pedro henrique saraiva leão
  
                                                                     
  

 

Desde cedo fui tentado por duas aspirações, seduzido por duas deusas: a Literatura, e sua cúmplice científica, a Medicina, ou se preferem — a Medicina, e seu cônjuge humanista, a Literatura.

 

 (Leão, P.H.S.L. In: Discursos de Posse. p. 19)

 

 

 

Wystan Hugh Auden (1907-1973), poeta e crítico anglo-americano, asseverou que "Poesia não é magia. A poesia, como qualquer outra arte, possui um propósito oculto, não-expresso, ou seja, através da verdade, busca desencantar e desintoxicar".1

 

Grande parte da poesia de Pedro Henrique Saraiva Leão, excluídos os objetos poéticos de sua fase intrinsecamente concreta, tem o objetivo de sublimar desejos, quer sejam os do próprio poeta, quer sejam os dos seus leitores. Nela, a presença constante dos amores desencanta o silêncio e os espasmos da alma e desintoxica os nossos sonhos, desejos realizados, como pretendia Freud.

 

Recorrente em torno dos desvelos do poeta está a amada, as imagens certas, incertas, desejadas e incontidas dela, como se ele nos lembrasse a todo instante que "A imagem amada, e a temida, tende a perpetuar-se: vira ídolo ou tabu. E a sua forma nos ronda como doce ou pungente obsessão"2 no dizer de Alfredo Bosi.

 

Quer seja no texto de caráter mais experimental, quer seja no seu trajeto lírico, a poesia pedroenriquiana conduz obsessões, seus motivos sempre recorrentes, instituindo ocasos e acasos. Um gesto seu exprimiu a síntese de toda a poética, gesto abrangente, ambíguo. Duas palavras, apenas: ", / mas, / sempre." (ME, p. 63)

 

 

E que poeta é este em luta com as palavras?

 

O cearense Pedro Henrique Saraiva Leão contava ainda nove anos de idade, no ano de 1947, quando publicou seu primeiro texto — uma pequena crônica intitulada "Um rato e dois cachorros", no extinto Correio do Ceará, de Fortaleza. A costumeira participação em suplementos infantis, já naquela época, deu lugar, posteriormente, a colaborações constantes em jornais da capital cearense, tanto na forma de notícias culturais como na de poemas.

 

Na segunda metade da década de 50, ainda como estudante secundarista, e, logo a seguir, como aluno da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará-UFC, Saraiva Leão participou ativamente das manifestações em favor do movimento concretista no Ceará, juntamente com os poetas Antônio Girão Barroso e José Alcides Pinto, os artistas plásticos Estrigas, Goebel Weyne, J. Figueiredo, Zenon Barreto e o arquiteto Liberal de Castro, na primeira mostra que se deu no Clube do Advogado, em 1957; participou também da segunda mostra, desta feita, no ano de 1959, no Instituto Brasil-Estados Unidos–IBEU, com outros cearenses adeptos do movimento, Eusélio Oliveira, Eudes Oliveira e Horácio Dídimo, cuja participação ampliou-se com artistas e poetas de outros Estados: Déo Silva e José Chagas, do Maranhão; Ivo Barroso e Ronaldo de Azeredo, do Rio de Janeiro; Décio Pignatari, Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Alberto Amêndola Heinzl, de São Paulo; "e — segundo A. G. Barroso — Humberto Espínola, Francisco Barroso Gomes, João Adolfo Moura, e o arquiteto Roberto Vilar." 3

 

Foi por conta dessas primeiras incursões sociais que uma poética em ebulição, de certa forma, passou a atrair o estigma de concretista, evidenciada que foi, cerca de 40 anos depois, por exemplo, pelo crítico Assis Brasil4, em antologia de poetas cearenses, e também pelo jornalista Rodrigo de Almeida5, em artigo sobre a poesia cearense dos anos noventa. A nosso ver, esse enquadramento configura-se redutor, no que tange à verificação da poesia de Saraiva Leão, uma vez que, em registros de vertente lírica, esse modelo desfigura-se, dilui-se, basicamente reproduz apenas uma, entre tantas possibilidades presentes na sua linguagem poética.

