©tim flach
 
 
 
 
 
 
                                                                    
 
 
 
 
 

"A morte distrai como fantasia"

(j. p.)

 

        T. S. Eliot ensina que "a poesia é uma constante advertência a tudo aquilo que só pode ser dito em uma língua, e que é intraduzível". Seguindo o  preceito, o tradutor Paulo Hecker Filho escreveu certa vez que "poesia se faz, além do sentido, com palavras, a rigor, é intraduzível". Pensando assim, ocorre-me (in)traduzir poemas de Xavier Villaurrutia, um dos expoentes da contemporaneidade mexicana.

Villaurrutia viveu a tensão de uma época culturalmente revolucionária. Seu nome, então, está intrinsecamente ligado ao de quase todos os empreendimentos culturais do México, a partir dos ano 20. Nasceu na capital federal em 1903 e ali encontrou seu sonho verdadeiro em 1950.

Tinha baixa estatura, era delgado, elegante no vestir, e possuía "formosa voz, grave e fluente como um rio escuro". Por educação e temperamento era um cosmopolita. Disse Octavio Paz sobre Villaurrutia que "não era um homem de idéias era um homem extraordinariamente inteligente. Incapaz de crer, isolou-se em um mundo privado, povoado pelos fantasmas do erotismo, do sonho e da morte".

Realizou estudos secundários no Colégio Francês, daí a influência da literatura francesa, que o fez interessar-se sobretudo por Gide, Proust, Valéry, Giraudoux, e — entre os clássicos modernos — Baudelaire, com quem tem bastante em comum. Joyce, os ingleses e os poetas norte-americanos foram vivenciados em  suas leituras, assim como o alemão Heidegger foi lido em uma época em que ninguém, ou quase ninguém, o conhecia no México.

Na Escola Nacional Preparatória conheceu Jaime Torres Bodet y Salvador Novo, futuros companheiros de aventuras literárias. Freqüentou alguns anos a faculdade de Direito,  abandonando-a em seguida para dedicar-se exclusivamente à literatura.

Foi um dos fundadores e militante de  Contemporáneos (1929-1931), uma das revistas literárias mais importantes e influentes entre as publicações em língua espanhola da época. Não só acolheu em suas páginas as escritas que representavam a vanguarda universal (T. S. Eliot, St.-John Perse, Jean Cocteau, Paul Valéry etc.), como também se divulgaram ou se deram a conhecer autores mexicanos e latino-americanos de notável influência nas gerações posteriores (Alfonso Reyes, Jorge Luis Borges, José Gorostiza, Pablo Neruda etc.)

A maturidade, a inteligência e a generosidade fizeram de Villaurrutia um dos escritores centrais da revista. Os poemas que ali publicou, recolhidos mais tarde em Dos nocturnos (1931), Nocturnos (1931) e Nostalgia de la muerte (1938), são poemas importantes, fundamentais inclusive para o desenvolvimento da moderna lírica mexicana.

Anteriormente, encabeçara com Salvador Novo e José Gorostiza, a revista Ulisses (1927-28), marco inicial do pensamento do grupo Contemporáneos; e, mais tarde, com Octavio Barreda, continuaria os ideais dessa revista, fundando El Hijo Pródigo (1943-1946), uma das melhores publicações surgidas no México e, para uns, em qualquer país de língua espanhola.1

Poeta, crítico, dramaturgo, Villaurrutia é sempre inteligente, culto, agudo, mas por trás de seus jogos de palavras e suas surpresas irônicas se oculta uma funda e desolada angústia.

Tipicamente moderno, ele é o poeta da angústia existencial, todavia, sentia-se irritado pelo modernismo imperante em muitos ambientes literários mexicanos, e admirava López Velarde — feito compartilhado com todos os escritores de Contemporáneos — vendo no poeta de La suave Patria a superação do modernismo e a ponte até as tendências que a eles interessavam: o onírico, o surreal2, a tensão ante um mundo cada vez mais fantasmagórico e ameaçador, a constante presença da morte.

Como assinalou Tomás Segovia em Actitudes, no mundo de Villaurrutia "não vivemos no sonho; não vivemos na vigília; vivemos no mundo intermediário da insônia, e esse mundo é o medo. Aqui não existem personagens… senão fantasmas aterradores. Para Villaurrutia, a realidade é descontínua, aparece e desaparece, esfuma-se, interrompe-se. Essas interrupções, esses desvanecimentos é o que quase sempre evoca em sua escrita a palavra 'morte'".

O poeta Ali Chumacero também concluiu que "ante a angústia da morte, transformada em bela nostalgia, o escritor preferia ter descansado em seu mundo privado o drama de saber-se parceiro".

