de um epílogo
No princípio era o fragmento. E o fragmento é o
fim.
A inteligência foi também o início de todas as mazelas.
Desde então, a vida tornou-se cópia do pensamento. Simultaneamente, o
Homem aceitou a necessidade de reproduzir verdades virtuais. Deu-se a
Arte: o alimento da recriação do imaginário e do estranhamento. O mito.
O acaso.
Assim o ser humano investe na tentativa de ultrapassar sua
vida terrena, (des)governando a inteligência e a criatividade, em busca
de alguma coisa que dure para sempre. O resultado dessa empreitada,
muitas vezes, concretiza a singularidade do mistério, fazendo lembrar
que o homem perde, na maioria das vezes, o domínio das suas criaturas.
Porém, lembrando Epicuro, o essencial para a nossa felicidade é a nossa
condição íntima: e desta somos nós os amos.
Decifrar mitos, pois, é uma tentativa da própria ansiedade
humana. É nesse aprendizado que se dá a busca eterna e infinda da
perfeição, encontro de criadores e criaturas, esses seres mais que
imperfeitos.
Repetir Barry Deck, um designer, é perpetuar a origem:
"acho que a imperfeição é que torna as pessoas
interessantes".
desculpem-me pelo rompante conceitual,
mas
O
desentendimento humano evidencia toda a tragicomédia da vida. O Homem,
personagem principal desse ato, é um destruidor de imagens, um
iconoclasta de sua própria sombra, como se estivesse a praticar o
não-Eterno no palco do Universo. Ao aplicar-se em construir máscaras,
com as quais articula a palavra e o silêncio, finda por falsificar a
coletividade, pela invasão da privacidade das ruas, dos parques, dos
edifícios apinhados de escritórios, dos becos, do imaginário, enfim, por
recriar aquilo que melhor representa o epicentro do furacão da longeva
parição do inútil: a Literatura.
Se
é ousadia emprestar à Literatura a pecha de vitrine de inutilidades, o
objetivo é apenas reafirmar o conceito de que no âmago dessa idéia
existe a certeza de sua própria autofagia. Porém, deixando às claras,
nada é mais verdadeira do que a sua autenticidade, por mais tola que
seja. Então, vitrines são úteis à vaidade e ao padecimento de novas
idéias. Todos somos iguais perante a regra, com as requisitadas
exceções.
Nesse
entremeio, o Homem se confunde com o que há de representativo no artista
ou em si próprio, personagem, para quem todos olham com exigência,
desprezo, carinho ou admiração.
De
todos os ângulos, é esse Homem-personagem que proporciona o ranger dos
elos perdidos nos abismos de cada um, quando a sensibilidade torna-se o
resultado do consenso de toda uma existência. Outras vezes, a
manifestação resulta apenas em gesto desafiador: medo, perplexidade ou
desespero. Mas em qualquer dos casos, a simples revelação do silêncio ou
sua alteração posta-se como produto de uma evidência, de algo mais
extraordinário.
Como
há evidências por todos os lados, o ser humano é um consumidor de
desafios, tragédias e alegrias. Porém, é justo admitir que essas
inquietudes assumem aparências diversas, podendo confundir-se com a
futilidade, a excrescência, a rebeldia, a suplantação de conceitos e, na
melhor das situações, com a genialidade.
Não
é exagerado afirmar que o que torna uma evidência humana genial é a sua
forma de exprimir-se, de não se deixar exaurir pela própria forma de
existir no estabelecimento de infinitas
(im)possibilidades.
A
um recriador da existência, quer seja um poeta, um contista, um
romancista, o maior desafio é manter-se coerente com a sua própria
perplexidade, negando a ignorância do mundo
criado.
continuando sobre quem pesam os
silêncios
O poeta Joseph Brodsky afirmou que "a verdadeira
história da consciência começa com a primeira mentira de cada
pessoa". Se aqui o
assunto é Literatura, vale dizer que a verdadeira consciência é aquela
que mente, reformula, reimprime soluções naturalmente falsificadas,
todavia, plenas de verossimilhança. Aceita a assertiva, configura-se uma
outra verdade, aquela mesma que interpreta o erro sem saber do
acerto.