 

Considerando que o poeta, antes até da publicação de sua primeira obra, admitiu grave simpatia pelo movimento, talvez por isto tenha esse estigma alimentado alguns equívocos. Quem apontou a adesão foi Antônio Girão Barroso, pondo aspas em próprias palavras do poeta, ao escrever que "Pedro Henrique, então muito moço (…), fez esta afirmação plena de entusiasmo: 'Estou convicto do alto sentido da poesia concretista. Como moço, não poderia negar-lhe minha completa adesão.'"6

 

Convém salientar que, neste caso, pensamos, houve uma adesão ao movimento, em parte, pois, anteriormente, o poeta tanto versejava, seguindo os modelos líricos até então em voga, como também seguindo os moldes de poetas experimentais estrangeiros, aqueles que são considerados precursores da poesia concreta, citados anteriormente na reflexão de Afrânio Coutinho. Voltamos, no entanto, a ressaltar que o desenvolvimento artístico do poeta vai além desse movimento.

 

Em 1960, a publicação de estréia ocorreu com os 12 poemas em inglês. Uma obra estranha à língua-mãe do poeta, embora justificada pela afeição à língua inglesa, reforçada pela docência em língua estrangeira, exercida no Instituto Brasil-Estados Unidos–IBEU. Aliás, o conhecimento da língua inglesa, o da alemã e o da francesa tornariam o poeta uma espécie de tradutor e intérprete de autores estrangeiros, sobre os quais os poetas concretistas cearenses debruçar-se-iam no aprendizado da escritura ideogramático-caligramático-fisiognômica tão cara ao movimento. José Alcides Pinto, um dos precursores do concretismo no Ceará, sobre a obra, acentuou: "distanciando-se embora da estrutura geométrica do poema concreto, trazia a ressonância, e mais que isso, os elementos reais e expressivos do texto concreto."7 Admite-se, pois, uma correlação de idéias com o movimento, porém, extrapolada às margens de sua produção brasileira, certamente, pela aproximação com a poesia além das fronteiras nacionais.

 

Somente em 1983, o médico-escritor volta a coletar poemas. Nesse ano, editam-se duas obras de índoles diversas: Concretemas e Ilha da canção. A respeito da primeira, o poeta Alcides Pinto fala da importância de Saraiva Leão dentro das incursões concretistas no Ceará, ao reverenciá-lo como o "mais inventivo do grupo, o mais original e polêmico. O que então produziu (e não foi muito), foi suficiente para uma aferição do valor de sua arte (...) Ele conseguiu a forma geométrica do poema concreto, pelo emprego adequado da letra, a medida rigorosa do espaço funcional, a unidade sintática e a imagética do objeto-signo, objeto-significante."8

 

Em Ilha da Canção, Saraiva Leão afirma em pequena nota inicial ter relutado muito em publicar os poemas, mas "o desejo venceu o pejo", levando-o a dizer que os poemas "não me saíram do bisturi, mas espero que tenham bom gume".(IC, p.7) O também médico-escritor Newton Gonçalves, ao saudar a obra, lembra, relacionando as vidas do estudante, do profissional e do poeta, que "Na Ilha: Pedro Henrique joga e brinca com as palavras, só pelo prazer de ouvir a musicalidade de suas combinações: às vezes apenas sons guardados na lembrança do estudante que freqüentou vetustos tratados de sistemática botânica",9 ou recorda, pela leitura dos seus poemas, do aplicado aluno de semiologia cirúrgica, além de ressaltar a fase concretista ou o lirismo pungente exposto em inventário de aspirações de poeta e dos seus desenganos. Por fim, arremata que em Ilha da Canção expôs o poeta a sua "radiografia sentimental, nítida e transparente, ao mesmo tempo, coisa que só poeta mesmo faz, milagre e miragem das palavras."10

 

Em 1984, Saraiva Leão lança Poeróticos, que consideramos a obra de mais apurado senso temático dentro de sua poética. José Helder de Sousa lembra que "o próprio título nos revela sua herança concretista", porém, é nele que o autor "exercita sua capacidade de invenção poética e erudição".11 A obra traz ilustrações do médico e artista plástico cearense Helio Rola, que, conjugadas ao texto, acenam a uma só direção: a do erotismo redivivo da conjunção. Afirmamos, em ensaio sobre o poeta, que em Poeróticos "o lírico se despoja e transporta-se à palavra essencial, ao vocábulo-limite da interpretação, e esse manejo transcende o concretismo, pois o significado é atraído pelo significante, sem rodeios, porém de forma suave, bela, lúdica. Um compromisso com o amor, a paixão, a entrega."12