O teatro foi para Villaurrutia outra paixão: bolsista da fundação Rockfeller na Universidade de Yale, fundou em seguida o primeiro grupo de teatro experimental na Cidade do México. Na juventude, esforçou-se para fazer conhecidos autores modernos, norte-americanos e europeus. Depois, no experimental Teatro Orientación apresentou suas primeiras obras: Parece mentira (1933) e ¿Em qué piensas? (1934), preâmbulo de obras maiores: Invitación a la muerte (1940), La hiedra (1941), inspiradas em Hamlet e na Fedra, de Racine.

Foi como poeta, no entanto, enfoque deste opúsculo, que Villaurrutia evoluiu rapidamente de uma simples percepção da poesia a concepções em que a alucinação, o sentido da noite, o sonho, o tema da morte, o mar, o gelo3 tomaram conta do que há de mais importante em sua obra. Em seus melhores momentos, a representação plástica das emoções — particularmente em seus "noturnos"4 — proporcionou um dos aspectos definidos de sua sensibilidade. A noite para Villaurrutia simboliza a outra fisionomia de uma mesma claridade, a outra praia do desejo clandestino. Poucos exemplos são encontrados na história da lírica latino-americana, em que a fidelidade à angústia e à predileção pela solidão tenham produzido com tal eficácia essas amostras da mais autêntica emoção. Sua influência foi decisiva no desenvolvimento posterior da poesia mexicana.

A leitura recente de críticas sobre a poesia  de Villaurrutia tem mostrado que os poemas noturnais e de morte são inferiores àqueles de energia homoerótica e amor. Eliot Weinstein adverte que "tecnicamente, ele tomou a prosódia e alguns dos temas do modernismo… e desnudou o fluxo retórico, condensando-o à voz divertida  da vanguarda espanhola…".

No entanto, é a sua voz noturnal que sempre remete o leitor ao que de estéril e angustioso tem a existência. Villaurrutia é um ser não redimido, por isso, busca o amor e a morte pelo mesmo caminho; e enquanto mais se aproxima de um, mais próximo está também do outro, da fatalidade de seu encontro, da grandeza de sua própria destruição.

 

 

Noturno

 

Tudo o que a noite

desenha com sua mão

de sombra:

o prazer que revela

o vício que despe.

 

Tudo o que a sombra

faz ouvir com o forte

golpe do seu silêncio:

as vozes imprevistas

que a intervalos estimulam,

o grito do sangue,

o rumor de uns passos

perdidos.

 

Tudo o que o silêncio

faz escapar das coisas:

o bafo do desejo,

o suor da terra,

a fragrância sem nome

da pele.

 

Tudo o que o desejo

unta em meus lábios:

o sonhado deleite

de um contato,

o conhecido gosto

da saliva.

 

E tudo o que o sonho

torna palpável:

a boca de uma ferida,

a forma de uma entranha,

a febre de uma mão

que se atreve.

 

Tudo!

circula em cada ramo

da árvore de minhas veias,

acaricia minhas coxas,

inunda meus ouvidos,

vive em meus olhos mortos,

morre em meus lábios rijos.

 

 

 

 

Noturno medo

 

Tudo na noite vive uma dúvida secreta:

o silêncio e o ruído, o tempo e o lugar.

Estátuas relaxadas ou atentos sonâmbulos

nada podemos contra a secreta ansiedade.

 

E não é bastante cerrar os olhos na sombra

nem fundi-los no sonho para já não mirar,

porque na sólida sombra e na gruta do sonho

a mesma luz noturna nos volta a desvelar.

 

Então, com um passo de um adormecido desperto,

sem rota e sem ideal nos lançamos a andar.

A madrugada esvazia sobre nós seu mistério,

e algo nos sopra que morrer é despertar.

 

E quem entre as sombras de uma rua deserta,

no muro, lívido espelho de solidão,

não se tem visto passar ou vir a seu encontro

e não sente medo, angústia, dúvida mortal?

 

O medo de não ser senão um corpo vazio

que alguém, de mim ou qualquer outro, pode ocupar,

e a angústia de ver-se fora de si, vivendo,

e a dúvida de ser ou não ser realidade.

 

 

 

 

Noturno grito

 

De minha voz tenho medo

e busco minha sombra em vão.

 

Será minha aquela sombra

sem corpo que vai passando?

E minha a voz perdida

que vai a rua incendiando?

 

Que voz, que sombra, que sonho

desperto e que não sonhei

serão a voz e a sombra

e o sonho que me há roubado?

 

Para ouvir brotar o sangue

de meu coração calado,

pus a orelha em meu peito

como no pulso a mão?

