NO OLHO DA AGULHA

Tatuar silêncios como formigas.
Afogar os relógios
numa pálpebra.
Vestir o grito com a pele
do escaravelho.
Torcer os músculos da face
em perplexidade.
Cruzar a via absurda
das unhas, desorientado,
obscuro, recurvado
sobre as nádegas.
Saber que toda flor é ridícula,
e mesmo assim cultivar
o minério,
a dor,
a surda epilepsia.
Esquecer o próprio nome,
e sovar a terra
até a exaustão.
(Fosse apenas uma canção de colheita,
você diria amor e outras
palavras fáceis.)
Com o riso estúpido do camelo,
viajar ao olho
da agulha,
labiríntico, insano,
acreditando que toda história é um ácido.
Depois cauterizar a ferida,
aceitar o reflexo,
o simulacro,
lembrar-se
da semente antes do pão.
Tayata gate gate
paragate parasamgate
boddhi soha.


(2002)

 


PORQUE A HORA É VIOLENTA

Porque a hora é violenta e tudo esmaga, abrir cabeças
de serpente.
Há o verde sonoro
de metais;
há o roxo
da flor
cujo nome
ignoramos.
Dedos rugem
escura perplexidade;
arcos rebentam
bicos
de pássaro.
Sou anfíbio,
e calo
o que me apavora.
Onde viajar outros dias possíveis?
Como
extirpar
essa desolação?
Eis o inevitável
campo
de batalha;
eis a letra inverossímil, vermelho
decapita
amarelo.
Sinceramente,
confesso
meu pesar:
quando ponteiros corroem pulsos, 
povoar
mandíbulas
para corvos.
A hora é violenta e o medo em escamas
arranha
a pele
da voz.
Explodir palavras-de-argila;
degolar
leões
de pedra
(ignotos);
mutilar
a escura epiderme,
em chuva
azul-
de-agonia.

Tudo
por um
nada
soando crânios e trompetes,
cortando (súbito)
o branco-
cinza
da manhã.
— Sri Baghavan uvaca:
Yam hi na
vyathayanty ete
purusam
purusarsabha
sama-duhkha-sukham dhiram
so 'mrtavaya
kalpate.


(2002)

 

DIBUJO
(Guantánamo)

Eco de mandíbulas e parietais em turbulência de ganidos.

Contar
o vento,

cantar a pele
de lontra

serpente bípede
ou pterodáctilo

— para a confluência
de pianos no jardim.

Folha de relva desfolha meu rosto —
milagre da verde

aparição (jade,
o corvo)

em óssea carícia ou trumpete para a trama
de futuros
indecifráveis.

A história sangra dentes-de-dragão fábula muda
ou surda
diáspora

— que não esquece,
nunca irá esquecer.

Eis o drama o libreto dessa ópera configurada
que vira a página
— pétala —
até afogar-se
em ramalhete
de azuis-
leão.


(2001/03)

 


DIBUJO
(Abu Ghraib)

Uma figura
de enguia —
palavras
de carbono,
forma esquálida
de garra,
à maneira
simples
de tubérculo.
Dizer
o diamante?
Não, a demência
papilar
traçada
em rocha:
pintura
de mortos,
caligrafia
de grunhidos.
Assim
porque
ferrugem
ou azul-ferrete,
despetalar
os corvos
brancos
— tudo
é tumulto,
gritos
fanhos
na pupila.


(2001/02)

 


CABEÇAS DE FORMIGA

Como este breve sentimento de decomposição, falanges
à maneira
do escuro.
Linha tênue de folhas recortadas
e cabeças
de formiga.
Pétalas roxas,
um tipo de bolor.
Passos escuros
no jardim.
Ritmos podres
de cadela.
Fumo branco,
idéias pesadas
e algo que se desdobra no espaço
curvo
em aromas
de tantálico
negrume.

— Nenhuma música, ali; nada além da carne
dos cogumelos
e seu escarro.


(2003)

 


TRAÇA

(Entre fólios de ciência antiga e espectros de monjas nuas desencarnadas.)

(Olhos opiados afundam em partituras da Outra Margem.)

(Ruge um leão hipnótico.)