 

Uma revisitação da poética pedroenriquiana, acrescida de novos poemas, é o resultado da coletânea trazida a lume dez anos depois. Meus eus (1994) reúne poemas inéditos, até então publicados em jornais e revistas, e outros recolhidos das obras anteriores. Trata-se, pois, de uma espécie de prestação de contas com a própria condição de poeta — aqui atribuída pelas reverências e saudações a poetas que influíram em sua formação ou àqueles que receberam e continuam a receber o afeto de Saraiva Leão, por intermédio da expressão de seu lirismo; também presta contas aos amigos que o acolheram ao longo das suas revelações poéticas; e, sobretudo, à existência desafiadora que o faz transmudar-se em confissões e construções de linguagem.

 

Para o poeta Francisco Carvalho, "o tempo, a vida, a morte, o desamor, a solidão, o desamparo, a solidariedade, a irreverência, o que existe de patético na condição humana, as dores e as consolações, as alegrias e tragédias do homem, a pobreza, a doença, a miséria, a esperança, o mergulho final nas águas do grande rio e a expectativa da eternidade — tudo se acha presente nas páginas deste livro maduro de PHSL."13

 

A seguir, em parceria com Geraldo Jesuíno da Costa, que concebeu e assinou o projeto gráfico, Saraiva Leão lança em 1996 uma espécie de livro de objetos — Trívia: 1 livro fora do com/um.

 

O jornalista Faria Guilherme faz loas à obra, ao considerar o ponto de vista gráfico e editorial, e lembrar que Saraiva Leão, em qualquer das vertentes de materialização do seu exercício poético, consegue manter uma sincronia entre conteúdo e forma. Reforça que, em Trívia, o poeta "permite que a irreverência prepondere sobre as demais", proporcionando ao leitor "a oportunidade de vislumbrar e sentir o autêntico/imenso poeta que os criou e revelou"14.

 

Por outro lado, Floriano Martins contraria os propósitos provavelmente desejados pelo poeta. Para ele, "A própria noção de trivialidade de que se reveste o projeto já nos autoriza a não avaliá-lo como algo pertinente a uma poética que tão bem se caracteriza como insurgente em relação a nossa acomodação retórica. Neste sentido, Trívia seria o lugar imaginário onde se cruzam as três ruas de uma suposta iconoclastia."15 De certa forma, poderia fazer coro à lembrança de Faria Guilherme, que compara o poeta a instantes de Manuel Bandeira, pela simplicidade técnica evidenciada em um texto poético; mas, também ao modernista Oswald de Andrade, pelos arroubos de ímpeto criativo.

 

Com Circunstânsias, uma plaqueta publicada em 2003, Saraiva Leão encontra-se novamente com a simplicidade, diríamos até com a trivialidade de sua poesia, como se mostrasse um mesmo lado de outra face. Reconhecemos a verve poética de Saraiva Leão, mas não o viço, como aquele encontrado em outros poemas de sua lavra. O próprio título parece denunciar o efeito dos versos ali reunidos.

 

Não citamos nesta breve apresentação bibliográfica a longa lista de poemas esparsos em diversas antologias, em jornais, revistas e cadernos culturais, por estarem, de certa forma, já inclusos naquelas obras ou reunidos em livro, mas também por apresentarem as mesmas confluências já evidenciadas e referidas. Eis, assim, uma síntese da obra poética de Saraiva Leão, o também editor da revista Literapia.

