Money is a crime
— Roger
Waters
Barítono de carapaça e
gravata quase lilás mergulha os olhos baços
no copo de cerveja
irlandesa entre cotações do mercado financeiro.
(Passa uma sombra magra de seios
fumantes.) Verde álcool, cogume-
los e vozes graves de semblantes que
suicidam a noite estrelada.
Lady sings the blues para vocal e
piano. Retrato de Wilde na parede e ta-
peçarias com toscos motivos
de gnomos de barba pontuda.
O business man engole nacos de
carne vermelha entre chamadas ao ce-
lular e citações do Economist
sobre a crise da balança comercial.
Tabaco provoca câncer. Trabalho
conduz à liberdade. Café com cre-
me e canela. A metafísica do
compromisso institucional.
Todo homem de negócios é sério.
Tem sapatos sérios de couro italia-
no e óculos sérios com aro de
tartaruga. New York, New York.
Bico de papagaio na coluna
recurvada. Folders de lançamento do novo
produto. Brieffings para a
mídia. Um calor estival, quase Saara.
Relógio digital marcando quinze
minutos para Qualquer Tempo. Uma
vaga sensação de arritmia (fadiga ou
problemas coronários).
Executivos sempre usam
marcapasso, água-de-colônia e longas meias
pretas.
(2002)
PARAFUSO,
ESCARAVELHO
Água-de-serpente para
esquecer jamais esta música de peles.
Quem conta fêmures e pêlos
desalinhados
da fêmea
apodrecida.
Mais negro do que a negra
mariposa pedra do esquilo
roendo restos
de não.
Estamos cáusticos
e nus.
Corpo e palavra são flores
pontiagudas
que laceram.
Você sempre diz o
azul-granizo:
céspede
ou áspide
que
anoitece.
Ser o lobo e mais que isso: ser o
Lobo do vermelho
tardio em
jades de ninfeta:
aqui escrevo ilha — facas de
pomba cega,
estrela morta
em diapasão
ou luas
de
capricórnio?
Tudo o que eu amo
—
sim —
corre no tempo com a velocidade do parafuso
e do
escaravelho.
(2003)
FILÓSOFOS, COGUMELOS
Rumor de verde-água esse bosque
de caninos que desaparece.
Trevos
na boca
—
odor
de cogumelos
e lua-de-
mosquitos
—.
Estranha senhora fênix viaja em
caligrafia sua
tiara
azul.
Vagares da lua de outono biombo
jasmim dragão
no teto
curvo
como
atravessar
espelhos.
— Armas e cascos de cavalos
ao longe —.
Filósofos-de-laca conjeturam
possíveis amanhãs
(2003)
LAGARTO,
COTOVELO
Invocar o girassol.
Tingir o réptil
com as cores
do cone.
Pautar
acéfalos conjuros
para espectros
aguardados
como cópulas
de
insetos.
Imantar afazeres
de
mandrágora.
Atender vozes
de matéria
semimorfa
afogando lábios
entre
cotovelos.
Separar vértebras
como
samsárica
fera diamantina.
Decepar a cabeça esbranquiçada
do lagarto
e sorrir
com a precisão monótona
do
gárgula.
Por fim, retocar a face de pânico
com grafias de ausência
que espelham
dois
abismos.
(2003)
LEOA, CLAVÍCULA
Jovem negra pinta de azul-violeta
as pontas dos mamilos.
Há jaguares
sob as
unhas.
Mímica
de esfinge
nos
pulsos.
Núbia voz animal raio-de-pedra
golpeia nudez janaína
reflexo de híbrida
orquídea
ou
seio-
noite-
flor-
que incandesce.
(Três colares
de
relva;
riscos
gravados
na rocha,
sortilégio.)
(Pintura: mascar o carvão leonino
da desértica
epiderme,
ruminando
arenoso
até cantar
a
clavícula.)
(2003)
PAVÃO, MARTELOS
Recomeçar a travessia do
elefante, a via do esqueleto
e do coágulo.
Até queimar
o sol.
Mascando insanidade,
em
ofício rouco
de martelos,
repetir o ato insone, raquítico,
epilético.
Retribuir ao medo uma jóia
minúscula.
Fabricar, com as próprias
mãos,
um pavão real
— e depois
cegá-lo.
Fornicar o amarelo — abstração
do violeta —
e desfazer
a palavra
estrela.
Até queimar
o sol.
Ser asqueroso, simples e tosco.
Desejar lutar
com
Deus.
Por fim, recolher
as
metades
do rosto,
e ver a luz refletida na
mina
do mistério.
(2002/03)
(Poemas do livro Figuras
Metálicas, inédito)
(imagens ©pete turner e todd
gipstein)