 

Meu peito estará vazio

e eu de um coração despido

e serão minhas mãos duras

pulsos, gelados, de mármore.

 

 

 

 

Noturno da estátua

                 

                a Agustín Lazo

 

Sonhar, sonhar a noite, a rua, a escada

e o grito da estátua explorando a esquina.

 

Correr até a estátua e encontrar apenas o grito,

querer tocar o grito e apenas achar o eco,

querer prender o eco e encontrar apenas o muro

e correr até o muro e tocar um espelho.

Descobrir no espelho a estátua assassinada,

sacá-la do sangue de sua sombra,

vesti-la num fechar de olhos,

acariciá-la como a uma irmã imprevista

e jogar com seus dedos feito fichas

e contar a sua orelha cem vezes cem cem vezes

até ouvir dizer: "estou morta de sono".

 

 

 

 

Noturno em que nada se ouve

 

Em meio a um silêncio deserto como a rua antes do crime

sem respirar sequer para que nada turve minha morte

nesta solidão sem paredes

ao tempo em que fugiram os ângulos

no túmulo do leito deixo minha estátua sem sangue

para sair em um momento tão lento

em uma interminável queda

sem braços para estender

sem dedos para alcançar a nota que cai de um piano invisível

sem mais que uma olhada e uma voz

que não recordam ter saído de olhos e lábios

que são lábios? que são olhadas que são lábios?

e minha voz já não é minha

dentro da água que não molha

dentro do ar de vidro

dentro do fogo lívido que corta como o grito

E no jogo angustioso de um espelho defronte a outro

cai minha voz

e minha voz que madura

e minha voz queimadura

e meu bosque maduro

e minha voz queima dura

como o gelo de vidro

como o grito de gelo

aqui no caracol da orelha

o latido de um mar no qual não sei nada

no qual não se nada

porque tem deixado pés e braços na margem

sinto cair fora de mim a rede de meus nervos

mas foge tudo como o peixe que se dá conta

até cem no pulso de minhas têmporas

muda telegrafia a que ninguém responde

porque o sonho e a morte nada têm já que se dizer.

 

 

 

 

Noturno sonho

                       

                a Jules Supervielle

 

Abria as salas

profundas o sonho

e vozes delgadas

correntes de ar

entravam

 

Do barco do céu

do papel pautado

caía a nota

por onde meu corpo

baixava

 

No solo o céu

como em um espelho

a rua agitada

me dobram palavras

 

Roubou minha sombra

a sombra cerrada

Quieto de silêncio

ouvi que meu passos

passavam

 

O frio de aço

em minha mão cega

armou-se com sua adaga

Para dar-me morte

a morte esperava

 

E ao dobrar a esquina

um segundo longo

minha mão vigorosa       

encontrou minhas costas

 

Sem  gota de sangue

sem ruído nem peso

a meus pés cravados

veio a dar meu corpo

 

Tomei-o nos braços

Levei-o ao meu leito

Cerrava as asas

profundas o sonho

 

 

 

 

Noturno preso

 

Prisioneiro de meu rosto

o sonho quer escapar

e fora de mim provar

a todos sua inocência.

Ouço sua voz impaciente,

avisto seu gesto e seu estado

ameaçador, colérico.

Não sabe que sou o sonho

de outro: se fosse seu dono

já o teria libertado.

 

 

 

 

Noturno amor

                       

                a Manuel Rodríguez Lozano

 

O que nada se ouve nesta poça de sombra

não sei como meus braços não se ferem

em tua respiração sigo a angústia do crime

e cais na rede em que tende o sonho

Guardas o nome de teu cúmplice nos olhos

mas encontro teus gestos mais sólidos que o silêncio

e antes de reparti-lo matarias o gozo

de entregar-te no sonho com os olhos fechados

sofro ao sentir a felicidade com que teu corpo busca

o corpo que te vence mais que o sonho

e comparo a febre de tuas mãos

com minhas mãos de gelo

e o tremor de tuas têmporas com meu pulso perdido

e o gesso de minhas coxas com a pele das tuas

que a sombra corrói com sua lepra incurável

Já sei qual o sexo da tua boca

e o que guarda a mesquinhez de tua axila

e maldigo o rumor que inunda o labirinto de tua orelha

sobre a almofada de espuma

sobre a dura página de neve

Não o sangue que fugiu de mim como do arco foge a flecha

senão a cólera circula por minhas artérias

amarela de incêndio em metade da noite

e todas as palavras na prisão da boca

e uma sede que na água do espelho

sacia sua sede com uma sede idêntica

De que noite desperto para esta nua

noite longa e cruel noite que já não é noite

junto do teu corpo mais morto que morto

que não é teu corpo já senão seu vazio

porque a ausência de teu sonho tem matado a morte

e é tão grande meu frio que com um calor novo

abre meus olhos onde a sombra é mais dura

e mais clara e mais luz que a luz mesma

e ressuscita em mim o que não tem sido

e é uma dor inesperada e ainda mais frio e mais fogo

não ser senão a estátua que desperta

na alcova de um mundo em que tudo morreu.