 

 

Alguns objetos poéticos

 

Primeiro objeto: "na intimidade do tempo que nos resta"

 

 

na intimidade do tempo que nos resta

enquanto o sonho nos souber a realidade

e durante esta eternacurta festa

gozarmos nosso quinhão de eternidade

 

deixemos que o sol em um só corpo

nos dissolva, antes que nos cubra a neve

ou mesmo eu perca, por morto,

meu calor, minha fé, minha verve

 

e o que nesta íntima idade perpetremos

o que era pra fruir e não fruímos

e amemos como nunca nos amamos;

 

desconhecidos, afinal nos desnudemos

para possuir o que nunca possuímos

e entregar tudaquilo que guardamos

                                              

(ME, p. 28)

 

 

Segundo objeto: "eterno é ter no terno seio da amada"

 

 

eterno é ter no terno seio da amada

quase tudo, ou quase nada

de menos; eterno é perecer naquele éter

e, de novo, insone, renascer

 

naquela consentida ternura,

prelibando o amor que vai voltar

e ter, na amada que murmura

, a terra, o céu, o mar, o mundo;

 

eterno é o que dura um só segundo —

é o que passou tão de repente

sem dar tempo amanhecer,

 

é já ter sido e não mais ser

é grito preso, e não gritar

e ter no corpo, e ter na mente

.

(ME, p. 36)

 

 

Terceiro objeto: "todos os dias da Criação"

 

 

todos os dias da Criação

são dias da criatura –

 

e são da morte

todos os dias d'amor;

 

todos os dias da criatura

são dias da criação —

 

e todos os dias d'amor

são também dias da morte

 

todo sangue termina em palor

 

e os dias são dados

de azar ou de sorte;

 

os dias de mangue

também são dias de flor

 

até que a vida, prenhe,

, exangue, nos aborte.

 

(ME, p. 40)

 

 

Quarto objeto: "é preciso que eu esteja farto"

 

           

é preciso que eu esteja farto

quando o infarto chegar –

que o circo tenha ido embora

o navio tenha partido

o trem tenha sumido

o sino tenha dobrado

o pássaro tenha fugido

o rio transbordado —

as lágrimas tenham secado

que os balões tenham subido

e o menino recordado —

é preciso que eu esteja farto

quando o infarto chegar :

que o carteiro tenha passado

a festa tenha acabado

que nada mais faça nexo

e não se faça mais sexo

o tambor tenha ruflado

e a banda desfilado,

que o espelho se tenha quebrado

e o fogo se apagado

, a cigana tenha mentido

e o amor ador/mecido,

que eu tenha encontrado o oásis

e chegado ao fim dos meus quases

, que o relógio tenha parado e

que tenhas voltado, molhada

nas ondas do preamar

é preciso que eu esteja farto

quando o infarto chegar

.

 

(ME, p. 44)

 

 

Quinto objeto: "... mormente se amor"

 

 

...mormente se amor

mente,

e 'inda q'eu tente

só curta teu corpo

na mente, sem carpo,

sem flor.

 

(ME, p. 61)

 

 

Sexto objeto: "ergo-nauta-, minha clava de argonauta"

 

 

ergo-nauta-, minha clava de argonauta

e sento praça em ti pois sinto pressa;

eia, então, meu castelo sitiado:

do teu fado e teu encanto sou senhor-

a(h!)posso-me

e armo, inerme, ao teu amor

antes que a morte por derradeiro

sangre o coração deste guerreiro

 

(ME, p. 129)

 

 

 

O objetos e o ser poéticos

 

O crítico Pedro Paulo Montenegro bem destacou da obra pedroenriquiana três temas memoráveis e recorrentes. Transcrevemos ipsis litteris as palavras do crítico, por julgá-las irreparáveis:

 

 

1)      A disponibilidade para a fruição do amor, que se vai desdobrando em atitudes psíquicas de persistência no amor não consentido; a união sempre buscada; a transitoriedade da vida frente à duração do amor.

 

2)      O desejo de viver intensamente a vida amorosa; porque o amor se estende além da transitoriedade do tempo.

 

3)      Tensão dramática entre a posse e a ausência, com implicações no dualismo eu-tu; sonho-frustração; contradições do mundo frente aos valores do poeta, para terminar na plena doação do poeta ao amor, mesmo para o aniquilamento que é a grande desilusão.16

 

 

Segundo a tripartição temática de Pedro Paulo Montenegro, o amor alinha-se em primeiro plano, sugerindo um processo de ocorrências que se inicia com a disponibilidade do ser para o amor. Em seguida, passa pela consciência da "transitoriedade do tempo", a exigir a intensidade da vida amorosa, até revelar-se como frustração, pela ausência/indisponibilidade da amada. Isso leva o poeta a doar-se ao amor como forma de abstração, ou como possibilidade de sublimação. Nisso, afirmamos, a presença do sentimento trágico.