(Letras sangradas na pele de carneiro. Figuras metálicas em expansão.)

(Palavras criam realidades.)

(Traças cavam sendas no papel.)

(Toda leitura é uma cicatriz.)


(2002)

 


PULGA

Quando enlouquece na hora vermelha — surda e ascética, em gago
contorcionismo — labora semeadura de pústulas, até saciar a fome.


(2002)

 


BARATA

Seminuas vendem  sabonetes  e  o mar azul-da-prússia de
paisagens recortadas de cartão-postal. Movimentos sinco-
pados de ancas revelam  saliências epidérmicas ao som da
música melíflua de oboés. Jatos d'água escorrem pela con-
cha do umbigo sob o céu  cocainado, longe de estrias e da
micose que avança nos pés.  O verde em alta definição da
folhagem oculta o sulco espesso da cavidade e atrai suspi-
ros plásticos, romanescos, fluindo como sangue menstrual.
Súbito, assoma a logomarca com a inocência animal de uma
máquina de calcular.  Iates e sol jamaicano anunciam o no-
vo capítulo da novela. Seminuas têm medo de barata.
 


(2002)

 
 
PIOLHO
 

                                                                        Money is a crime
                                                                        — Roger Waters
 

Barítono de carapaça e gravata quase lilás mergulha os olhos baços
no copo de cerveja irlandesa entre cotações do mercado financeiro.
 
(Passa uma sombra magra de seios fumantes.) Verde álcool, cogume-
los e vozes graves de semblantes que suicidam a noite estrelada.
 
Lady sings the blues para vocal e piano. Retrato de Wilde na parede e ta-
peçarias com toscos motivos de gnomos de barba pontuda. 
 
O business man engole nacos de carne vermelha entre chamadas ao ce-
lular e citações do Economist sobre a crise da balança comercial.
 
Tabaco provoca câncer. Trabalho conduz à liberdade. Café com cre-
me e canela. A metafísica do compromisso  institucional.
 
Todo homem de negócios é sério. Tem sapatos sérios de couro italia-
no e óculos sérios com aro de tartaruga. New York, New York.
 
Bico de papagaio na coluna recurvada. Folders de lançamento do novo
produto. Brieffings para a mídia. Um calor estival, quase Saara.
 
Relógio digital marcando quinze minutos para Qualquer Tempo. Uma
vaga sensação de arritmia (fadiga ou problemas coronários).
 
Executivos sempre usam marcapasso, água-de-colônia e longas meias
pretas.
 

(2002)
 
 
 

PARAFUSO, ESCARAVELHO
 

Água-de-serpente para esquecer jamais esta música de peles.
 
Quem conta fêmures e pêlos desalinhados
da fêmea
apodrecida.
 
Mais negro do que a negra mariposa pedra do esquilo
roendo restos
de não.
 
Estamos cáusticos
e nus.
 
Corpo e palavra são flores pontiagudas 
que laceram.
 
Você sempre diz o azul-granizo:
 
céspede
ou áspide
que anoitece.
 
Ser o lobo e mais que isso: ser o Lobo do vermelho
tardio em
jades de  ninfeta:
 
aqui escrevo ilha — facas de pomba cega,
estrela morta
em diapasão
 
ou luas
de capricórnio?
 
Tudo o que eu amo
sim
corre no tempo com a velocidade do parafuso
e do escaravelho.
 

(2003)
 
 
 
FILÓSOFOS, COGUMELOS
 
Rumor de verde-água esse bosque de caninos que desaparece.
 
Trevos
na boca
 
— odor
de cogumelos
 
e lua-de-
mosquitos —.
 
Estranha senhora fênix viaja em
caligrafia sua
tiara
azul.
 
Vagares da lua de outono biombo jasmim dragão
no teto
curvo
como atravessar
espelhos.
 
— Armas e cascos de cavalos
ao longe —.
 
Filósofos-de-laca conjeturam possíveis amanhãs
 

(2003)
 
 
 

LAGARTO, COTOVELO
 
Invocar o girassol.
 
Tingir o réptil
com as cores do cone.
 
Pautar
acéfalos conjuros
 
para espectros aguardados
 
como cópulas
de insetos.
 