 

 

 

 

Noturno sozinho

 

Solidão, aborrecimento,

vão silêncio profundo,

líquida sombra em que me arruíno

vazio do pensamento.

E nem sequer o sotaque

de uma voz indefinível

que chegue até o impossível

canto de um mar infinito

a iluminar com seu grito

este naufrágio invisível.

 

 

 

 

Noturno eterno

 

Quando os homens erguem os ombros e passam

ou quando deixam cair seus nomes

até que a sombra se assombra

 

quando uma partícula mais fina ainda que a cinza

se adere aos cristais da voz

e à pele dos rostos e às coisas

 

quando os olhos cerram suas janelas

ao raio do sol pródigo e preferem

a cegueira ao perdão e o silêncio ao suspiro

 

quando a vida e o que assim chamamos inutilmente

e que não chega senão com um inominável nome

se despe para saltar ao leito

e afogar-se no álcool ou queimar-se na neve

 

quando a vi quando a videira quando a vida

quer entregar-se covardemente e às escuras

sem dizer-nos sequer o preço de seu nome

 

quando na solidão de um céu morto

brilham umas estrelas esquecidas

e é tão grande o silêncio do silêncio

que de imediato quiséramos que se falasse

 

ou quando de uma boca que não existe

sai  um grito inaudito

que nos  lança à cara sua luz viva

e se apaga e nos deixa uma cega surdez

 

ou quando tudo tem morrido

tão dura e lentamente que dá medo

alçar a voz e perguntar "quem vive"

 

hesito sem responder

à muda pergunta com um grito

pelo temor de saber que já não existo

 

porque acaso a voz tampouco vive

senão como uma recordação na garganta

e não é a noite senão a cegueira

o que enche de sombra nossos olhos

 

e porque acaso o grito e a presença

de uma palavra antiga

opaca e muda que de pronto grita

 

porque vida silêncio pele e boca

e solidão recordação céu e fumo

nada são senão sombras de palavras

que não saem ao passo da noite

 

 

 

 

Noturno de Los Angeles

                       

                a Agustín J. Fink           

 

Se diria que as ruas fluem docemente na noite.

As luzes não são tão vivas que consigam revelar o segredo,

o segredo que os homens que vão e vêm conhecem,

porque todos estão no segredo

e nada se ganharia com parti-lo em mil pedaços

sim, pelo contrário, é tão doce guardá-lo

e compartilhá-lo somente com a pessoa eleita.

 

Se cada um dissera em um certo momento,

em uma só palavra, o que pensa,

as cinco letras do DESEJO formariam uma enorme cicatriz luminosa,

uma constelação mais antiga, mais viva ainda que as outras.

E essa constelação seria como um ardente sexo

no profundo corpo da noite,

ou, melhor, como os Gêmeos que pela primeira vez na vida

se olharam de frente, olhos nos olhos, e se abraçaram já para sempre.

 

Num instante, o rio da rua se povoa de seres sedentos,

caminham, se detêm, prosseguem.

Trocam olhares, atrevem sorrisos,

formam imprevistas parelhas…

 

Existem curvas e assentos de refúgio,

margens de indefiníveis formas profundas

e súbitos vazios de luz que cega

e portas que cedem à pressão mais leve.

 

O rio da rua se conserva deserto um instante.

Logo parece se erguer de si mesmo

desejoso de recomeçar.

Conserva-se um momento paralisado, mudo, ofegante

como o coração entre dois espasmos.

 

Mas uma nova pulsação, um novo latejo

atira ao rio da rua novos seres sedentos.

Se cruzam, se entrecruzam e sobem.

Voam ao rés do chão.

Nadam de pé, tão milagrosamente

que ninguém se atreveria a dizer que não caminham.

 

São os anjos!

Baixaram à terra

por invisíveis escadas.

Vêm do mar, que é o espelho do céu,

em barcos de cinza e sombra,

a fundir-se e a confundir-se com os mortais,

a fatigar seus rostos nas coxas das mulheres

a deixar que outras mãos apalpem seus corpos febrilmente,

e que outros corpos busquem os seus até encontrá-los

como se encontram ao cerrar-se os lábios de uma mesma boca,

a fatigar sua boca tanto tempo inativa,

a pôr em liberdade suas línguas de fogo,

a dizer as canções, os juramentos, as más palavras

em que os homens concentram o antigo mistério

da carne, do sangue e do desejo.

