolero a minha casa

menos do que a um ancião,

cão estanque.

 

Meu anseio de lógica fraqueja,

farejo o desaforo de ver o menor

virar enorme.

 

Ao cuspir, salto para trás,

deixo a luz e as chaves perdidas

além da porta.

 

A casa no breu revivesce,

sobrevive de latidos.

 

***

 

Ao sair de casa,

bagunço o aroma da mala.

 

Ensino os tecidos dobrados

a compreender cicatrizes,

prometo mostrar a água como ferida.

 

A roupa amarrotada

precipita o mar roto,

remoto como areia de praia,

que só jaz na praia.

 

***

 

Enxergo a paisagem,

 

exagero

o coração lusco-fusco

das pálpebras.

 

Não me extravio com a cidade de dentro

se abandono roupas demais no armário.

 

Um cheiro que não partiu comigo

me prende ao amargo.

 

Uma camisa manchada que deixo

reclama a pele de sua nódoa.

 

Há coisas que são o corpo.

 

***

 

Não me confundo com a cidade de fora

se meu tronco for uma prateleira vazia,

farrapo abreviado.

 

Se uma roupa me tem amor,

meu esqueleto se estende em cabide errado.

 

Dispo e despeço minha estação.

Mesmo uma árvore se veste.

 

Nu, vou longe sem sair do umbigo.

A nudez é a sua própria casa,

 

— a cidade, uma maneira de estar vestido.

 

 

 

 

 

 

Vulto de musgo

 

Ao partir, encho os bolsos

com restos de sabonete de erva,

carrego os dentes do banheiro.

 

Levo as gengivas do banho,

a inútil lâmina,

 

deixo que o musgo

se torne relva em tua cabeça.

 

***

 

Ao partir, esqueço a humildade.

Saio, a casa se arrasta comigo.

 

Furto a cadeira de palha,

o banco de lenha,

abandono o frio aceso

no orvalho de parede.

 

Afasto de ti a sombra

dos meus assentos.

 

***

 

Ao partir, evito me despedaçar.

Retenho o aceno,

as mãos se esfarelam nos bolsos.

 

Mantenho a cabeça ereta como coral,

não curvo as pupilas,

pepitas de árvore.

 

Converto a dureza das pedras

em gelatina de pérolas.

 

Vou rápido,

expulso meu vulto da despedida.

 

 

 

 (Do livro inédito Desarvorar)

 

 
 
(imagens©ana maria mascarenhas)
 
 
 
 
 
 
Carlos Besen, inédito em livro, mas com dois prontos (Desarvorar e Uma luz, água Láctea), nasceu e vive em Porto Alegre desde 1980. É bacharel em Filosofia pela UFRGS, onde também realiza pós-graduação. Dá a cara à poesia desde 1997 e detém alguns prêmios literários, com destaque para o Palco Habitasul — Revelação Literária na Feira do Livro, do qual foi vencedor em 2004 e 2005. Já apareceu em algumas revistas, reais e virtuais. Edita os blogues Na selva e Mel do Melhor e participa do Algaravária e do Miralume.