Grandes filmes, geralmente, dizem-nos muito, e, especialmente, em grandes finais. Pelo menos, na lógica narrativa que impera no cinema que estamos acostumados a vivenciar hoje e há muitas décadas. Mas não é assim, desde o princípio, alerta Flávia Cesarino Costa. Em O primeiro cinema: espetáculo, narração, domesticação (Azougue Editorial), ela traz ao público em geral (não necessariamente o especialista ou estudioso de cinema) um painel de uma nova historiografia sobre o chamado "primeiro cinema", que tem se desenvolvido em um crescente, desde a primeira edição deste livro, em 1995.

        

O final desta edição de 2005, que evoquei na primeira linha, é uma síntese do pensamento que se desenvolve no decorrer do livro. É a construção de um novo olhar sobre as primeiras experiências do que chamamos cinema, desde os primeiros filmes de 1895, até 1910, quando a estrutura fílmica narrativa já dava passos mais firmes, como a linguagem padrão que se tornaria predominante desta, desde então, postulante ao título de "arte nobre". O trabalho de Cesarino Costa — germinado desde a sua dissertação de mestrado, no Programa de Pós Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP — cresce no sentido de mostrar que há muito mais, neste primeiro cinema, do que a historiografia clássica supunha ser um mero estágio primitivo do que iria a se tornar a "sétima arte".

        

A tese, em evidência, mostra que o primeiro cinema não se insere, necessariamente, em um processo evolutivo de técnicas e sintaxes cinematográficas. É, antes de tudo, um período de experimentações com características próprias, onde a temporalidade não recai em sucessões causais que levem de um agora para um depois. O fazer cinema estava, sim, começando naquele final de século XIX e início de XX. Entretanto, além de "fazer cinema", começava-se, também, a "exibir" cinema e "assistir" cinema. Logo, não se pode ignorar o contexto histórico-social em que tal situação se produz. A sociedade que recebe o cinema o encara como uma nova opção de divertimento, até então desconhecida, e que, em suas primeiras aparições, divide atenção com uma série de outras atividades a ela relacionadas. De figurante à estrela de um espetáculo solo, aí, sim, o cinema traça um caminho evolutivo, no qual se faz algo rentável e passível de industrialização e consumação.

        

Essa é uma das concepções que Flávia Cesarino Costa bem delineia desde suas primeiras páginas, assim como certos cuidados, que fazem do livro uma boa pedida, a qualquer curioso sobre cinema. Mesmo os não iniciados encontram nele um agradável passeio pelos primeiros registros. Termos mais próprios do meio estão bem decodificados e toda a estrutura do texto conduz a um fácil entendimento da discussão em questão. Se alguns assuntos correlatos foram deixados de fora, isso está bem justificado, como é o caso dos moralismos inexistentes nos primeiros filmes e das reações sociais a tais particularidades quando o cinema caminha para fora dos eixos marginais, em direção a um consumo mais familiar.

        

Tudo o que é dito, e bem argumentado, possui uma boa base de sustentação. Referências bibliográficas e inúmeros filmes são citados e desbravados como exemplos do enquadramento que hoje se faz do primeiro cinema e mesmo do que a historiografia clássica "condenava" como prova de tom primitivista desses primeiros anos pré-narrativos. O divisor de águas que os clássicos defendem está nos filmes de Griffith, e os novos teóricos que reverberam essa mudança de ótica são nomes como André Gaudreault, Noel Burch, Charles Musser e Tom Gunning. Vozes que Cesarino Costa convoca a seus propósitos com boa articulação. Um ótimo exercício para quem estuda o tema com mais profundidade, sem que seja desgastante, porém, aos que simplesmente querem degustar do que se produziu no período em questão.

        

Um bom sinal de respeito ao público leitor, o que me remete à relação dos filmes com seu público espectador, tanto nos idos de ontem, como nos multiplex de hoje. É de sua aceitação que se aquece a indústria estabelecida e em sua adaptação que começou a se esquentar nos primeiros sinais de vida. Até que o público se acostumasse ao acontecimento cinema, muito mudou. No cinema e no ambiente do público, e ainda mais na relação entre eles. A percepção visual de representações da realidade e da ficção é um dos pontos mais significativos em foco, assim como a familiaridade com a diegese hoje inerente ao cinema e conceitos mais elementares como planos, quadros e movimentos. Isto está na pauta de Cesarino Costa como uma singular preocupação: visualizar a transformação que se fundamenta já no primeiro cinema, sem significar uma transição evolutiva ao que viria depois.

        

Voltando ao título e às analogias que construí em minha linha de raciocínio, o que de fato me marca mais em O primeiro cinema: espetáculo, narração, domesticação é justamente esta visão diferenciada do tempo presente na historiografia clássica e na nova ótica sobre o início desta hoje nobre arte. Se a primeira privilegia uma progressão que vai de um agora para um depois e a segunda resgata a validade de uma sucessão de um agora para um outro agora — como bem resume Flávia Cesarino —, permito-me enaltecer que ela tão bem escreve sobre a transição de um antes para um outro antes do cinema.

 

 

 

 

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Flávia Cesarino Costa. O primeiro cinema: espetáculo, narração, domesticação.

Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2006

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março, 2006

 

 

 

 

Bruno Dieguez nasceu em Niterói, Rio de Janeiro. É formado em jornalismo pela PUC-Rio, com especialização em jornalismo impresso pelo O Estado de S. Paulo.  Trabalhou como produtor de tv na KN Vídeo, fazendo programas de turismo no Brasil e no exterior, para canais abertos e fechados. Atualmente, produz o curta O nome do gato, em fase de pré-produção — veja aqui.