Imantar afazeres
de mandrágora.
 
Atender vozes
de matéria semimorfa
 
afogando  lábios
entre cotovelos.
 
Separar vértebras
como samsárica
 
fera diamantina.
 
Decepar a cabeça esbranquiçada
do lagarto
e sorrir
 
com a precisão monótona
do gárgula.
 
Por fim, retocar a face de pânico
com grafias de ausência
 
que espelham
dois abismos.  
 

(2003)
 
 
 

LEOA, CLAVÍCULA
 
Jovem negra pinta de azul-violeta as pontas dos mamilos.
 
Há jaguares
sob as unhas.
 
Mímica
de esfinge
nos pulsos.
 
Núbia voz animal raio-de-pedra golpeia nudez janaína
reflexo de híbrida
orquídea
ou seio-
noite-
flor-
que incandesce.
 
(Três colares
de relva;
riscos
gravados
na rocha,
sortilégio.)
 
(Pintura: mascar o carvão leonino da desértica
epiderme,
ruminando
arenoso
até cantar
a clavícula.)
 

(2003)
 
 
 

PAVÃO, MARTELOS
 
Recomeçar a travessia do elefante, a via do esqueleto
e do coágulo.
 
Até queimar
o sol.
 
Mascando insanidade,
em ofício rouco
de martelos,
 
repetir o ato insone, raquítico, epilético.
 
Retribuir ao medo uma jóia
minúscula.
 
Fabricar, com as próprias mãos,
um pavão real
— e depois
cegá-lo.
 
Fornicar o amarelo — abstração
do violeta —
 
e desfazer
a palavra
estrela.
 
Até queimar
o sol.
 
Ser asqueroso, simples e tosco.
 
Desejar lutar
com Deus.
 
Por fim,  recolher
as metades
do rosto,
 
e ver a luz refletida na mina
do mistério.
 

(2002/03)
 
 
 
(Poemas do livro Figuras Metálicas, inédito)

 

(imagens ©pete turner e todd gipstein)

 
 

Claudio Daniel, poeta, tradutor e jornalista, nasceu em São Paulo (SP), em 1962. Publicou os livros de poesia Sutra (edição do autor, 1992), Yumê (Ciência do Acidente, 1999) e A sombra do leopardo (Azougue Editorial, 2001), este último vencedor do prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira, oferecido pela revista CULT.

Traduziu, em parceria com Luiz Roberto Guedes, poemas do cubano José Kozer, reunidos em três antologias: Geometria da água & Outros Poemas (Fundação Memorial da América Latina, 2000), Rupestres (Tigre do Espelho, 2001) e Madame Chu & Outros Poemas (Travessa dos Editores, 2003). O autor publicou também Estação da Fábula, com traduções do uruguaio Eduardo Milán (Fundação Memorial da América Latina, 2002), Prosa do que está na esfera (Olavobrás, 2003), coletânea de poemas do dominicano León Félix Batista, que organizou e traduziu com Fabiano Calixto, e a antologia Na Virada do Século, Poesia de Invenção no Brasil (Landy, 2002), este último em co-autoria com Frederico Barbosa.

O poeta prepara dois novos livros, Romanceiro de Dona Virgo, volume de contos, e Jardim de Camaleões — A Poesia Neobarroca na América Latina.  No exterior, participou das antologias New Brazilian & American Poetry (revista Rattapallax n. 9, New York, 2003), organizada por Flávia Rocha e Edwin Torres, Pindorama, 30 Poetas de Brasil (revista Tsé Tsé n. 7/8, Buenos Aires, 2001), com seleção e tradução de Reynaldo Jiménez, e Cetrería, Once Poetas Brasileños (Casa de Letras, Havana, 2003), organizada e traduzida por Ricardo Alberto Pérez.

Reside em São Paulo com a mulher, Regina, e o filho, Iúri. Atua na área editorial e jornalística. É editor da revista eletrônica de poesia e debates Zunái, junto com Rodrigo de Souza Leão. Tem página pessoal na Internet. Edita o blogue Cantar a Pele de Lontra, atualizado diariamente. Mais aqui.