Ao tratar desses estranhamentos, é provável que muitos
homens e mulheres de letras superem seus êxtases com esse tipo de
composição. No entanto, ao longo dos séculos, muitos deles foram/são
iniciados e incitados ao debate de esquecimentos, desses
desvanecimentos, desses enganos da lógica literária, melhor dizendo, da
política literária: "quando um homem cria um mundo próprio,
transforma-se num corpo estranho contra o qual se voltam todas as leis:
a gravidade, a compressão, a rejeição, o
aniquilamento".
Ora, a verdade só é dita quando se dejetam palavras.
Nelas, incrustam-se a sublimação dos valores humanos e o presságio mais
desafiador da ordem literária. A presença inanimada da vida é que a
torna mais real, enquanto contraposta à especulação da alma e da
volúpia. Sobre tudo, as imagens propriamente vulgares são apenas
fantasias recorrentes de um discreto/secreto prazer de quem as manipula.
As palavras são as grandes e excêntricas marionetes dos
escritores.
Aqueles que buscam a verdade podem espelhar-se nos poetas,
como exemplo prático de vida, desde que essa verdade seja induzida pelo
artifício da vaidade. Essa premissa cabe perfeitamente dentro dos
sentimentos da maioria dos poetas. Há aqueles que admitem o erro poético
como ponto de partida da absolvição dos seus desejos. Isso já é vaidade,
uma parte integrante do seu outro reflexo. Da mesma maneira, existem
poetas que nunca erram, pelos menos assim são levados a pensar, e
tornam-se perigosos quando contrariados. E, ainda, a vaidade verdadeira
encontra poetas que muitas vezes possibilitam o erro, mas o demonstram
envolvido em camadas de sutil ironia.
No caso da poesia, quase todo brasileiro é,
indiscutivelmente, um modelador de versos. Esforço que, se não o
condena, pode redimi-lo ou jogá-lo à margem da presa de todo dia e das
algemas econômicas que o cercam, transformando-o em um sonhador ou
inofensivo cidadão; ou, contrariamente, transformá-lo em hiena arrogante
à cata do fácil sucesso e da pavonice. Não é difícil constatar que os
poetas são cidadãos pacatos, porém, geralmente consumidos pelo próprio
umbigo, não usando viver em bandos por muito tempo. Por serem celeiros
de vaidade, algumas demonstrações de troca de experiências chegam a ser
constrangedoras frente às possibilidades traumáticas provocadas por
agrupamentos de longo ou curto prazos.
Na outra margem, narradores, personagens às vezes
mais dóceis. E o texto? Em princípio, um texto narrativo tem a virtude
de ser melhor absorvido pelo leitor ou, pensamento em termos de falsa
qualidade, absolvido — o que não acontece com tanta facilidade quando o
pecado cometido vem sob forma poética. Porém, ao aprofundar-se o leitor
em meandros e enigmas de uma narrativa, certamente concluirá que essa
arte desvela-se como ofício traiçoeiro, tanto faz se experimenta
sintomas de romance, novela, crônica ou conto, pois cada uma dessas
formas próprias descobre-se plena de peculiaridades e, naturalmente, de
enormes dificuldades de elaboração.
É no conto, admite-se, que a possibilidade de acertar
torna-se mais complicada, pela distância sutil que separa o escritor do
instante por se deixar flagrar e se deixar realizar. Realmente, não é
fácil aplicar-se à escrita da idéia que contempla um momento, um
flash, uma fatia da vida.
Poderia retomar o tema da Consistência, mas recolho-me,
pois larga margem disto já foi anunciado em momento anterior e ali,
reuniram-se nomes importantes de nossa atual conjuntura no gênero
narrativo.
agora o que peso e penso para um prefácio
(sic!)
Um dia o circo pegou fogo, o macaco afiou a unha no rosto
de menino, e uma Rural Willys permitiu que ele não alterasse a
estatística e se tentasse adulto para estabelecer uma lenta construção
de entropia literária.
Em 1987, deram-se os primeiros Ofícios de desdita.
Certamente, uma desdita, ao se pensar em termos de segredos literários.
Porém, algo transcendente à formalidade habitual das amarras do conto,
do poema ou da crônica, o que não consubstanciou insinuante paixão por
qualquer espécie de vanguardismo, grande devoradora de arautos. Pelo
contrário, a aproximação desses processos e a visão ainda não calculada
sobre os consagrados estilos foi o propulsor dessa idéia fixa de pensar
a literatura como eterna fonte de motivação a novos
caminhos.