 

Considerando o amor como o maior tema recorrente na poética de Saraiva Leão, bem como as demais possibilidades dessa poética em sua múltipla essência, poderíamos, por fim, atentar para o que Octavio Paz afirma sobre o ato de escrever: "Escrevemos para ser o que somos ou para ser aquilo que não somos"17.

 

Saraiva Leão é um poeta que está em busca de ser, conferindo a sua poética contornos trágicos, como se quisesse fazer transparecer o desejo de cumprir a desesperada busca do Ser ontológico, problema assumido por Heidegger, a partir de Kant: "Como deve ser em sua mais íntima essência esse ente finito que chamamos 'homem', se ele deve estar aberto aos entes que ele mesmo não é e que devem, portanto, poder  mostrar-se espontaneamente?18

 

O poeta é, portanto, esse homem dividido e angustiado que, ao mesmo tempo em que clama por vida, mais resvala em direção à morte, moldando-se em máscaras para tentar o absurdo inatingível de alguma verdade.

 

 

Um bônus...

 

 

 

na minha bagagem de morto

levarei por certo decênios, qüinqüênios,

e o décimo-terceiro e último mês;

promessas, promissórias,

e verticais quereres horizontais;

e os meus impossíveis, meus improváveis,

intangíveis meus

de certo comigo estarão;

na minha bagagem de morto o meu passado imperfeito,

meu presente futuro,

esquinas que não dobrei

e vôos que não alcei;

na minha bagagem de morto

levarei meu vizinho que não tive

e o pássaro que libertei;

na minha bagagem de morto,

tanta coisa, meu Deus, levarei:

meus ocasos, meus acasos

auroras minhas, marílias; luizas, terezas

tantas houve que nem sei;

todas, minhas, incertezas, todas, vésperas consentidas,

todas juras, malferidas,

glórias minhas, fementidas;

 

na minha bagagem de morto, minhas oliveiras, meu horto

minha cruz e os meus espinhos,

todos os meus descaminhos,

o sempre morrer dos meus ninhos,

meus pulos, chulos,

meu querer desistente

minha saúde doente

meu verso de pé quebrado, meu bangalô, meu sobrado

meu pôr de sol, meus castelos

meus anelos tão singelos

minha insânia

minha canção de ninar mortos,

primas, veras, ou —

tonos, meu canteiro de açucena,

minha demente lucidez,

minha penúltima vez;

meu gosto, meu desgosto,

meu setembro, meu agosto, meu eu contragosto

meu suplício, meu silício,

meu rio, meu cio, meu tento desatento,

meus feitos sempre desfeitos,

minha pele sempre pronta para o corte indesferido,

vírgula,

minha perna mecânica, meu peito de quebradiço osso,

meu fundo do poço;

 

na minha bagagem de morto,

levarei o que me emprestaram enquanto eu fosse,

levarei minha dor de dente,

unha minha sempre encravada,

meu par de asas quebradas,

minha sede insaciável e o meu rio sazonal;

meus entrechos mal urdidos, meus condores,

feridos,

desejos não possuídos,

meu ônibus que não passou,

meu querer ir que ficou

meu coração que pararam,

meus desertos que habitaram,

portos onde não ancorei

as marias que amei e que amaria, Maria;

as doenças próprias da infância,

as armas das lutas que encetei, e não ganhei;

a vigília dos sonhos que sonhei,

meu cartão de identidade, CPF, CGC,

imortalvontade de você;

levarei a mulher impossível

e seu susto impressentido,

seu sexto sentido;

 

na minha bagagem de morto

levarei meu eu certo, meu eu torto

o que eu quis e não fiz,

meus fantasmas, minhas asmas,

as árvores que plantei e os frutos que não colhi,

tua vivência que sofri,

você, que eu não enxerguei;

na minha bagagem de morto,

não irei

 

(IC, p. 33-36)

 

 

 

 

 

março, 2006