 

Têm nomes talvez divinamente simples.

Se chamam Dick ou John, ou Marvin ou Louis.

Em nada, a não ser na beleza, se distinguem dos mortais.

 

Caminham, se detêm, prosseguem.

Trocam olhares, atrevem sorrisos,

formam imprevistas parelhas…

 

Sorriem maliciosamente ao subir os elevadores dos hotéis

onde ainda se pratica o vôo lento e vertical.

Em seus corpos nus existem pegadas celestiais;

signos, estrelas, e letras azuis.

Se deixam cair nas camas, se dobram nas almofadas

que os fazem, todavia, pensar por um momento nas nuvens.

Mas fecham os olhos para entregar-se melhor aos gozos de sua encarnação misteriosa,

e, quando dormem, sonham, não com os anjos mas com os mortais.

 

 

 

 

NOTURNO ROSA

 

                a José Gorostiza

 

Eu também falo da rosa.

Mas minha rosa não é a rosa fria

nem a da pele da criança,

nem a rosa que gira

tão lentamente que seu movimento

é uma misteriosa forma da quietude.

 

Não é a rosa sedenta,

nem a chaga que sangra,

nem a rosa coroada de espinhos,

nem a rosa da ressurreição.

 

Não é a rosa de pétalas desnuda,

nem a rosa amadurecida,

nem a chama de seda,

nem tampouco a rosa em chama tornada.

 

Não é a rosa volúvel

nem a úlcera secreta,

nem a rosa pontual que dá a hora,

nem a bússola rosa-dos-ventos.

 

Não, não é a rosa rosa

mas a rosa espontânea,

a submergida rosa,

a noturna,

a rosa imaterial,

a rosa vazia.

 

É a rosa da prudência nas trevas.

é a rosa que avança excitada,

a rosa de rosadas unhas,

a rosa polpa dos dedos ávidos,

a rosa digital,

a rosa cega.

 

É a rosa moldura do ouvido,

a rosa orelha,

a espiral do ruído,

a rosa concha sempre abandonada

na mais alta espuma da almofada.

 

É a rosa encarnada da boca,

a rosa que fala acordada

como se estivesse adormecida.

É a rosa entreaberta

da que brota sombra,

a rosa entranha

que se dobra  e se dilata

evocada, invocada, abocada,

é a rosa labial,

a rosa ferida.

 

É a rosa que abre os gestos

a rosa vigilante, desvelada,

a rosa da insônia olhada atentamente.

 

É a rosa do fumo,

a rosa da cinza,

a negra rosa de carbono diamante

que silencia na hora das trevas

e não ocupa lugar no espaço.

 

 

 

 

NOTURNO DA ALCOVA

 

A morte toma sempre a forma da alcova

que nos contém.

 

É côncava e obscura e morna e silenciosa,

se dobra nas cortinas em que se aninha a sombra,

é dura no espelho e tensa e congelada,

profunda nas almofadas e, nos lençóis, branca.

 

Os dois sabemos que a morte toma

a forma da alcova, e que na alcova

é o espaço frio que ergue

entre os dois um muro, um cristal, um silêncio.

 

Então só eu sei que a morte

é o vazio que deixas no leito

quando de pronto e sem razão alguma

te incorporas ou te pões de pé.

 

E é o ruído de folhas calcinadas

que fazem teus pés despidos ao fundir-se na alfombra.

 

E é o suor que molha nossas coxas

que se abraçam e lutam e logo se rendem.

 

E é a frase que deixas cair, interrompida.

E a minha pergunta que não ouves.

que não compreendes ou que não respondes.

 

E o silêncio que cai e te sepulta

quanto velo teu sonho e o interrogo.

 

E sozinho, só eu sei que a morte

é tua palavra mutilada, teus gemidos estranhos

e teus involuntários movimentos escuros

quando no sono lutas com o anjo do sonho.

 

A morte é tudo isto e o mais que nos rodeia,

e nos une e separa alternadamente,

que nos deixa confusos, atônitos, suspensos,

com uma ferida da qual não brota sangue.

 

Então, só então, os dois sozinhos, sabemos

que não o amor mas a obscura morte

nos precipita a ver-nos cara a cara os olhos,

e a unirmos e a estreitarmos, mas que sozinhos e náufragos,

ainda mais, e cada vez mais, ainda.

 

 

 

Notas e Bibliografia 

 

 

 

junho, 2005