Este ideal continua. Como ativo descobridor da panacéia
literária, ou dela cobaia, o escritor deve entender que o aprendizado
pelas palavras é a busca eterna e infinda da perfeição. Ou seja, repetir
o consagrado por outros poetas e escritores passa pelo fosso da
inutilidade. Entenda-se que não se trata de menosprezo, nem tampouco de
arvoramento de gênio. Mas deve o escritor afastar-se do
papagaísmo mudo ou da recapitulação de receitas culinárias.
Mesmo assim, é bom pensar nisto: se as estruturas são
rígidas nos tankas japoneses ou frouxas na aleatoriedade da vida,
cabe a cada um escolher a sua melhor forma de (im)perfeição. E ainda: ao
se evidenciar na maioria dos textos a fugacidade da norma, ao leitor, o
contato passa a transitar pelo estranhamento. Então, fica claro que para
conciliar a sua melhor forma versus conteúdo, a literatura tem de
tornar-se uma disciplina comum a todas as coisas, transformando-se em
afluente da imaginação.
Em 1989, foi a vez dos fragmentos de panaplo. Uma
homenagem às letras miúdas, ao fragmento tão procurado, à sintaxe sem
grandiloqüência, à profundeza na palavra medida após o abismo da
inconsciência, o que foi denominado contemas. Influências da
psicanálise, da escrita gauche não-drummondiana, da barbárie
coletiva. Nele, todo o foco é fragmentário, seguindo as palavras de
Thomas de Quincey, para quem "as mínimas coisas do universo podem ser
segredos das maiores".
A reflexão possível sobre esses cometimentos é a da
revelação: acalentar o sacrifício por uma dose de clarividência. O que
um escritor busca? A novidade, a intromissão da glória, uma estética? O
melhor é desconfiar de qualquer parâmetro cartesiano ou positivista
quando se trata da (i)lógica poética. E, de outra forma, abstraindo-se
de todas as convenções, evitar alcançar o teor sagrado do espírito que
borbulha, que ousa ramificar nervosamente a servidão da mente. E ter
como certo que a natureza humana é pródiga na incerteza. Assim, conviver
com o precipício da escritura, deixando que a razão desse escrutínio de
entranhas se estabeleça muito anteriormente à própria ação.
Enfim, considerar o fragmento como o aperitivo que precede
as grandes transpirações. Insólito, deixar que o fragmento aniquile a
unidade comum apropriada pelo senso. Mas, em contrapartida, elastecer o
imaginário e conceber a quebra do vínculo das cadeias formais do
pensamento. Entender que a liberdade, sendo uma frase mantida em sua
própria consistência, torna o fragmento a unidade simbólica do processo
da inteligência, onde deveria sempre o escritor viver exilado.
O
tange/dor,
de 1991, fugiu dos bons propósitos. Tem qualidades, mas peca pela
tentativa de validar idéias pessoais adicionadas com a (des)forma
poética e "descompromissada" de alguns poetas dos anos 70. Essência não
conseguida. Perfume diferente com cheiro vencido. Um momento do acrobata
pedir desculpas e cair.
A partir desse momento, o instante de reciclar e recuperar
palavras, sintagmas, estruturas e o próprio pensamento. Até 1999, quando
finalmente foi publicado o caos portátil. Uma novidade em busca
novamente do insólito, do inusitado. Um livro de fragmas, contemas e
evidências. Instante de concluir que jamais haveria agonia poética, caso
a natureza humana fosse exemplarmente reconhecida pelo poder memorial de
seus escolhidos.
De lá até aqui, mais nenhum livro publicado, a não ser
espasmos e esgares por vias diversas: antologias, sítios, jornais e
quetais.
Mas uma certeza: conhecer e recriar sem limites o óbvio é
a melhor forma de descobrir o ninho dos dragões e perpetuar o estreluzir
após seu auto-apocalipse ou de repassar a sagração dos antigos sinos da
catedral de todas as emoções universais. Escolher a fortuna do texto no
debulhar do acaso. Deixar que nessa esfera a ausência invalide a
exatidão, investindo nos segredos, perpetuando a própria vida naquilo
que se repete cotidianamente. Revelar é reinventar a natureza e suas
obviedades.
Enfim, não esperar conflitos. O belo é um diamante
perdido. Se há ilusão de encontrá-lo, o desejo representa a verdade mais
íntima. O que está inscrito na caverna mais abissal. E
só.